quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Palavras avulso e a granel / 5

 

2024 - 2025


Para o livro "De mim ficam as Palavras"

As unhas pintadas da motorista do autocarro

 

Entre guerras, invasões e bombardeamentos

num mês de junho que merecia muito mais

o primeiro período de férias tinha acabado.

 

Era segundo as previsões, sem uma brisa

o começo da semana mais quente do ano

com as máximas muito acima dos trinta.

 

Apesar disso deixei o carro e a gravata em casa 

fui de transportes públicos até ao escritório 

e poder ler o semanário sobrevivente da oposição.

 

Esperei na paragem e entrei pela porta da frente 

era uma senhora e como costume disse bom dia 

sentei-me em frente lugar que dá uma boa visão.

 

Chamou-me a atenção a sua cuidadosa condução 

e mais ainda as suas mãos esguias e elegantes

- As unhas pintadas da motorista do autocarro.

 

Se fosse noutros tempos não lhe teria apenas dito obrigado 

pela agradável viagem e profissionalismo que demonstrou.

- Teria perguntado se aceitava um café depois do trabalho. 

De volta das ervas daninhas

 

Quem tem mãos de café bebido morno

sem açúcar à mesa depois do almoço 

ou já frio por causa das palavras cruzadas.

 

Quem tem mãos de chá bem quente 

bebido aos poucos com a vizinha 

enquanto põem as novidades em dia.

 

Quem tem dedos de fio de crochê 

e arte da malha cada vez mais na moda 

pode esperar com a migração para o tricô. 

 

Quem tem mãos de plantar rosas 

de não se deixar picar pelos espinhos 

nem desistir nos subúrbios do primeiro encontro.

 

Quem tem dedos de erva suave

de doce acariciar a cabeça do seu homem  

não deixa a conversa das promessas a meio.

 

Quem tem mãos de água de lavar alface

em água corrente juntamente com os tomates

para o aperitivo da noite nos festejos da paixão. 

 

Quem tem dedos de desabotoar a camisa

de não se ficar apenas pelas folhas verdes

e descer até ter a massaroca na mão. 

 

Tem de se proteger na primavera e no verão

para não ter as mãos todas esgadanhadas 

por tanto tempo de volta das ervas daninhas. 

Via verde


Na rua dela ninguém dizia como ela 

como se falar com gosto e convicção 

fosse a bandeira que pendurava à janela

 

Que deixava mostrar alguns seus segredos 

enquanto afinava o refrão da nova canção 

e decorava as palavras para os festejos

 

Tinha uma graça única ao encurtar a roupa 

esticar e estender a mais íntima na cadeira 

deixar para a imaginação a cor da sua coisa

 

Loisas e buracos de coelhos sentada no sofá 

mais parecia estar deitada de perna aberta

jurava que as maçãs do peito sabiam a maracujá

 

Mostrava quase tudo sem mostrar quase nada

aos que passavam em frente do seu prédio 

e olhavam para dentro da alcatifa autoestrada 

 

Olhavam com esperança de ser agora ou nunca 

ter a aplicação de usar primeiro e pagar depois 

passar as férias da vida na via verde da cama.  

Foi à farmácia

 

Foi à farmácia do bairro pedir um gel 

ou uma pomada para aliviar o ardor 

que sentia no peixinho vermelho do seu mar

na recolha matinal das rendinhas da pesca.

 

Eu tenho um creme, uma boa pomada 

para esse mal e que vai ajudar 

para esse bem que é tão bom ter 

disse-lhe segura de si a farmacêutica.

 

Essa perturbação costuma aparecer 

quando a actividade é muita e persistente 

quando se tem marido como deve ser 

guarda-o, rematou com um sorriso brincalhão. 

 

Vejam lá, o sortudo do meu marido 

a ficar com a fama, os louros do meu falcão 

pensou, morrendo já de saudades.

Cala-te boca, aguenta-te coração! 

As avós de hoje sorriem ao lembrar


No assento traseiro do Mini Morris não havia lugar 

e não funcionava a regra inclusiva do cheira bem

de haver sempre lugar para mais uma

se usasse rexina e curtinha mini-saia à maneira.

Ousadias que as avós de hoje sorriem ao lembrar.

 

Parece que ainda agora há por aí muita avó 

para quem a porta afinada da rua não se fechou 

e se pode convidar para dançar e adultos namorar.

Muito se dançava e apertava nas festas de garagem 

e até se alinhavaram casamentos para a vida inteira.

 

Sentia-se a pressa de viver para antecipar o futuro.

Vai num pé e vem no outro que ela está à tua espera.

Com os pelos perfeitos bordados a preto e branco 

com a calcinha prendada já sentada na calçada.


Ambas portuguesas ambas de qualidade superior.

Moderna mas clássica com um sotaque encantador.

De arte antiga daquela que deixa e fica na memória. 

Das descobertas das coisas boas desse grande amor. 

O diabo a dar porrada na mulher


Se fosse cenoura seria como uma berinjela 

de berbequim na mão de volta da donzela 

seria beterraba ou pepino para salada

um quilo de berbigão afogado na panela 

para condimentar a vida do soldado sentinela. 

 

Dizia cosmopolita, amassado de tanto calor 

- São couves ou nabiças de Lisboa

talvez grelos e grelinhos de Bruxelas

calções e blusas curtas de Varsóvia.

A ver o sol e levar com a chuva em cima. 

 

Na Hungria quando faz sol e chove ao mesmo tempo 

diz-se que o diabo está a dar porrada na mulher.

Não, a nenhuma, nem mesmo a mulher do diabo! 

 

Diabo sê por uma vez um bom gajo 

aproveita para tomares banho com a chuva 

e a boleia do sol para secares depressa.

 

Corre para a cozinha e faz tu o almoço.

Vais ver como vais gostar e tem tempo 

para a melhor sobremesa da tua cara-metade.

Acalma a alma e distrai os remorsos

 

Pode parecer um pensamento mal semeado 

mas que acalma a alma e distrai os remorsos

que estou a gozar com a má sorte dos outros 

com falta de empatia com a pobreza dos pobres.

Esse inferno diário de estar na rua a pedir.

 

Eu gostaria de sublinhar e deixar escrito

que até para se ser pedinte tem de se ter 

algum estilo no andar, alguma classe na voz

ter algum abandono nas roupas das mãos 

e um apagão permanente nos olhos do destino.

 

Se tossimos à bruta sobre o toucinho 

devemos pôr a mão da bruxa à frente 

escovar a caspa do cabelo com um pente 

e cobrir o chão da sala com rosmaninho.

Ofertar, mas evitar tocar a mão de um pedinte. 

 

Uma das formas asseadas de nos desviarmos 

é virarmos a cara e saltarmos por cima da miséria 

é desconversarmos usando vulgares metáforas 

ou verdades redondas, é o estado que tem resolver 

a sociedade e não o indivíduo ao dar esmolas. 

 

Nem os pobres nem a pobreza vão acabar. 

Dizia há cinquenta anos a minha mãe 

- Filho sempre houve ricos e pobres 

e sempre haverá, nunca vai mudar. 

A minha velhota tinha razão! 

Pai vem por mim


O dia acordou farrusco nos seus olhos 

anunciava tempestade ou muita chuva.

A noite deitou-se em luz e solidão 

adivinhava o adeus final da madrugada?

 

Monótono o tempo passava vagaroso 

lá em casa já todos tinham partido. 

De manhã não havia quem fosse preciso 

despertar para não se atrasar no trabalho.

 

A vida tinha-se tornado quase vazia 

não tinha de esperar ninguém à porta 

ou o tocar do telefone sobre a mesinha 

a avisar do atraso e da hora da chegada.

 

Resignada e em paz pedia a Deus 

que quando, fosse rápido e sem demoras

não deixasse más recordações aos seus 

e se lembrassem das tantas horas boas. 

 

Pai vem por mim antes que a doença 

faça de mim quem eu não sou!


Singela Oração a Bea

- Filha, irmã, esposa e mãe de 4 crianças. Viveu 48 anos.

 

Agora que os familiares e tantos amigos 

Em triste silêncio e emoção mal contida

Com as condolências de uma rosa branca 

A depuseram nas jarras e no tapete da igreja 

Junto à sua fotografia repleta de vida 

- Tão bem, tão feliz e juvenil que ela estava!

 

- Agora que tanta gente, tantos amigos 

Se juntaram no templo da minha vida

Para se lembrarem e me despedirem 

Na casa de Deus que devota frequentei

Como se fosse a minha segunda casa

Onde me preparei para a vida e para a morte.

 

Deixem-me que seja eu a organizar pela última vez

Recordando os versos tão bem declamados:

- Não me procurem que eu não estou aí

Não chorem por mim que eu não morri.

- Ali está o mar e aqui está o meu barco 

Que me há-de navegar ao reino de Deus.

 

Última mensagem de mãe em sofrimento profundo:

- Quero terminar dizendo do fundo do coração 

Que eu seja a última mãe a sepultar a sua filha

Que mais nenhuma mãe ou pai tenha de passar 

Pelo que a nossa família passou nos últimos meses.

Bom Deus cuida e toma conta da nossa Bea.

Um nojo profundo por este tirano


Gioconda Belli: "Nunca pensé que Daniel Ortega

sería un peor tirano que Somoza"


Não basta ser aos vinte anos revolucionário

e aos quarenta ou sessenta ser o contrário.

Não passa de um anticomunismo primário

dirão os comunistas, és um reles reacionário.


Nós vamos caminhar com Marx e o leninismo

não vamos perder nem um minuto contigo

apenas esfregar-te na tromba a bandeira da vitória

e pôr-te no teu lugar, no caixote do lixo da história.

 

É assim que oferecem de borla e cantando

a alma militante aos novos camaradas Stalin

sejam eles Ortega, Maduro, Xi, Kim Jong ou Putin.

A putina que os pariu, estou-me borrifando.

 

O quanto eu solidário e à distância 

vivi a revolução sandinista!


Nicarágua

(Daqui das margens do Tejo)

Daqui das margens do Tejo
com as ondas-curtas da esperança
vislumbro em segredo Esteli
povoação guerrilheira cercada
pelas forças leais ao governo
muitos seios de linho
muitos sexos de ferro a arder.

À distância tudo indica
ser possível que o massacre
da razão seja sinónimo de futuro.
Quando Esteli cair
as formigas da sublevação
serão sepultadas colectivamente
provavelmente numa mina abandonada.

Agora até o disfarce da morte
vem todas as tardes jogar futebol
brincar às escondidas nas ruas
com as crianças pobres do bairro.
Os sinos da igreja do Bispo de Manágua
dos padres filhos do povo sabemos
nunca mais ficarão em silêncio.

Escrito em outubro de 1978


Talleres de poesía da Nicarágua


1. Tenho um livro Antologia – Talleres de Poesía
documento essencial de uma experiência única
a poesia cultivada em oficinas organizadas
para jovens gente simples poetas populares.

Sobre esta aventura escreveu-se:
“por primera vez se han socializado
los medios de producción poética.”
Poeticamente assim até soa muito bem.
É menos prejudicial e mais difícil que a dita
a colectivização dos meios de produção.

A Nicarágua a Revolução Sandinista
fez parte do meu itinerário romântico-
-libertário de um mundo melhor para todos.
Doce ilusão. Sei muito bem. Pura ilusão.

2. No “Ciclo das Palavras” com 82 textos
vários foram dedicados à Nicarágua
ao Comandante Zero Eden Pastora
à Comandante Dois Dora María Téllez
ao poeta e sacerdote católico Ernesto Cardenal
à cidade de Esteli e a outros momentos
dos avanços e recuos no cerco libertário a Somoza.

Os três há muito que optaram pela dissidência activa
por coerência e em ruptura com o sandinismo oficial...

Um excerto. Escrito em outubro - novembro de 2007


Eu mudei muito desde 1978-1979, mas o camarada 

Daniel Ortega com a sua tirania mudou muito mais. 

Sinto um nojo profundo por este tirano, por este ditador.

 

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