2024 - 2025
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
Entre guerras, invasões e bombardeamentos
num mês de junho que merecia muito mais
o primeiro período de férias tinha acabado.
Era segundo as previsões, sem uma brisa
o começo da semana mais quente do ano
com as máximas muito acima dos trinta.
Apesar disso deixei o carro e a gravata em casa
fui de transportes públicos até ao escritório
e poder ler o semanário sobrevivente da oposição.
Esperei na paragem e entrei pela porta da frente
era uma senhora e como costume disse bom dia
sentei-me em frente lugar que dá uma boa visão.
Chamou-me a atenção a sua cuidadosa condução
e mais ainda as suas mãos esguias e elegantes
- As unhas pintadas da motorista do autocarro.
Se fosse noutros tempos não lhe teria apenas dito
obrigado
pela agradável viagem e profissionalismo que demonstrou.
- Teria perguntado se aceitava um café depois do trabalho.
Quem tem mãos de café bebido morno
sem açúcar à mesa depois do almoço
ou já frio por causa das palavras cruzadas.
Quem tem mãos de chá bem quente
bebido aos poucos com a vizinha
enquanto põem as novidades em dia.
Quem tem dedos de fio de crochê
e arte da malha cada vez mais na moda
pode esperar com a migração para o tricô.
Quem tem mãos de plantar rosas
de não se deixar picar pelos espinhos
nem desistir nos subúrbios do primeiro encontro.
Quem tem dedos de erva suave
de doce acariciar a cabeça do seu homem
não deixa a conversa das promessas a meio.
Quem tem mãos de água de lavar alface
em água corrente juntamente com os tomates
para o aperitivo da noite nos festejos da paixão.
Quem tem dedos de desabotoar a camisa
de não se ficar apenas pelas folhas verdes
e descer até ter a massaroca na mão.
Tem de se proteger na primavera e no verão
para não ter as mãos todas esgadanhadas
por tanto tempo de volta das ervas daninhas.
Na rua dela ninguém dizia como ela
como se falar com gosto e convicção
fosse a bandeira que pendurava à janela
Que deixava mostrar alguns seus segredos
enquanto afinava o refrão da nova canção
e decorava as palavras para os festejos
Tinha uma graça única ao encurtar a roupa
esticar e estender a mais íntima na cadeira
deixar para a imaginação a cor da sua coisa
Loisas e buracos de coelhos sentada no sofá
mais parecia estar deitada de perna aberta
jurava que as maçãs do peito sabiam a maracujá
Mostrava quase tudo sem mostrar quase nada
aos que passavam em frente do seu prédio
e olhavam para dentro da alcatifa autoestrada
Olhavam com esperança de ser agora ou nunca
ter a aplicação de usar primeiro e pagar depois
passar as férias da vida na via verde da cama.
Foi à farmácia do bairro pedir um gel
ou uma pomada para aliviar o ardor
que sentia no peixinho vermelho do seu mar
na recolha matinal das rendinhas da pesca.
Eu tenho um creme, uma boa pomada
para esse mal e que vai ajudar
para esse bem que é tão bom ter
disse-lhe segura de si a farmacêutica.
Essa perturbação costuma aparecer
quando a actividade é muita e persistente
quando se tem marido como deve ser
guarda-o, rematou com um sorriso brincalhão.
Vejam lá, o sortudo do meu marido
a ficar com a fama, os louros do meu falcão
pensou, morrendo já de saudades.
Cala-te boca, aguenta-te coração!
No assento traseiro do Mini Morris não havia lugar
e não funcionava a regra inclusiva do cheira bem
de haver sempre lugar para mais uma
se usasse rexina e curtinha mini-saia à maneira.
Ousadias que as avós de hoje sorriem ao lembrar.
Parece que ainda agora há por aí muita avó
para quem a porta afinada da rua não se fechou
e se pode convidar para dançar e adultos namorar.
Muito se dançava e apertava nas festas de garagem
e até se alinhavaram casamentos para a vida inteira.
Sentia-se a pressa de viver para antecipar o futuro.
Vai num pé e vem no outro que ela está à tua espera.
Com os pelos perfeitos bordados a preto e branco
com a calcinha prendada já sentada na calçada.
Ambas portuguesas ambas de qualidade superior.
Moderna mas clássica com um sotaque encantador.
De arte antiga daquela que deixa e fica na memória.
Das descobertas das coisas boas desse grande amor.
Se fosse cenoura seria como uma berinjela
de berbequim na mão de volta da donzela
seria beterraba ou pepino para salada
um quilo de berbigão afogado na panela
para condimentar a vida do soldado sentinela.
Dizia cosmopolita, amassado de tanto calor
- São couves ou nabiças de Lisboa
talvez grelos e grelinhos de Bruxelas
calções e blusas curtas de Varsóvia.
A ver o sol e levar com a chuva em cima.
Na Hungria quando faz sol e chove ao mesmo tempo
diz-se que o diabo está a dar porrada na mulher.
Não, a nenhuma, nem mesmo a mulher do diabo!
Diabo sê por uma vez um bom gajo
aproveita para tomares banho com a chuva
e a boleia do sol para secares depressa.
Corre para a cozinha e faz tu o almoço.
Vais ver como vais gostar e tem tempo
para a melhor sobremesa da tua cara-metade.
Pode parecer um pensamento mal semeado
mas que acalma a alma e distrai os remorsos
que estou a gozar com a má sorte dos outros
com falta de empatia com a pobreza dos pobres.
Esse inferno diário de estar na rua a pedir.
Eu gostaria de sublinhar e deixar escrito
que até para se ser pedinte tem de se ter
algum estilo no andar, alguma classe na voz
ter algum abandono nas roupas das mãos
e um apagão permanente nos olhos do destino.
Se tossimos à bruta sobre o toucinho
devemos pôr a mão da bruxa à frente
escovar a caspa do cabelo com um pente
e cobrir o chão da sala com rosmaninho.
Ofertar, mas evitar tocar a mão de um pedinte.
Uma das formas asseadas de nos desviarmos
é virarmos a cara e saltarmos por cima da miséria
é desconversarmos usando vulgares metáforas
ou verdades redondas, é o estado que tem resolver
a sociedade e não o indivíduo ao dar esmolas.
Nem os pobres nem a pobreza vão acabar.
Dizia há cinquenta anos a minha mãe
- Filho sempre houve ricos e pobres
e sempre haverá, nunca vai mudar.
A minha velhota tinha razão!
O dia acordou farrusco nos seus olhos
anunciava tempestade ou muita chuva.
A noite deitou-se em luz e solidão
adivinhava o adeus final da madrugada?
Monótono o tempo passava vagaroso
lá em casa já todos tinham partido.
De manhã não havia quem fosse preciso
despertar para não se atrasar no trabalho.
A vida tinha-se tornado quase vazia
não tinha de esperar ninguém à porta
ou o tocar do telefone sobre a mesinha
a avisar do atraso e da hora da chegada.
Resignada e em paz pedia a Deus
que quando, fosse rápido e sem demoras
não deixasse más recordações aos seus
e se lembrassem das tantas horas boas.
Pai vem por mim antes que a doença
faça de mim quem eu não sou!
- Filha, irmã, esposa e mãe de 4 crianças. Viveu 48 anos.
Agora que os familiares e tantos amigos
Em triste silêncio e emoção mal contida
Com as condolências de uma rosa branca
A depuseram nas jarras e no tapete da igreja
Junto à sua fotografia repleta de vida
- Tão bem, tão feliz e juvenil que ela estava!
- Agora que tanta gente, tantos amigos
Se juntaram no templo da minha vida
Para se lembrarem e me despedirem
Na casa de Deus que devota frequentei
Como se fosse a minha segunda casa
Onde me preparei para a vida e para a morte.
Deixem-me que seja eu a organizar pela última vez
Recordando os versos tão bem declamados:
- Não me procurem que eu não estou aí
Não chorem por mim que eu não morri.
- Ali está o mar e aqui está o meu barco
Que me há-de navegar ao reino de Deus.
Última mensagem de mãe em sofrimento profundo:
- Quero terminar dizendo do fundo do coração
Que eu seja a última mãe a sepultar a sua filha
Que mais nenhuma mãe ou pai tenha de passar
Pelo que a nossa família passou nos últimos meses.
Bom Deus cuida e toma conta da nossa Bea.
Gioconda Belli: "Nunca pensé que Daniel Ortega
sería un peor tirano que Somoza"
Não basta ser aos vinte anos revolucionário
e aos quarenta ou sessenta ser o contrário.
Não passa de um anticomunismo primário
dirão os comunistas, és um reles reacionário.
Nós vamos caminhar com Marx e o leninismo
não vamos perder nem um minuto contigo
apenas esfregar-te na tromba a bandeira da vitória
e pôr-te no teu lugar, no caixote do lixo da história.
É assim que oferecem de borla e cantando
a alma militante aos novos camaradas Stalin
sejam eles Ortega, Maduro, Xi, Kim Jong ou Putin.
A putina que os pariu, estou-me borrifando.
O quanto eu solidário e à distância
vivi a revolução sandinista!
Nicarágua
(Daqui das margens do Tejo)
Daqui das margens do Tejo
com as ondas-curtas da esperança
vislumbro em segredo Esteli
povoação guerrilheira cercada
pelas forças leais ao governo
muitos seios de linho
muitos sexos de ferro a arder.
À distância tudo indica
ser possível que o massacre
da razão seja sinónimo de futuro.
Quando Esteli cair
as formigas da sublevação
serão sepultadas colectivamente
provavelmente numa mina abandonada.
Agora até o disfarce da morte
vem todas as tardes jogar futebol
brincar às escondidas nas ruas
com as crianças pobres do bairro.
Os sinos da igreja do Bispo de Manágua
dos padres filhos do povo sabemos
nunca mais ficarão em silêncio.
Escrito em outubro de 1978
Talleres de poesía da Nicarágua
1. Tenho um livro Antologia – Talleres de Poesía
documento essencial de uma experiência única
a poesia cultivada em oficinas organizadas
para jovens gente simples poetas populares.
Sobre esta aventura escreveu-se:
“por primera vez se han socializado
los medios de producción poética.”
Poeticamente assim até soa muito bem.
É menos prejudicial e mais difícil que a dita
a colectivização dos meios de produção.
A Nicarágua a Revolução Sandinista
fez parte do meu itinerário romântico-
-libertário de um mundo melhor para todos.
Doce ilusão. Sei muito bem. Pura ilusão.
2. No “Ciclo das Palavras” com 82 textos
vários foram dedicados à Nicarágua
ao Comandante Zero Eden Pastora
à Comandante Dois Dora María Téllez
ao poeta e sacerdote católico Ernesto Cardenal
à cidade de Esteli e a outros momentos
dos avanços e recuos no cerco libertário a Somoza.
Os três há muito que optaram pela dissidência activa
por coerência e em ruptura com o sandinismo oficial...
Um excerto. Escrito em outubro - novembro de 2007
Eu mudei muito desde 1978-1979, mas o camarada
Daniel Ortega com a sua tirania mudou muito mais.
Sinto um nojo profundo por este tirano, por
este ditador.
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