segunda-feira, 7 de abril de 2025

Palavras avulso e a granel / 3


 

Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.

Fernando Pessoa (Ricardo Reis)


Para o livro "De mim ficam as Palavras"


Noli me tangere de Ticiano

 

Noli me tangere de Ticiano.

- Sem querer correr o risco da blasfémia

Não me toques que me desafinas 

desafinas o piano, o pianoforte

da minha tranquilidade 

e abstinência de séculos.


Mesmo não sendo tua intenção 

traz-me de volta até ao coração 

a vivência, a vida vivida sem morte

desses momentos maravilhosos (MM 

- Maria Madalena, Marilyn Monroe) 

que há muito eu quero esquecer.

 

E deixar dormir no subterrâneo da ilusão 

na gruta não iluminada da desilusão. 

O "Noli me tangere" de Ticiano

que vimos em Londres na National Gallery.


Noli me tangere de Correggio

 

Recordar Picasso (PP) sem pregar a abstinência 

ou não lhe tocar que queima, pelo contrário 

se inspirou no "Noli me tangere" de Correggio 

- quadro exposto no Museu do Prado em Madrid.  

 

A emocionante tela La vie, 1903 do período azul 

-  Retrata o seu grande amigo Carlos Casagemas 

que antes se tinha suicidado e deixou Pablo inconsolável.

A partida dos amigos deixa vazios com mágoas infinitas.


A vida e a morte, modelo e musa, amada mulher 

do princípio ao fim da nossa breve passagem pela terra. 

- PP não se pode queixar, foi dos que mais viveu (1881-1973)

Modigliani (36anos), Van Gogh (37 anos) e Klimt (56 anos).


Touch me now de Roxette

 

Touch me now, I close my eyes 

And dream away (Roxette)*

 

Se digo "Don’t touch me there" 

porque sem querer troquei de canção 

e seja em que língua for, não acredites 

devo ter bebido gin tónico a mais 

ou comido algo que me fez mal.

 

O que eu quero dizer é, Não pares!

Olha-me e entendes todo o meu mundo.

continua, continua até ser noite, até ser dia

*It Must Have Been Love

do filme Pretty Woman (1990)


Serviços mínimos

 

Dizem que gostos não se discutem 

e que não há duas pessoas iguais 

- cada cabeça sua sentença.

Uns multiplicam o pão e há outros 

que preferem multiplicar os pobres 

- preferem perpetuar a pobreza.

 

Fazem precisamente o contrário 

das suas teorias e das suas ideias 

- das suas promessas redentoras.

Mudando de assunto imaginando 

estar perto de ti e pensando 

em que dizer para te surpreender 

abro o guarda-roupa e digo


- Diz-me o que vestes 

e eu digo-te o que mostras 

o que devias guardar para depois.

É tão bom observar indiscreto.

Prefiro-te nua ou quase nua

ou vestida de serviços mínimos

do que de design arejado e inovador.

Sabes bem que não há gostos iguais.


Pessoa respeitada

 

Se eu tivesse nascido em Budapeste 

teria sido canalizador ou contabilista.

Se tivesse nascido na cidade de Lisboa 

teria sido moço de recados e alfaiate.

 

Teria estudado numa escola industrial 

e com tempo aprendido uma profissão

emprego numa sociedade comercial 

subindo a pulso com espírito de missão.

 

Pessoa respeitada e útil à sociedade 

com trabalho e clientes satisfeitos

teria sido um conhecido costureiro 

a tesoura masculina, o fato da cidade.

 

Para a arte da confeção não se perder 

teria casado com uma colega modista 

a crédito ido de férias e comprado casa.

Seria um mundo a sério, uma vida a valer.


Quem nasceu pobre


Pode ser que por milagre tenha sorte 

mas quem é pobre, quem nasceu pobre 

dificilmente algum dia deixará de o ser.

 

Andar sempre com o credo na boca

seja pela doença ou da renda da casa

as prestações e os estudos das crianças 

da alimentação, do vestir ou desemprego.

 

No mundo de hoje como já foi antes 

o que conta é a demagogia e o verbo 

e são normalmente os ricos e abastados 

que falam, dizem representar os pobres.

 

A mim dói-me e é tão triste assistir calado

ver como os mais pobres se deixam levar.

De que falam estes iluminados? Pelo Duce?

Como Lénin? Outro qualquer demagogo?

 

Deixem-me parafrasear García Marquez 

- El día en que la mierda tenga algún valor 

los pobres nacerán sin culo. Assim, Gabo! 

Pudor em pó

 

Falava de pudor em pó como quem fala 

de sabonete líquido inventado à medida 

e feito para da cintura para baixo escorrer 

- devagar pois o dia ainda é uma criança.

 

Para lavar cuidadosamente as pernas 

a quatro mãos e a vinte e dois dedos 

que mesmo com a tração às quatro rodas

- a atração para ser verdadeira é a dois. 

 

Espalhava o pó de talco cor-de-rosa claro

pela saída do pescoço e entrada do peito 

e dizia: está um belo dia para passear 

- mais para amar do que para trabalhar. 

 

No bairro degradado não havia tanto luar

como quando à noite arranjada saía de casa

para melhorar as finanças tremidas da família 

- tanta boca para comer, tanta para calar.


Solidária e humana


Chegou cedo e a más horas

e encontrou a mulher 

na cama com um desconhecido 

- Querida o que é que se passa aqui?

- Querido não é o que parece. 

 

- Vi-o na rua tão triste e abandonado 

que o trouxe pela mão para casa

para lhe dar uma sopa 

consolar-lhe a alma e aconteceu.

 

- Se é assim como dizes fizeste bem.

Foste mais uma vez solidária e humana.

Continuem, eu volto mais tarde.

 

É tão bonito quando se é compreensivo. 

É tão bom viver nestes tempos modernos. 

Armário e arminho

 

As arrumações começaram pelos armários do corredor 

e continuaram pelas gavetas e guarda-roupas do quarto. 

Não sabiam que armário vinha da velha palavra arma.

Armário, cofre ou guarda-armas de quem as tinha.

 

Saíram do armário com estrondo e espanto dos outros 

- Ele gostava de homens e ela gostava de mulheres 

era assim há muito tempo, entre eles, mas em segredo.

Casados mais de vinte anos, continuaram bons amigos.

 

Da palavra armário ocorreu-me arminho

pele de arminho macia, fofa e mimosa 

e daquela loiraça muito gira e vistosa

que trocava a lama da floresta pela cama.

 

Veio a saber-se mais tarde que era agente da kgb 

andava sempre perdida pelos melhores hotéis 

e o seu destaque era o casaco pele de arminho.

que em tempos idos teria sido símbolo da pureza.

 

- Por baixo tinha uma bata acinzentada 

e não usava nem tapa montinhos 

nem calcinha stop, aqui tens de esperar

até eu dizer que está verde, podes avançar. 


Belcanto e ovo da serpente

 

Belcanto. As muitas teorias da conspiração que por aí abundam 

pelo seu letal veneno acabarão por matar, por assassinar.

Não sejamos ingénuos, não tentem compreender o absurdo 

não se deixem enganar pelo belcanto das serpentes.

 

Ovo de serpente com várias cabeças como um dragão 

hidra-anão símbolo do mal que cresce sem parar 

se não lhe cortarmos as cabeças uma a uma.

 

Não será trigo limpo farinha amparo, mas com coragem

vamos fazer das suas cabeças decepadas e queimadas 

das cinzas o melhor estrume das nossas terras agrícolas.

 

Não penses em te suicidar! Mata as serpentes dos belcantos!  

- Pode ver-se a olho nu em miniatura o réptil já concebido. 

É só uma questão de tempo e de ocasião. Há sempre. 

Do filme Ovo da serpente (1977) de Bergman.

 

Belcanto um restaurante ao lado da Ópera em Budapeste. 

Era muito caro, mas comia-se e cantava-se bem. 

Os empregados traziam cantando os pratos à mesa. 

Caso para dizer viva a cultura da voz e do estômago. 

 

2024 - 2025


quinta-feira, 3 de abril de 2025

Palavras do eléctrico ou o eléctrico das Palavras /3

 


Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta  

continuarei a escrever. Clarice Lispector 


Para o livro "De mim ficam as Palavras"

Hier encore - Charles Aznavour


Les yeux cherchant le ciel mais le cœur mis en terre

 

Meu bicho-da-seda, minha lagarta da amoreira 

que se faz a mais bela das borboletas 

e em ti representa a vida, o fim e o renascimento 

o feio feito feitiço da beleza ou precisamente o contrário.

 

Da vida ontem da vida sempre, vida nunca e vida eterna 

no baixo-relevo do teu copo abaixo e acima em tudo

na vertical, na horizontal e nas escadinhas do bairro 

ou no tapete voador, de paraquedas para-quedistas 

- Borlistas e carteiristas, vigaristas e feiticeiras...

 

Na autoestrada da chuva 

nas curvas e contracurvas do vento 

no cruzamento tardio da noite 

na acalmia da tempestade 

na estação para recomeço do novo dia

no apreço comovente na praça do nosso reencontro.

 

Nunca é tarde para tentar como se fosse a primeira vez 

Nunca é tarde para voltar a errar se é a mando do coração 

Nunca é tarde para voltar ao local onde tudo começou 

Nunca é tarde para chorar o passado e soluçar o futuro. 

 

Para deixar o coração em terra e apanhar o avião 

Levar consigo os olhos, o olhar do mundo nos teus olhos 

Cantar o passado e agradecer o futuro - a minha gratidão.  

La bohème - Charles Aznavour

 

Do princípio ao fim do mundo 

do século perdido, a algazarra  

não abrandava e o apara-lápis  

não parava de ser emprestado  

por vezes trocado por um beijo.

 

Cães e as gatas já estavam habituados à confusão  

a alfazema e o alecrim não espantavam ninguém  

nem o alfarrabista da esquina que não vendia  

não se desfazia de nenhum dos seus melhores livros 

- que faria se não os tivesse à mão para os desfolhar.

 

Os bailes do bairro acabaram et les lilas sont morts  

os sindicatos perderam o pio e os trabalhadores amoucharam 

sentados no chão de pernas cruzadas à espera do milagre 

mas temos os jovens como ontem hoje também não se calam 

- é do futuro deles que escrevia e cantava o arménio Aznavour.

 

Em Montmartre de Paris do antigamente

eram pobres, ele passava fome e ela posava nua  

sentia-se em tudo a liberdade, decadência e liberdade  

que bem precioso é viver democracia num país livre  

sem perseguição - num país do decadente ocidente.


Cotovia ou confraria

 

"La chair des femmes se nourrit de caresses comme l'abeille de fleurs." 

Anatole France

 

Aquarela e a tinta dos seus olhos 

a doce conspiração das suas coxas

com a flanela nocturna dos seus braços 

e a água morna dos seus lábios 

Quando os beijo para saciar a sede. 

 

Cortiço mel das flores da sua serra

com a cobiça do fascínio maior

da planície lunar do seu olhar 

com a cotovia ou confraria do amor 

Para não me esquecer e te esperar. 

 

Cadeira onde tanta coisa boa ficou por fazer. 

Bagageira onde ainda hoje a quero guardar.


Os pecados

 

Com uma cerveja à frente dizia 

- Se é pecado se de vez em quando 

me descuidar e beber um pouco a mais

que mau seria nunca ter sido moço.

 

Se me distrair a olhar aquela ilha vistosa 

ao lado sentada e pensar noutros tempos 

dar asas de avioneta à imaginação

é não temer a régua de castigo e educação. 

 

Se é pecado cuidar e regar essa rosa 

para lhe dar cor e não a deixar murchar

como é deixar-se envolver pelo seu perfume 

com ela se perder e em silêncio florescer.

 

Dizia Pedro Homem de Mello e Amália 

tão bem cantava quando iam a Viana

- Os pecados têm vinte anos 

e os remorsos têm oitenta -

 

O pecado (i)mortal mora na guloseima 

e cresce no gosto e na certeza  

do bem que faz pelo melhor que sabe.

 E pelas vidas que nos traz de volta. 


Prefácio & Posfácio

 

Prefácio 

 

Na manhã desse dia lavei-me e vesti-me 

arranjei-me, tratei da pele com mais cuidado

valia a pena, sabia bem por que o fazia.

 

Talvez tenha deixado a pele sem defesa nenhuma  

mas sabia que a tua pele na minha a iria proteger. 

Sabia que não seriam os teus beijos ardentes 

os teus dedos e os lábios que a iriam maltratar. 

 

Na manhã desse dia saí de cedo de casa 

o coração estremecia e quase me saia do peito 

estava ansiosa, sentia muito impaciência. 

 

A única certeza que tenho é que vacilava de receio 

se seria um sorriso, um abraço, um beijo forçado.

Felizmente perto de ti sempre perdia o medo 

e vi abrir-se o céu, vivi a paixão do nosso amor. 

Prefácio & Posfácio

 

Posfácio

 

Desatentos não se deram conta 

que o seu tempo passou

e se foi para não mais voltar. 

 

A pele parece que secou 

e fez-se um deserto sem oásis

sem fonte nem areia molhada. 

 

O coração a lenha dos corações 

esse continua a arder feito fogo

até se fazer cinza e depois vento.

 

Recordar a terra húmida da margem do rio.   

Mundo que já não é o nosso e depois nada.

Erotismo da classe operária

Para António Rosas

 

Esta noite a minha intenção é fazer um breve relance pelo erotismo 

e algumas liberdades da classe operária e dos seus representantes 

no Portugal da primavera marcelista antes do 25 de Abril libertador.

 

- Aquele é o padrinho, não é o afilhado famoso dos selfies 

que foi primeiro comentador referência da televisão 

e depois S.E. O Presidente da República Portuguesa…

 

Era o magusto e jeropiga de São Martinho na fábrica de fiação 

e houve quem tenha se acelerado mais do que devia

ultrapassou a barreira do pudor e alguma timidez recalcada.

 

Depois do almoço voltou-se ao trabalho, mas uma das operárias

no corredor menos iluminado fez-lhe uma espera inesperada 

- Não gostas? É tudo para ti! Bata no chão blusa aberta sem soutien. 

 

- Porque se acabava duas três vezes por semana pedia-me fio

eu fazia-lhe sinal para subir ao terceiro andar à sala dos rolos

onde nos enrolávamos ouvindo as máquinas a trabalhar. 

 

Era ali para os lados do Martim Moniz quando as fábricas 

ainda funcionavam em pleno centro da cidade 

- O prazer operário e não apenas ser explorado pelo patrão. 


Revendo Almada

 

Tenho andado de volta revendo Almada Negreiros

com o Manifesto Anti-Dantas, 1915, e a Taca de chá*.

Recordando: As Banhistas, 1925, A Sesta, 1939,

O Retrato de Fernando Pessoa, 1954 ou o meu favorito

Art Déco, Estudo para uma Decoração de Teatro,1929.

 

*”Pela manhã vinham os visinhos em bicos dos pés espreitar por entre os bambús,

e todos viram acocorada a gueisha abanando o morto com um leque de marfim.”

 

Preâmbulo: Se Almada visse a pose e a roupa colada ao corpo 

- Uma segunda pele da jovem mulher por baixo da gabardine - 

esta tarde na paragem do eléctrico... eu fiquei com a sensação

que teria escrito rápido e certeiro, dizendo em voz alta: 

 

Eléctricos do mundo libertem-se! Sejam uns fora de caixa 

saltem dos carris, não aceitem a escravidão fixa dos horários.

Parem, façam greve para que aprendam, chega de brincadeiras.

Com os condutores dos eléctricos não se brinca nem a brincar.

 

Assim tinha tempo podia observar mais uns minutos  

sem a ver desaparecer ou ter de se apressar, entrar a correr 

para a continuar a ter aquela visão mais algumas paragens. 

Não estava sozinho naquela observação de admiração.

 

Segundo preâmbulo: descobri Almada na minha adolescência.

O nosso primeiro encontro foi com o Manifesto Anti-Dantas 

declamado por Mário Viegas. Se fosse hoje, 110 anos depois

estou convencido que o título seria: Manifesto Anti-Ventura.

 

Ultimamente tenho jogado com a ideia-provocação de pensar

- Qual seria a sensata-opinião do wokismo sobre Almada?

Será que seria queimado na fogueira da inquisição wokista?  


Feita de plástico

 

As pestanas postiças, falsas eram mais compridas 

que a mais curta das pontes sueco-dinamarquesas

distante da Groenlândia que Trump tramposo quer dominar. 

 

Os lábios carnudos, espalhafato a mais de tão inchados

quase caiam da boca e deixavam os dentes à mostra. 

Os seios tão esticados nem quatro mãos chegariam 

para os cobrir e esconder e proteger do mau olhado 

que do silicone já não havia nada a fazer.

 

Não teria mais de 20 anos e antes de se industrializar 

em plástico e afins deve ter sido uma miúda jeitosa

agora está feito um armazém de plástico. Feita um plástico. 

Uma carroçaria que não precisa de bate-chapas

Mecânico de amortecedores e assentos para assentar o dito.

 

Não há tempo para recriar a história sacana da palha seca 

se faz um bom colchão porque se tem de limpar a palha 

que tem no rabo, rabo de palha na ponta da navalha.

 

Primo californiano

 

O primo californiano veio à Hungria visitar a família. É uma jóia de pessoa 

e apesar de ali ter nascido há quase 70 anos e nunca aqui ter vivido 

sente-se húngaro e não esqueceu o idioma que aprendeu com os pais. 

Foi o primeiro, o idioma que se falava em casa, o inglês aprendeu na rua 

com as outras crianças e na escola, onde no início sentiu algumas dificuldades. 

 

O pai, Andor, órfão criado pelos tios, a convite de um famoso professor húngaro 

de quem era discípulo, em 1939 com 32 anos foi para os Estados Unidos. 

A mãe, Margit foi em 1950, depois de ter passado 5 anos num campo de refugiados

Na Áustria. Falava 8 idiomas e era a tradutora. Tinha vinda da Jugoslávia 

de uma região habitada sobretudo por húngaros e alemães, perto da fronteira 

da cidade universitária de Szeged, a Coimbra da Hungria, cidade onde nasceu. 

 

O pai era um abastado industrial têxtil, húngaro, mas com nome alemão.

Com o aproximar do fim da guerra, o avanço dos partisans de Tito 

e do Exército Vermelho, tiveram de fugir, deixando tudo para trás. 

O pai era há muito um entusiasta, grande colecionador de selos

selos que durante aqueles anos austríacos os ajudaram a sobreviver. 

 

Na América os húngaros casadoiros eram informados

quando chegava um barco da Europa com jovens húngaras. 

Foi assim que Margit e Andor se conheceram e se casaram 

namorando entre Pasadena, Los Angeles e S. Francisco.  

Após várias tentativas, nasceu Tibor e o médico disse

- Este bebé precisa da sua mãe, não tente nem mais uma vez.

 

Esteve cá este fim-de-semana e é sempre muito bom estar com ele.

Comove ver como se emociona a falar dos pais, das suas raízes húngaras. 

Está do outro lado do Atlântico e pensa como nós sobre o mundo 

sobre a América de hoje. Estivemos a ouvi-lo com atenção 

a aprender, por isso é primo californiano e não primo americano. 

 

Neste momento já está na Índia, vai até aos Himalaias. 

A última vez que passou por Budapeste

ofereci-lhe um cachecol do Sporting 

comprado quando do jogo com o Estoril (5-1). 

Com ele enviou uma fotografia do Kilimanjaro. 

Continuação de boa viagem Tibor!


2024 - 2025


terça-feira, 1 de abril de 2025

Confissão

 

Confissão de quem está mais para lá do que para cá:

Quando acabar, acabou-se, até lá vou escrevendo, respirando

acaba-se mais cedo se não respirar, se não escrever. 

 

Com as mãos da poesia estou a construir a minha nova casa.  

 

A casa: "De mim ficam as Palavras" com 

- Palavras avulso e a granel 

- Palavras do eléctrico ou Eléctrico das Palavras 

e com os jardins, hortas e árvores de fruto de outros textos à volta.  


Palavras avulso e a granel / 2

 


Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.

Fernando Pessoa (Ricardo Reis)


Para o livro "De mim ficam as Palavras"


Menú semanal


Se eu posso fazer um pequeno pedido 

por favor com esse ar desengonçado 

mostra mais um pouco da tua barriga 

senta-te como vieste despreocupada 

com os pratos e o sorriso na bandeja.

 

O código da pulseira encriptado no olhar 

o telemóvel na mão e ao pescoço o cartão 

a roçar na blusa da roca da rocha da praia 

formação continental de pedra volumosa 

com o fio de algodão enrolado à tentação.

 

Passagens virtuais e realidades paralelas 

ou outra coisa qualquer, os meus olhos 

estavam como lapas coladas ao umbigo 

agarradas em pensamentos de fome 

a esse pedacinho menú da tua pele.

 

Menú semanal do prato com mais saída

de quem ao sol já passou boas horas 

dizem o sol quando nasce é para todos 

e da luz o meu almoço sabe-me melhor.

Assim começava o meu texto de hoje… 

No estádio

 

No estádio onde decorria o jogo 

não estava sozinho em campo.

Dava nas vistas e destacava-se 

fosse das bancadas ou no relvado.

 

Pela qualidade do seu bom jogo 

na arte via-se estar noutro patamar.

Excelente e adulto toque de bola

era também o mais expansivo.

 

Treinava apenas quando podia 

mas quando o fazia era com tudo.

Chegou ao preferido da multidão.

Assim se fez um grande campeão.


Tempos de ficar calado

 

Fora de mim e fora de nós 

a coisa por aqui já esteve melhor 

mas também já esteve muito pior.

 

Os camaradas continuam o projecto 

do esplendor de humanismo libertador 

Mentiroso sou eu e não minto tanto.

 

Do lado de lá do oceano 

a casa é branca de nome 

na verdade, é casa do louco. 

Louco que se não parar 

não vai deixar pedra sobre pedra 

e é capaz de acabar com o mundo.

Senhoras e senhores 

mesmo que nada mude

não são tempos de ficar calado.


Barriga ao balcão


Na pele da dúvida pôs-se a pensar 

a matutar antes de vestir o pijama 

- Será que tenho alma de galinha 

vida de pato, nervos de serpente 

cabeça de porco e espinha de peixe?

 

No iPhone quero escrever século 

e por me ter esquecido do acento 

sem mais sugere-me sex ou sexo.

Devo ser o culpado, deve imaginar 

que não passo de um velho tarado.

 

No final é tudo uma questão 

de encostar a barriga ao balcão 

quem está autorizado pelo regime 

a pôr as mãos todas no tacho 

e refrescar os pés na bacia de zinco. 

Deixar de ser parvo


Descascar favas e ervilhas

Partir nozes e amêndoas 

Lavar e limpar pratos. 

 

Encher e despejar copos

Mover mundos e fundos 

Correr listas e pistas.

 

Preparar o almoço de pargo

Acender o fogão a lenha 

E no fim deixar de ser parvo. 

Em tarde de primavera


A poesia de hoje apenas faz sentido 

se for dirigida à entrega e à conquista 

escrita para ser lida e depois esquecida.

Dizia com um sorriso sábio e maroto.

 

Seguindo as orientações do seu professor 

que tão bem sabia como formar e formatar

guia espiritual na grande avenida da vida

a irradiação solar compensava-se em géneros.

 

Para o dia de festa acabar em beleza

pedia um sabonete, um pente e chinelos

fazia seguro dos pedidos serem atendidos

que a devoção tudo faria para os satisfazer.

 

Tempos de ser protegido das más notícias 

como quando não aceitou a oferta das danças. 

Da aventura que em segredo tinha começado 

com outro em tarde de primavera no outono.  

 

A poesia de ontem era escrita em pergaminho.

Hoje está escrita no rosto, escrita no teu corpo. 

Lavar os pés


Ser livre é não ter de se rebaixar 

de beijar, lavar e secar os seus pés 

porque tem o hábito de não ser barato

permitir-se só pelo seu costume de mandar.

 

Ter a liberdade de as pilhas recargar

com modernos carregadores e marchar 

porque quer e porque pensa na família 

voltar a casa a tempo de fazer o jantar.

 

Saber que os tempos de Platão 

foram, mas há muito que já não são

não estar para perder o seu tempo

Se fosse eu também não estaria.

 

Entrou a despachar e nem se sentou

ao balcão pediu um copo de vinho branco

pão caseiro azeitonas e queijo francês. 

Toca a andar que se fazia tarde para chegar. 

Cresceu com outra vida

 

A sua história merece ser contada. 

Nasceu num dia de abençoado 

num mês com futuro e com passado.

 

Cresceu entre a serra e o mar

rios e paisagens de deslumbrar

socializou-se com outro tipo de vida.

 

Fizesse o que fizesse tudo lhe saía bem.

Por vezes parecia que abusava da sorte 

que deus lhe destinou para o seu caminho.

 

Em tempos recentes de fios, teias e malhas

escrevia muito bem, tinha o seu público

e um mestre que lia, apoiava e corrigia.

 

Um dia de inverno, para pena de muitos

decidiu abandonar a escrita, deixar de escrever 

porque o mestre leitor deixou de aparecer.


Na praça não havia outro


Sobressaía pelo corte de cabelo 

muito à frente do seu tempo.

Pelo olhar e sorriso encantador

na praça não havia outro.

 

Sobressaía pela sua silhueta

pela sua roupa apertada 

assentava que nem uma luva

parecia toda ela feita à medida.

 

Mostrava-se, mas com moderação 

e não esticava a corda da ousadia.

Sem se assumir caudal fácil ou vulgar

era para muitos o rio da imaginação. 

Jogadora de xadrez

 

Era exímia jogadora de xadrez 

conseguia combinar para vencer

uma apaixonada por simultâneas.

Jogadora em vários tabuleiros.

 

Estava com ele mas alternava  

como livre sempre fez na vida.

Ganhou-lhe por isso o gosto 

e já não queria outra conversa.

 

Com tanto estilo e presença 

de muito competir e praticar

devia ser ela monitora a ensinar 

e não ter um treinador para aturar.

 

É assim que tu me vês 

será assim que eu sou 

ou será assim que tu és?


2024 - 2025


Em "Palavras avulso e a granel"

Para o livro "De mim ficam as Palavras"


segunda-feira, 31 de março de 2025

Amor e paz - Ilusão das palavras

 

Para o livro "De mim ficam as Palavras"


Tamar e Mahmoud

 

Diz Rita, minha amada 

na nossa Terra Santa 

porque é o mundo 

connosco tão injusto 

tão duro com o nosso Amor? 

 

Não somos Romeu nem Julieta 

Páris e Helena, Tristão e Isolda 

- nem a triste tristeza do isolamento.

Não somos Lara e Jivago na Rússia 

nem Ilse ou Rick em Casablanca.

 

Somos tão só Tamar e Mahmoud

uma judia e um palestino sem nome.

Dois jovens que se conheceram  

se apaixonaram irremediavelmente 

e se deram perdidamente um ao outro.

 

Porque não podemos nós fazer 

das pedras e do pó dos caminhos 

campos de oliveiras, pomares de laranjeiras 

e do barro construir e erguer a nossa casa 

cuidar do nosso jardim e da nossa horta?

 

Minha israelita de mel insubmissa 

que o nosso Amor nunca acabe 

e eu possa viver contigo a vida inteira 

criar filhos e depois ver os netos crescer.

Rita não te esqueças - o sonho nunca morre! 


Tamara

 

Tamara, doce doçura como a vitória impossível 

a renúncia anunciada e a conquista temporária 

eterna só no sonho mais improvável e mais ingénuo. 

- Castanha de caju e amêndoas recheadas para despistar. 

 

Para disfarçar a dor da melancolia triste

a tristeza que inunda e sufoca a alma

a hospedaria da monotonia mais ausente.

- Dizer adeus à inocência perdida.

 

Abram os olhos e olhem ao vosso redor

não é a abundância do leite, mel e frutos 

a terra prometida por deus que vos espera.

- É tempo de acordar de vez minha flor.


Rita e a espingarda


"Entre a Rita e os meus olhos, uma espingarda"

 

Ele o Poeta, voz da resistência palestina, destacado militante da OLP.

Ela alistou-se nas forças armadas de Israel, depois membro da Mossad.

O abismo entre os dois jovens amantes não parou de crescer. 

O seu Amor não conseguiu sobreviver à realidade das suas vidas. 

Um dia os seus olhos afastaram-se e não se voltaram a ver.

 

Hostil a nossa cidade não nos recebeu de volta 

e nos subúrbios não encontramos onde pernoitar

onde pudéssemos festejar-nos pela última vez. 

Eu poder dizer adeus aos teus olhos de mel 

ao teu corpo e à tua alma de minha gata felina.

 

Ali não havia mais do que apatia. 

O silêncio pesado da casa vazia

tinha tomado o sofá-cama da alegria 

ignorando a pureza do nosso amor.

 

Custa escrever, mas nem a nossa buganvília 

esperou por nós e secou antes da nossa melodia.

"Ah Rita! O que terá afastado os meus olhos dos teus." 

Pense aux autres (Pensa nos outros)

 

Quand tu prépares ton petit-déjeuner, pense aux autres. 

(N'oublie pas le grain aux colombes.) 

 

Quand tu mènes tes guerres, pense aux autres. 

(N'oublie pas ceux qui réclament la paix.)

 

Pensava no tempo ainda tão morno e tão cálido. 

Vestia-se das minhas palavras e dos meus beijos

corria o fecho da saia comprida de linho.

 

Escondia os seus olhos de melaço profundo

por detrás das negras pestanas da noite.

Os lábios pintados com o seu sorriso agridoce

 

Entrevia um amanhã que era definitivo 

um passado sem nós para não recordar.

Sem o nosso amor, sem a nossa alegria. 

Sem nenhuma das nossas promessas.

 

Valeria a pena recomeçar a viver

tentar recriar o nosso mundo sonhado

feito de dedos lisos e de mãos abertas 

de braços meigos e abraços apertados. 

Feitos da nossa biografia perdida.


Quand tu comptes les étoiles pour dormir, pense aux autres. 

(Certains n'ont pas le loisir de rêver.) 

"Pense aux autres". Traduit de l’arabe (Palestine) par Elias Sanbar


Ilusão das palavras

 

Descobri a poesia de Mahmoud Darwich 

- sobretudo a poesia militante e de combate -

através de traduções para francês

nos fins dos anos oitenta do século passado.

 

Mais tarde com o filme-documentário 

Write down, I am an arab (2014)

conheci a vida do poeta e a história de amor 

com a jovem judia Rita (Tamar Ben-Ami).

 

Este filme comoveu-me por acreditar 

que o amor e a paz, a ilusão das palavras 

podem ser mais fortes do que a guerra.

Essa comoção aumentou com a nossa visita 

de sete dias a Israel, Palestina, Terra Santa. 

 

Durante esses dias fiquei a saber que a paz 

e o entendimento ali nunca serão alcançados

não haja ilusões. Não tenhamos ilusões. 

Não quero nem podia morrer sem deixar escrito

sem duas ou três pinceladas do que senti e sinto.

 

Amor e paz - Ilusão das palavras

Budapeste, 28-30 de março 

 

Para o livro "De mim ficam as Palavras"


quinta-feira, 27 de março de 2025

Palavras do eléctrico ou o eléctrico das Palavras / 2

 

Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta

continuarei a escrever. Clarice Lispector



Para o livro "De mim ficam as Palavras"



Um cálice de aguardente

 

Um cálice de aguardente para te trazer de volta 

para me ajudar a guardar-te nos meus braços 

para haver lenha quando as noites frias acabarem 

e da distância as manhãs fechadas abrirem os olhos.

 

Recordar-te como te escondias feminina

como se no prédio fosses a nova inquilina

- Como quem corajosa subias ousada a colina.

 

Recordar-te como desaparecias na neblina

e os teus olhos de gata eram a lamparina

- Feita luz aparecias nua por detrás da cortina.

 

Um cálice de aguardente para te trazer de volta 

tu que dizias que eu era o sal e a tua gasolina

para me ajudar a guardar-te nos meus braços 

resina do meu pinhal sabor da doçura mais fina.


Um prato de lentilhas


Por um prato de lentilhas 

vende o pai e vende a mãe 

vende o avô e vende a avó. 

Vende o cão e vende o sapo.

 

Por um prato de lentilhas 

vende os cornos e a alma

vende a ilusão da mentira 

vende a própria mulher.

 

Hipoteca a vida da filha 

prometida e pré-vendida

ainda antes de nascer 

ainda antes de a fazer.

 

Aqui é um hábito muito antigo 

que por significar abundância 

é comum no primeiro dia do ano  

comer-se um prato de lentilhas. 

Um copo de vinho


Abre os olhos carroça que a mula vai apressada 

e para lá chegar eu tenho tempo de sobra.

Não tanto como Gaudi, o arquitecto de Barcelona 

mas tempo suficiente para parar e para almoçar 

com todos os vagares que a pança merece.

 

A conversa é sempre a mesma sempre condimentada 

a puxar para o meio, abaixo do peito acima do ventre

se não falta nada para dar ao dente e sentar à mesa.

 

Se local novo olhar à volta ver que comem os outros 

pedir para começar meia garrafa, um copo de vinho tinto 

um café e um digestivo para ajudar a digestão.

 

Para ajudar a constatar que as nossas barrigas

são o melhor estímulo para a satisfação ou insatisfação 

dos homens e das mulheres de ontem de hoje de sempre.

Por ser um bom exemplo disso não me vou esconder. 

Uma taça de gelado


Uma taça de gelado italiano para gente gulosa 

com bom gosto porque não há gelado melhor. 

Uma taça de champanhe francês para gente boa

com paladar desenvolvido e dinheiro para gastar. 

 

Uma taça de salada de fruta para amigos da horta 

que trocam um doce de ovos pela natureza-viva

que sabem da importância da saúde e da comida. 

Sabem se agora se cuidam, amanhã tem mais vida.

 

Sabem do grande irmão e outros filhos da puta

as rascas teorias da conspiração teórica e prática

do regresso sufocante orwelliano da mão-morta. 

Mão a menos maçaneta vai bater a outra porta. 

Uma caneca de cerveja


Uma caneca de cerveja alemã com salsichas

as linguiças de Nuremberg com couves roxas  

e repetir a caneca, há coisas piores na vida.

Nem falar do incansável pedinte em mim

a pedinchar e a juntar bases de cerveja.

 

Lembras-te do sítio da primeira cerveja que bebeste comigo?

Não era bebida que estivesses habituada, valeu-me com cerejas

da simpatia com que nos atendiam, como se metiam contigo.

Tínhamos vindo de uma festa para continuamos a celebração. 

 

As voltas que o mundo deu, as canecas que eu já bebi.

Como poderei eu esquecer os seus brincos fantasia

cerejas ou ginjas aos pares a caírem sobre os ombros 

a realçar o seu pescoço alto que convidava a beijar.

 

2024 – 2025…


quarta-feira, 26 de março de 2025

Palavras avulso e a granel


Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.

Fernando Pessoa (Ricardo Reis) 


(Para continuar)

Palavras ou distâncias

 

As últimas semanas serviram para se soltar

libertar-se da teia onde se tinha deixado enfiar.

 

Estava na varanda a fumar um cigarro e a pensar 

não tinha de estar a olhar para o sentido das palavras 

para as segundas leituras das metáforas mais rudes

para as afirmações que pudessem cair mal ou magoar.

 

Pensar devia ser uma grande tontice, escrevê-lo ainda mais 

mas pela primeira vez na vida sentia-se nada discípulo 

quer dizer não ter de estar a olhar para os efeitos colaterais 

das suas ideias, das suas dúvidas e das suas palavras.

 

Palavras escritas em papel, no telemóvel ou no computador.

Palavras, dúvidas ou distâncias que no final podem parar no lixo. 

Repolhinho

 

A imaginação tem coutos que não chegam 

nem aos tornozelos maltratados do irmão.

- Com os ventos do contra clero tão fortes 

quando coitados os bispos já não pensavam 

no coito, no repolho repolhinho por comer.

 

Não podiam acoitar-se por dá aquela palha

com a freira mais tenrinha do convento 

para isso até servia a macia do palheiro 

não fosse o diabo tecê-las, acabar no degredo.

 

Como é costume o mundo mudou para pior

com essa gentalha logo a pensar que é gente.

Põem-se a inventar e a agitar os agitadores 

de coutadas e das noitadas mal dormidas.

 

Esquecem-se que não faziam mais que andar 

em grupo à procura dos ninhos de gambozinos.

Coito ou couto tão diferentes como o dia da noite 

se não houver noites brancas e roxas madrugadas. 

Condicional

 

Para passar no exame de língua

pago a peso de ouro, de rara platina

andou semanas a estudar e praticar

o condicional do verbo bem fazer

ou fazer com muito prazer.

 

Passou com nota máxima e distinção  

com uma resposta que até o professor 

considerou ser um exemplo a seguir. 

 

Sabia que se tivesses os olhos abertos

e olhasses para mim irias guardar na memória

o momento em que os meus lábios se fecharam.

 

Mais tarde quando visses uma fotografia desse dia

irias-te lembrar e também pensarias que ninguém

a não ser nós sabia o que a minha boca fazia. 

Talvez soubesse

 

Talvez soubesse, 

mas parece que não sabia 

que não devia arriscar 

não devia dar um passo 

maior do que a perna. 

 

Mas queria tanto 

dar um salto à canguru 

que o máximo que conseguiu 

foi dar um salto de caranguejo.

 

Para sua grande tristeza 

nunca mais se voltaram a encontrar. 

Cegueira

 

Meu Amor estou no aeroporto, acabei de chegar 

não te disse nada porque quis fazer uma surpresa. 

Sabia muito bem que não podia faltar, estar longe 

estar ausente neste momento tão especial para ti. 

Manda-me a morada para eu dizer ao taxista.

 

Acordou. Tinha adormecido no avião e teve pena 

de acordar, do sonho não continuar, não se realizar.  

No dia seguinte acalentou a derradeira esperança 

que na cidade da paixão o sonho fosse a realidade. 

 

Conclusão de quem anda há muitos anos por aqui 

e vê o que muitos outros não veem ou não querem ver. 

- Não há cego maior do que aquele que o amor não deixa ver 

cego pela cegueira irracional e profunda da ilusão intelectual.

Encurtar lonjuras


Estava a refazer o seu jogo de cintura

para de vez lhe chamar a atenção 

e aos poucos ia perdendo a compostura 

com ofertas de vida e asas de paixão.

 

Estava a rebentar pelas costuras

Com as costas e o resto à mostra 

Com as coxas abertas à lua nova

prontas para encurtar as lonjuras. 

 

Com ela e com os mistérios do amor

aconteceu esse encantamento único 

cada vez que a via mais linda a achava

mais fascinante que no encontro anterior. 

A vida inteira

 

Para lá de todos os êxitos e alegrias 

de fora e de longe não se via 

o que sentia no mais fundo de si.

 

Mas um dia depois de muito caminhar 

bastou um olhar para de vez mudar  

a alma intacta do seu coração mais puro 

que se fez maior para sonhar e descansar.

 

Como se fosse uma história de encantar

para à noite ser vivida e bem contada

encontrou quem sempre procurou 

porque não perdeu a esperança que existia.

 

Por estar há muito tempo à sua espera 

nem que fosse apenas para um toque de dedos 

Um encontro, um dia que valesse a vida inteira.

Tempo das cigarras

 

Era o tempo das cigarras e das cerejas 

tempo das bocas se colarem uma à outra 

com a cola do néctar em flor das cerejeiras. 

- As bocas se colarem sedentas e esfomeadas.

 

Tempo de deixar as línguas dançarem 

ao som da música sensual dos desejos.

Tempo dos lábios amantes se degustarem

ao som da música doce do prazer e do licor.

 

O canto cigarra sedutor do acasalamento 

com os lábios sedosos e o sabor do beijo

e com as almas abraçadas ao sentimento.

- O fascínio de tudo o que é o nosso amor.

Remorsos


Como novidade e prova de amor dizia 

que devido ao seu gradual afastamento  

após troca de mensagens tinham estado 

à conversa ao telefone bastante tempo. 

Conversa que entrou pela noite dentro.

 

Que teve na ponta da língua a vontade 

de lhe falar do seu novo romance 

mas que lhe tinha faltado a coragem 

e ainda tinha pena de terem acabado.

- Queria guardar algo desse passado.

 

Tinha pensado em mudar de vida

ficar apenas com um novelo de fio

mas com este balde de água fria 

ora toma, lá se foram os remorsos 

pelo muito de errado que fazia.  


Exibicionista


Com ousadia e bom gosto não se importava de se mostrar 

de exibicionista exibir-se e realçando o melhor que tinha. 

Com olhos de leigo digo, via-se que era muito e do melhor.

Segundo os livros não devia ser nenhuma Teresa de Calcutá. 

 

Por vezes surpreendia e excitava pela sua transparência

em sentido próprio e figurado, pela sua autenticidade. 

Era tão natural e tão apelativa dos sentidos que os homens

a seguiam como se fossem abelhas de volta do mel mais doce.

 

As amigas gostariam de ser como ela, tinham-lhe inveja. 

Também eu teria muita dor de cotovelo se fosse sua amiga.

- Que bom seria ser seu amigo e conhecê-la mais de perto

para sem desafinar poder-lhe cantar a cancão do bandido.

 

2024… 2025…. 

Palavras do eléctrico ou o eléctrico das Palavras

 

Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta

continuarei a escrever. Clarice Lispector


(vão continuar)

Sentados no eléctrico

 

Estavam sentados no eléctrico e de forma discreta

tocavam e trocavam de joelhos, de mãos e respiração 

tão discretamente que tinha de estar atento.

 

Não me fazer notado e observar com atenção para captar 

apreender toda a íntima magia daqueles momentos 

um local público sem grandes pressas, em movimento.

 

De janelas escancaradas trocavam de olhos e sorrisos 

despiam e vestiam a alma a rebentar de felicidade

não escondiam, mostravam tudo o que lhes ia no coração.

 

Tive pena que saíram antes de mim e não os pude seguir 

ver como caminhavam, abraçados ou de mãos dadas 

beijando-se junto ao castanheiro bravo

com tempo e com vagar ou correndo 

para casa dele ou dela sem tempo de esperar.


Encontrado no chão

 

No dia de hoje o tempo já fez muitas caras 

mas nenhuma é a tua, o teu rosto e o teu sorriso

o rosto lindo que Deus te deu e a vida aperfeiçoou.

 

Assim começava a carta que tinha encontrado no chão 

tinha apanhado o envelope e aberto sem ter autorização.

Li atento e fiquei a saber da intensidade dessa paixão

 

Pensei que aquela carta perdida podia ter sido escrita 

por qualquer um de nós, qualquer um que sente

qualquer um que sonha, qualquer um que ama e é amado.

 

Será que hoje ainda se escrevem cartas de amor?

Será que não passa de conversa de idoso cansado?

- Todas as vidas se escreveram cartas e mensagens

poemas e metáforas de ternura e encantamento.

 


Dar ao chinelo


São tempos de dar ao chinelo 

sem isso não temos sopa 

e algum conduto na mesa 

ouvia dizer à minha avó, à tia Olinda 

já lá vão sessenta anos. 

 

E agora? Está melhor, mas não para todos.

Vivemos tempos de dar ao tamanco 

à sandália de cortiça, andar à chinelada.

 

Sapato novo e chinelo velho

sapato lindo e chinelo feio

rimar apenas para desconversar.

e dar ao pedal enquanto há força.

 

Pasteleira para pastar, para andar devagar 

a pisar ovos, a pastelar, a fazer tempo 

a fazer que faz, a correr para quê?

Pôr tudo em pratos limpos na pastelaria.

 

Acabar por dormir sentado e de pé 

a dormir deitado, inquieto de olho aberto 

deitado com um verdadeiro tesouro ao lado.

  

Combustão


E é eléctrico, imagine-se se fosse a combustão 

muito fogo iria acender, apagar e de novo atiçar  

incendiar o restolho, fazer arder e repetir a dose.

 

Diz-se que foram metros e metros de coisa dentro 

e nunca declinou mais um uma boleia, uma viagem. 

Hoje como ontem, como depois de amanhã 

não se deve meter o bedelho onde não se é chamado. 

 

Confundir alhos com bugalhos e sarilhos com saralhos 

carvalhos e churrascos na churrasqueira de sempre. 

Corno, mas manso, dos mansos com classe e filantropia 

- Um coração do tamanho do mundo à venda na mercearia. 

  

Nesta casa

 

Nesta casa não há nada que se coma? 

Ou que se possa beber 

para enganar o estômago? 

Ajudar a despertar?

 

Não é preciso olhar muito para ver

uma bicicleta parada no meio da sala.

Estar aqui a entreter, a pedalar 

para não perder o equilíbrio 

para não tombar. 

 

Com um olho no burro 

e outro na barriga à mostra 

e de repente acabar por cair  

com pontaria em cima dela.

Dizia: a bicicleta que ele usava era eu. 


Tângera pequena


Tângera é uma laranja mais pequena 

e ancora é uma tangerina maior 

explicava com ar de quem sabe 

por ter laranjeiras no pomar da família.

 

Ir à loja do bairro ou ao supermercado 

era como encontrar-se com o amante 

com grande arcaboiço e grande espingarda.  

- Com ele sexo era mesmo para recordar.

 

Criticado por ter mais olhos que barriga 

porque cada gaveta tinha fruta diferente 

e na frutaria as prateleiras estavam vazias.

Era o caso de a procura ser maior que a oferta. 

 

Marroquina clementina ou laranja de sangue 

a doce acidez do prazer pago a prestações 

de rendas pretas rendinhas vermelhas fetiche. 

Com a utilização da melhor das tradições. 

Ferrovia a menos

 

Não é o pão nosso de cada dia 

nem dia ou noite de cada pão.

Acredita, se fores optimista

o café sabe-te muito melhor.

 

A blusa fica mais cremosa e mais pão 

se não usar detergente, mas sabão.

Os montinhos ficam mais redondinhos

e os moranguinhos mais pontiagudos.

 

Quem entra no hipermercado sabe ao que vai

mas quem entra na estação não sabe quando sai.

É o que acontece quando tens um país 

com autoestradas a mais e ferrovias a menos.

 

Em que homem ou mulher pensei?

De que país estarei eu a falar? 

Dou um rebuçado a quem adivinhar 

e dois a quem não se enganar.

Logo se vê

 

Se o dia promete pouco, não te rales

Se o dia está a dar, deixa-o andar

Se o dia precisa de ti, faz um biscate

Se o dia não ata nem desata, dorme. 

Se tens o carro avariado, vai a pé 

Se a política te irrita, desliga a televisão 

Se já não mandas nada, calça as pantufas 

Se o teu clube te põe triste, muda de mulher. 

 

Se a gata não mia, dá-lhe uma corneta 

Se a porta não abre, entra pela janela 

Se te esqueceste de beijar, aprende línguas

Se não tens emprego, vai para o estrangeiro. 

Quando a loucura dos autocratas com as suas maiorias  

tomar conta do mundo e arredores e já não houver humor 

ou ironia que nos valha e nos entretenha, logo se vê! 

Clito, o Negro


Clito, o negro no campo inclusivo da batalha

na promoção e arte de combater com mestria

deixava magia, razão do texto desta geografia

deixava no ar o fascínio de conquista da poesia. 

 

Pelo grito e pelo aroma da cor, o teu clito é de ouro

mas o dela vale mais porque vem das terras raras.

Olhem o meu é negro, feito de plástico reciclado

e foi comprado em promoção na loja das bugigangas.

 

Clito, o Negro (375 a.C. - 328 a.C.) foi um destacado militar do exército de Alexandre, o Grande e salvou a vida deste na grande Batalha do Grânico (334 a.C). Seis anos mais tarde, durante um banquete em Samarcanda e após violenta discussão, Clito foi morto pelo amigo e venerado Alexandre (Wikipédia)


Teodora de Constantinopla


Se a memória não me deixa ficar mal

quando criança conhecia uma Teodora

era uma colega na escola primária

e coitada da menina era gozada por todos  

- Olha, olha a Teodora, tanto ri como chora.

 

Era uma menina muito envergonhada 

com sardas e cabelo comprido claro

e provavelmente tornou-se uma bela moça.

Estudou direito, fez-se doutora, advogada.  

 

A outra, Teodora de Constantinopla

também conhecida como Teodora do bordel

foi actriz e dançarina, prostituta e comediante.

Imperatriz e esposa do imperador Justino.

 

Tinha talento, era formosa e inteligente 

com bom senso para ela nada era urgente

mas não chegou para convencer muita gente.

 

Que o digam as leituras dos escritos que ficaram da época.

Se não tivesse visitado Istambul e ter-me preparado para a visita

teria perdido alguns detalhes que a tornaram muito mais rica.

Digam lá se a curiosidade e o saber ocupam lugar?

 

2024… 2025…


segunda-feira, 24 de março de 2025

Eco das Palavras

ou a ousadia tonta de me associar a Umberto Eco

Gato

 

"Perguntei-lhe qual era o nome do gato e ele respondeu-me que os gatos

não têm nome porque não são cristãos como os cães" Umberto Eco

 

Caro Mestre, não leve a mal a intromissão 

mas do pouco que Deus me acrescentou 

sei que não é por aí que o gato vai às filhoses.

Estão em grande harmonia e não há jantar sem cão.

 

A não ser que da arranhadela o santo ficou uma fera

e nem a intervenção de Pedro apaziguou a discussão.

Ainda por cima a internet esteve todo o dia de baixa 

e não passou a mensagem do gato a pedir perdão.

 

Boa eucaristia senhor prior e bom jantar de celebração. 

Batize lá o gato no domingo e esqueça a ofensa.

Vai ser um bom cristão vai caçar os ratos na igreja.

O vinho não vai sumir da sacristia. Tenha um bom serão.

 

Sabedoria

 

“O amor é mais sábio do que a sabedoria” Umberto Eco

 

Cada história de amor nasce para não morrer 

não é preciso ser sábio para inventar uma melhor.

O amor é feito de paciência e arte da transpiração 

é feito da sabedoria dos que nasceram para viver.

 

Cada história de amor ou sua fulminante negação 

tem a sua própria época e prioridades a condizer.

Quando as tuas já são outras eu aceito dar o lugar. 

Amigo não atrasa amigo se não contar para a equação.

 

Cada história de amor custa mais decorar do que despir 

e custa mais vestir do que deixar a cama arrefecer 

mas por muitos esforços que faça não vou conseguir 

despir-me da pele que Deus escolheu para comigo trazer.

 

Esta frase aprendi há pouco de uns estrangeiros 

- Antes de criticares põem-te nos meus sapatos.

Eu não posso, não consigo ser quem não sou 

- Ouço a minha voz e sei que por aí eu não vou.

Deus

 

"Deus está morto, a arte deixou de existir, a história 

chegou ao fim e eu próprio não me sinto bem" Umberto Eco

 

Contra a gripe, a febre e a constipação 

contra o mau olhado da desilusão 

não duvide não perca mais tempo. 

Abra uma garrafa de vinho tinto.

 

Beba copo a copo com moderação 

e não se esqueça desta afirmação. 

 

Não um vinho qualquer meio martelado 

um vinho alentejano bem encorpado

como promoção do melhor medicamento. 

Como tributo à terra, à gente e à produção.

 

Beba copo a copo com devoção 

e não se esqueça desta opinião.

 

Caro leitor que nunca me vai ler

até pode não acreditar no que digo 

mas há muitos anos que não tomo 

comprimidos para as dores de cabeça.

 

Em primeiro lugar porque não me dói 

e se for o caso muito raro do contrário 

para começar bebo meio copo de vinho.

Beba com devoção e beba com o coração.

 

Vida

 

"O que é a vida senão a sombra de um sonho fugaz?"  Umberto Eco

 

A minha vida? Eu sempre fui uma boa boca 

e me contentei com o que vinha para a mesa. 

Se a refeição fosse farta como acontecia contigo

aproveitava o repasto e tirava a barriga de misérias.

Se não fosse o caso, era paciente e não me queixava. 

 

Os milagres das entradas das nossas sobremesas 

de tão divinos e tão humanos, eram o paraíso na terra 

eram momentos de amor que nos tornavam imortais.

Eram milagres, não feitos por Deus, mas por nós.

 

Lembras-te quando foi?

Foi numa terça-feira 

a nossa primeira festa 

a nossa primeira cama.

 

O nosso primeiro poema 

o primeiro dia da nossa vida. 

Foi numa terça-feira de março.