quinta-feira, 27 de março de 2025

Palavras do eléctrico ou o eléctrico das Palavras / 2

 

Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta

continuarei a escrever. Clarice Lispector



Para o livro "De mim ficam as Palavras"



Um cálice de aguardente

 

Um cálice de aguardente para te trazer de volta 

para me ajudar a guardar-te nos meus braços 

para haver lenha quando as noites frias acabarem 

e da distância as manhãs fechadas abrirem os olhos.

 

Recordar-te como te escondias feminina

como se no prédio fosses a nova inquilina

- Como quem corajosa subias ousada a colina.

 

Recordar-te como desaparecias na neblina

e os teus olhos de gata eram a lamparina

- Feita luz aparecias nua por detrás da cortina.

 

Um cálice de aguardente para te trazer de volta 

tu que dizias que eu era o sal e a tua gasolina

para me ajudar a guardar-te nos meus braços 

resina do meu pinhal sabor da doçura mais fina.


Um prato de lentilhas


Por um prato de lentilhas 

vende o pai e vende a mãe 

vende o avô e vende a avó. 

Vende o cão e vende o sapo.

 

Por um prato de lentilhas 

vende os cornos e a alma

vende a ilusão da mentira 

vende a própria mulher.

 

Hipoteca a vida da filha 

prometida e pré-vendida

ainda antes de nascer 

ainda antes de a fazer.

 

Aqui é um hábito muito antigo 

que por significar abundância 

é comum no primeiro dia do ano  

comer-se um prato de lentilhas. 

Um copo de vinho


Abre os olhos carroça que a mula vai apressada 

e para lá chegar eu tenho tempo de sobra.

Não tanto como Gaudi, o arquitecto de Barcelona 

mas tempo suficiente para parar e para almoçar 

com todos os vagares que a pança merece.

 

A conversa é sempre a mesma sempre condimentada 

a puxar para o meio, abaixo do peito acima do ventre

se não falta nada para dar ao dente e sentar à mesa.

 

Se local novo olhar à volta ver que comem os outros 

pedir para começar meia garrafa, um copo de vinho tinto 

um café e um digestivo para ajudar a digestão.

 

Para ajudar a constatar que as nossas barrigas

são o melhor estímulo para a satisfação ou insatisfação 

dos homens e das mulheres de ontem de hoje de sempre.

Por ser um bom exemplo disso não me vou esconder. 

Uma taça de gelado


Uma taça de gelado italiano para gente gulosa 

com bom gosto porque não há gelado melhor. 

Uma taça de champanhe francês para gente boa

com paladar desenvolvido e dinheiro para gastar. 

 

Uma taça de salada de fruta para amigos da horta 

que trocam um doce de ovos pela natureza-viva

que sabem da importância da saúde e da comida. 

Sabem se agora se cuidam, amanhã tem mais vida.

 

Sabem do grande irmão e outros filhos da puta

as rascas teorias da conspiração teórica e prática

do regresso sufocante orwelliano da mão-morta. 

Mão a menos maçaneta vai bater a outra porta. 

Uma caneca de cerveja


Uma caneca de cerveja alemã com salsichas

as linguiças de Nuremberg com couves roxas  

e repetir a caneca, há coisas piores na vida.

Nem falar do incansável pedinte em mim

a pedinchar e a juntar bases de cerveja.

 

Lembras-te do sítio da primeira cerveja que bebeste comigo?

Não era bebida que estivesses habituada, valeu-me com cerejas

da simpatia com que nos atendiam, como se metiam contigo.

Tínhamos vindo de uma festa para continuamos a celebração. 

 

As voltas que o mundo deu, as canecas que eu já bebi.

Como poderei eu esquecer os seus brincos fantasia

cerejas ou ginjas aos pares a caírem sobre os ombros 

a realçar o seu pescoço alto que convidava a beijar.

 

2024 – 2025…