terça-feira, 1 de abril de 2025

Confissão

 

Confissão de quem está mais para lá do que para cá:

Quando acabar, acabou-se, até lá vou escrevendo, respirando

acaba-se mais cedo se não respirar, se não escrever. 

 

Com as mãos da poesia estou a construir a minha nova casa.  

 

A casa: "De mim ficam as Palavras" com 

- Palavras avulso e a granel 

- Palavras do eléctrico ou Eléctrico das Palavras 

e com os jardins, hortas e árvores de fruto de outros textos à volta.  


Palavras avulso e a granel / 2

 


Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.

Fernando Pessoa (Ricardo Reis)


Para o livro "De mim ficam as Palavras"


Menú semanal


Se eu posso fazer um pequeno pedido 

por favor com esse ar desengonçado 

mostra mais um pouco da tua barriga 

senta-te como vieste despreocupada 

com os pratos e o sorriso na bandeja.

 

O código da pulseira encriptado no olhar 

o telemóvel na mão e ao pescoço o cartão 

a roçar na blusa da roca da rocha da praia 

formação continental de pedra volumosa 

com o fio de algodão enrolado à tentação.

 

Passagens virtuais e realidades paralelas 

ou outra coisa qualquer, os meus olhos 

estavam como lapas coladas ao umbigo 

agarradas em pensamentos de fome 

a esse pedacinho menú da tua pele.

 

Menú semanal do prato com mais saída

de quem ao sol já passou boas horas 

dizem o sol quando nasce é para todos 

e da luz o meu almoço sabe-me melhor.

Assim começava o meu texto de hoje… 

No estádio

 

No estádio onde decorria o jogo 

não estava sozinho em campo.

Dava nas vistas e destacava-se 

fosse das bancadas ou no relvado.

 

Pela qualidade do seu bom jogo 

na arte via-se estar noutro patamar.

Excelente e adulto toque de bola

era também o mais expansivo.

 

Treinava apenas quando podia 

mas quando o fazia era com tudo.

Chegou ao preferido da multidão.

Assim se fez um grande campeão.


Tempos de ficar calado

 

Fora de mim e fora de nós 

a coisa por aqui já esteve melhor 

mas também já esteve muito pior.

 

Os camaradas continuam o projecto 

do esplendor de humanismo libertador 

Mentiroso sou eu e não minto tanto.

 

Do lado de lá do oceano 

a casa é branca de nome 

na verdade, é casa do louco. 

Louco que se não parar 

não vai deixar pedra sobre pedra 

e é capaz de acabar com o mundo.

Senhoras e senhores 

mesmo que nada mude

não são tempos de ficar calado.


Barriga ao balcão


Na pele da dúvida pôs-se a pensar 

a matutar antes de vestir o pijama 

- Será que tenho alma de galinha 

vida de pato, nervos de serpente 

cabeça de porco e espinha de peixe?

 

No iPhone quero escrever século 

e por me ter esquecido do acento 

sem mais sugere-me sex ou sexo.

Devo ser o culpado, deve imaginar 

que não passo de um velho tarado.

 

No final é tudo uma questão 

de encostar a barriga ao balcão 

quem está autorizado pelo regime 

a pôr as mãos todas no tacho 

e refrescar os pés na bacia de zinco. 

Deixar de ser parvo


Descascar favas e ervilhas

Partir nozes e amêndoas 

Lavar e limpar pratos. 

 

Encher e despejar copos

Mover mundos e fundos 

Correr listas e pistas.

 

Preparar o almoço de pargo

Acender o fogão a lenha 

E no fim deixar de ser parvo. 

Em tarde de primavera


A poesia de hoje apenas faz sentido 

se for dirigida à entrega e à conquista 

escrita para ser lida e depois esquecida.

Dizia com um sorriso sábio e maroto.

 

Seguindo as orientações do seu professor 

que tão bem sabia como formar e formatar

guia espiritual na grande avenida da vida

a irradiação solar compensava-se em géneros.

 

Para o dia de festa acabar em beleza

pedia um sabonete, um pente e chinelos

fazia seguro dos pedidos serem atendidos

que a devoção tudo faria para os satisfazer.

 

Tempos de ser protegido das más notícias 

como quando não aceitou a oferta das danças. 

Da aventura que em segredo tinha começado 

com outro em tarde de primavera no outono.  

 

A poesia de ontem era escrita em pergaminho.

Hoje está escrita no rosto, escrita no teu corpo. 

Lavar os pés


Ser livre é não ter de se rebaixar 

de beijar, lavar e secar os seus pés 

porque tem o hábito de não ser barato

permitir-se só pelo seu costume de mandar.

 

Ter a liberdade de as pilhas recargar

com modernos carregadores e marchar 

porque quer e porque pensa na família 

voltar a casa a tempo de fazer o jantar.

 

Saber que os tempos de Platão 

foram, mas há muito que já não são

não estar para perder o seu tempo

Se fosse eu também não estaria.

 

Entrou a despachar e nem se sentou

ao balcão pediu um copo de vinho branco

pão caseiro azeitonas e queijo francês. 

Toca a andar que se fazia tarde para chegar. 

Cresceu com outra vida

 

A sua história merece ser contada. 

Nasceu num dia de abençoado 

num mês com futuro e com passado.

 

Cresceu entre a serra e o mar

rios e paisagens de deslumbrar

socializou-se com outro tipo de vida.

 

Fizesse o que fizesse tudo lhe saía bem.

Por vezes parecia que abusava da sorte 

que deus lhe destinou para o seu caminho.

 

Em tempos recentes de fios, teias e malhas

escrevia muito bem, tinha o seu público

e um mestre que lia, apoiava e corrigia.

 

Um dia de inverno, para pena de muitos

decidiu abandonar a escrita, deixar de escrever 

porque o mestre leitor deixou de aparecer.


Na praça não havia outro


Sobressaía pelo corte de cabelo 

muito à frente do seu tempo.

Pelo olhar e sorriso encantador

na praça não havia outro.

 

Sobressaía pela sua silhueta

pela sua roupa apertada 

assentava que nem uma luva

parecia toda ela feita à medida.

 

Mostrava-se, mas com moderação 

e não esticava a corda da ousadia.

Sem se assumir caudal fácil ou vulgar

era para muitos o rio da imaginação. 

Jogadora de xadrez

 

Era exímia jogadora de xadrez 

conseguia combinar para vencer

uma apaixonada por simultâneas.

Jogadora em vários tabuleiros.

 

Estava com ele mas alternava  

como livre sempre fez na vida.

Ganhou-lhe por isso o gosto 

e já não queria outra conversa.

 

Com tanto estilo e presença 

de muito competir e praticar

devia ser ela monitora a ensinar 

e não ter um treinador para aturar.

 

É assim que tu me vês 

será assim que eu sou 

ou será assim que tu és?


2024 - 2025


Em "Palavras avulso e a granel"

Para o livro "De mim ficam as Palavras"