segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Palavras avulso e a granel / 6

 

Segue o teu destino 

Rega as tuas plantas 

Ama as tuas rosas. 

Fernando Pessoa (Ricardo Reis) 

 

 

2024 - 2025 

Para o livro "De mim ficam as Palavras"


Aqui tens o mapa

 

Uma segunda com sabor a domingo

Com cara de haver tempo para tudo.

Com um sorriso vermelho nos lábios

E uma promessa de entrega nos olhos.


“Vinha dizer que já não estou contigo

Que este amor singular já não é nosso

Vinha dizer adeus, mas já não digo

Vinha dizer adeus, mas já não posso”*


Nestes dias de incertezas e alvoroço

O que diz e sente o teu pensamento?

Fala-me do sentimento de solidão e alento

Dos sentimentos de um amor verdadeiro.


Caminhávamos para a floresta passo apressado

E os pássaros em dezembro e com este frio

Continuavam a cantar para nos aquecer as almas

Para nos comover e quase nos levar até às lágrimas.


Uma certeza no meio da minha imensa gratidão

- Aqui tens o mapa, o trilho do meu coração.

*Da Poetisa Rosa Lobato de Faria


Um beijo de saudade

 

Da angústia que subia pelos pensamentos 

pela alma acima e à volta tudo inundava

do mundo que até ontem funcionava 

que do nada perdeu a luz, perdeu o brilho 

e sem piedade parecia estar a desmoronar-se.

 

Nesses momentos de grande aflição 

de procura de uma mão, de uma voz amiga 

nada terá ficado da vida, das palavras 

fraternas e solidárias que não disseram 

e das mensagens que não trocaram.

 

Mesmo que se esteja no fim da jornada 

a imaginação faz avivar o calor dos olhos

sentir a doçura da pele, o sabor dos corpos

que amanhã pode começar outra aventura.

Um beijo de saudade carregado de nós.


Soneto lua e mar

 

Aimer à perdre la raison 

Aimer à n’en savoir que dire. Louis Aragon 

 

Que vão dizer quando nós já cá não estivermos

o que vão pensar de nós e do amor que vivemos?

Eram dias e semanas, meses à espera de um só dia

e eu cultivava rosas e dálias que depois te oferecia.

 

Passeávamos pela praia guardados pelo nevoeiro 

falávamos da lua nova como quem come um gelado. 

Olhos nos olhos gostávamos de interpretar o mar.

- Parece que se esqueceram do mais importante - 

este mar nunca descansa, não é defeito, é feitio.

 

Pequenos e mornos, seguros e cálidos, os seus dedos 

inquietos, lisos e suaves, aventureiros e atrevidos 

descobriam e tocavam, acariciavam e avivavam o rosto 

o pescoço, o peito e os mamilos, as pernas e as coxas 

e mais em cima e mais dentro, as coisinhas mais húmidas.


Primeira noite


Nós não podemos negar quem fomos

o que juntos fizemos, como nos amamos.

Sabemos chegou a hora que a partir de agora 

o caminho faz-se dia a dia, mágoa a mágoa.

 

Faz-se lágrima a lágrima, passo a passo 

um para um lado e o outro para o outro.

Não podemos negar as nossas vidas

apagar o nosso amor nem o nosso passado 

pois é tudo o que fica do nosso património. 

 

Estou certo que as cinzas da fogueira 

da nossa paixão ardente e verdadeira 

por muito tempo ainda vão ficar mornas.

Vão ficar quentes, vão continuar nossas 

como foram no passeio do primeiro dia 

no fogo da primeira tarde, da primeira noite.  


A festa da ginjinha

 

Há muitos anos atrás o inverno estava ameno.

Decidiram perder-se por Lisboa, pelo Rossio.

Felizes e anónimos pareciam dois adolescentes.

O amor é assim, rejuvenesce e contradiz a idade.

 

No segundo dia compraram dois cartuchos de castanhas

assadas que acompanharam com copinhos de ginjinha

bebida à porta, em frente de "A Ginjinha" da nossa história

no Largo de S. Domingos onde se beijaram sem vergonha.

 

Soube tão bem a degustação alfacinha ao cair da tarde

que regressaram a casa a pé e até se esqueceram

que cúmplices no largo tinham combinado pelo olhar 

uma celebração até lhes dar a fome para uma ceia tardia.

 

A ginjinha fez tanto sono que a festa foi adiada

para o despertar, para a manhã do dia seguinte.

Nenhuma ginjinha era tão saborosa e tão excitante

como o licor da doce ginjinha da moça madura.

 

Bons momentos que recordam com emoção.

Hoje nada é como foi, as castanhas assadas

ou em pleno inverno os beijos quentes de verão.

Eram tempos de provar as deliciosas ginjinhas.


Uma boa semana

 

Pode parecer uma ideia semeada à pressa 

para acalmar a alma e afastar os remorsos

que não se importa com a má sorte dos outros 

que dá pouca atenção à pobreza dos pobres  

a esse inferno diário de estar na rua a pedir. 

Não vai o machado e descansam as costas.

 

Eu estava a pensar no heroísmo dos ucranianos 

que quase quatro anos depois da brutal invasão 

pela Rússia continuam a resistir sem capitulação 

a defender a sua soberania e os seus direitos. 

Com tantos idiotas úteis foi o que me ocorreu.

 

Sim, ver a corrida da neta de 5-6 anos e do avô 

para apanhar o autocarro que os esperava 

de porta aberta com um sorriso e a saudação 

do motorista do bairro que já os conhecia 

foi a melhor cena que hoje podia ter visto. 

Meus amigos, esta só pode ser uma boa semana.


Idade da reforma


Quando se chega à idade da reforma

faz-se um novo balanço da vida vivida 

olha-se mais para trás, para o que foi feito 

e menos para o presente que parece fugir 

para o que está por começar e concluir.

 

Estamos em dezembro, penso e escrevo 

é último mês do ano, não o último da vida 

sem resignação, com ideias e com esperança.

 

Lúcido sem arrependimentos nem amarguras  

pronto para abrir a janela, a porta que me leva 

para o quintal, para o jardim das lembranças.

 

Uma longa introdução para chegar onde queria. 

Há uma canção francesa com mais de meio século 

para a qual desde criança guardei como um desejo 

de inventar a tradução que falasse do meu coração. 

O que valeria a vida sem os sonhos e a melancolia? 


Dar ao chinelo

 

São tempos de dar ao chinelo, sem isso 

não temos sopa e algum conduto na mesa 

muitos não sabem o que é ter tão pouco.

Ouvi tantas vezes à minha avó, à tia Olinda.

 

E agora? Está melhor, mas não para todos.

Vivemos tempos de pressas, de dar ao tamanco 

à sandália de cortiça, de andar à chinelada

dar ao pedal enquanto nas pernas houver força.

  

Pasteleira para pastar, para andar mais devagar 

a pisar ovos, em lento pastelar, a fazer tempo 

bem na vida a fazer que faz, correr para quê?

Pôr tudo em pratos limpos para poder descansar.

 

Acabar por dormir sentado ou ficar firme de pé 

a dormir deitado, inquieto de olho meio aberto 

como um cão, com um precioso tesouro ao lado

e para poder rimar, beber uma boa xícara de café. 


E tu de onde?

 

Sabedoria tinha mais num só dedo

do que acumulado o saber bafiento

das pontas do cabelo à ponta dos pés

à narrativa do calmeirão macambúzio.

 

Raramente sabia como se comportar

e pela antecipação tentava impressionar

com frases sonantes de conteúdo vazio

dos que pensam pouco, mas falam muito.

 

Diz, quem foi que ao ouvido te convenceu

que até já a formiga tem catarro e as pulgas

nascem com asas de minhocas voadoras

são avós de moscas e netas de morcegos.

 

“Egy kút csak fölülről kap fényt. Az öregség  gp a múltból.

Um poço apenas de cima recebe a luz. A velhice do passado.”

Örkény István. Vozeirão e tu de onde recebes a luz?


Na nossa memória

Para Ricardo Farrú, Poeta e Irmão do Chile


Lembro-me na universidade das manhãs e tardes bem passadas  

das noites dos encontros poéticos com exilados e amigos 

em castelhano e regados a tinto Bikavér, o nosso vinho magyar.

A importância decisiva dos sapatos, das botas se inverno 

conhecerem o caminho mais direito para casa, para a cama.

 

Apesar de haver um lá longe e um cá, de muita coisa para mudar 

éramos muito mais livres do que nos dias de hoje convém escrever.

A vida nunca parou e mudou para melhor, depois com o tempo 

à vez, fomos despindo e vestindo as ilusões e o seu contrário 

ou nem uma coisa nem outra, apenas a experiência da idade.

 

Meus caros, aqui e agora gostaria de deixar escrito 

sem medo nem capitulação do politicamente correto

porra para a ditadura da manada, para a submissão dos rebanhos 

a obediência ao pensamento vigente do que pensam os outros.

A vergonha nenhuma, que se junta ao nojo e a má-fé do sofismo.

 

Talvez seja do algoritmo digital enfurecido do troglodita 

palavra tantas vezes usada pelo nosso amigo Daniel 

ele que nem podia olhar nos olhos porque não havia porta 

que não se abrisse e onde ele com gosto entrava.

Partiu muito cedo, mas ficou para sempre na nossa memória.