terça-feira, 6 de maio de 2025

Palavras avulso e a granel / 4


Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.

Fernando Pessoa (Ricardo Reis)


2024 - 2025 

Se nas montanhas

 

Que queres de um campo de urtigas? 

Searas de trigo, vinhas e cachos de uvas?

Pão e vinho? Em que mundo vives? 

Quando amanhã de vez nos faltar a água  

mata a sede com as ervas secas do velho rio.

 

Os mais clássicos lavam as meias à mão 

os outros mais modernos lavam-nas ao pé.

Os mais agressivos preferem a pontapé 

eu fico com elas calçadas como inspiração.

 

Aprendi recentemente um conceito novo 

sobre a corrupção vertical e horizontal.

Sentada e nua jurava por toda a sua roupa 

ser apenas transparente como a arte erótica.

 

Se nas montanhas não apanhastes chuva 

desce até ao vale e colhe malmequeres

junta os pedaços de sol com carinho  

e da planície do coração oferece o raminho 

a quem ansiosa te espera apaixonada.


Palavras avulso (soneto)

 

Os outros não sabiam e eles não queriam

que se soubesse e fosse motivo de conversa 

que antes do primeiro encontro já se conheciam 

como se tivessem dez verões de namoro.

Como se vivessem juntos há muito anos.

 

Persistente a paixão abriu todas as portas 

e foi devidamente documentada e comprovada.

A doçura das suas palavras avulso e amargas

foi detalhadamente divulgada e promovida.

 

A festa que anunciava foi apresentada 

comunicada pelos olhos lindos da remetente 

apreciada e valorizada pelo destinatário eleito.

 

Foi como sempre precisa e criativa e inventiva 

como um espelho que à luz reflecte e ilumina.


O tu o nadie

 

Simplíssimo tributo a Jorge Mario Bergoglio

mais conhecido por Francisco, Papa do povo.

 

"O tu o nadie" escreveu Jorge a Amalia

quando tinha apenas 12 anos e acrescentou

"Si no me caso con vos, me hago cura".

 

Foi certamente um puro sentimento

uma linda história de amor de criança

uma paixão precoce e antes do tempo.

 

De um menino que tinha olhos para ver

e coração aberto para sentir e imaginar.

Um lindo amor que não se concretizou

Infantil, não se fez adolescente ou adulto.

 

Em contrapartida para nem tudo se perder

sessenta e tal anos depois tivemos um “porteño"

morador do humilde bairro das Flores

e desde sempre fervoroso do seu San Lorenzo.

 

Argentino, o primeiro papa latino-americano

da história milenar da sagrada igreja católica.

Tivemos e pudemos admirar, aplaudir e gostar

mesmo os não crentes e ateistas como eu.

Obrigado Francisco, Papa vindo do "fim do mundo".


É em Bled


Desfiladeiro desfolhado da garganta profunda

Desfile descartável de vaidade saloia e antiquada

Para dizer que gajo importante me coube ser

Ter vindo ao mundo para ser gente e convencer. 

 

Podia continuar com prosa que ninguém vai ler

Lembrar que vim até aqui de burro a motor japonês 

Que me mandei pintar do avesso para me refazer 

Com as paredes de um sol de abril talvez português. 

 

Dizer que é em Bled com esta paisagem maravilhosa 

Mais de postal ilustrado do que invenção da alma 

Que os pensamentos sobre o mundo me veem à cabeça 

Me perturbam, mas não me tiram da vida aqui tão cerca.

 

Apesar de morar há muito num dos países vizinhos, 

ontem foi a primeira que me encontrei e apreciei 

caminhei pela obra-prima do senhor escultor Radovna 

rio que com o seu metódico trabalho de anos e anos 

esculpiu magistralmente o desfiladeiro Vintgar e lhe deu fama. 

Bohinj, Mostnica e Savica

 

Comecei a escrever este apontamento  

algures no trilho da Cascata Mostnica 

e o rio de montanha com o mesmo nome 

onde o elefante que se perdeu veio matar a sede  

no caudal das águas que alimentam o Lago Bohinj.

 

Uma deliciosa queda de água quase anónima 

logo no início e no final de uma difícil subida. 

Chama-se ponte do diabo porque para um precipício  

com aquela altura e perigo não havia mais ninguém  

com tomates para a construir que não fosse o diabo.

 

Matreiro e velhaco impôs uma condição  

a alma do primeiro a atravessar a ponte  

seria sua propriedade para a eternidade. 

O bispo da terra decidiu contornar o assunto. 

O sacrificado foi um cão enganado por um osso.

 

Se fosse agora seria o bonito caía a ponte e a Trindade 

os amigos dos animais não deixariam a coisa pela lenda.

Para amenizar o conflito fala do que vistes 

- As pedras não crescem nas árvores 

mas as árvores crescem nas pedras. 

 

No caminho de Savica é proibido pescar 

desaconselhável desejar peixe frito 

fotografar e partilhar avisos de zona  

- Pela gargalhada aqui há gato  

porque nesta terra escreve-se cona. 

 

Não me levam a mal, mas por vezes é bom recordar  

- Em Mostnica e Savica o eco barulhento das águas 

fazia-me lembrar o mar da Nazaré a labregar.  


Rio Soča e Bovec


Olhar o passo para não tropeçar e cair  

parar para ver e apreciar tanta beleza  

que à nossa volta se oferecia gratuita. 

Caminhar de mochila às costas tem mais encanto  

quando se caminha por sítios de deslumbrar.  

 

Depois de ontem posso dizer com um sorriso  

que já não morro sem ter bebido água do rio. 

Andamos em trilhos junto e entre os Alpes Julianos   

com o ponto mais elevado com quase três mil metros.  

Caminhadas com partidas e chegadas a Bovec.    

 

Ali o passo mais alto é a ligação   

entre os vales dos rios Sava e Soča.  

Passo ou colo que bonita expressão.  

Coloca as tuas mãos quentes em mim   

e eu colo os meus lábios húmidos nos teus.  

 

Sítio dos amantes dos desportos radicais  

sítio de aventuras fluviais e amantes actuais. 

Imaginar que aqui neste local tão pacífico  

pela sobrevivência com armas e granadas 

que há 100 anos se matavam uns aos outros.

 

Ecossistemas para tudo

 

Hoje há ecossistemas para tudo 

pessoas e animais, cartões e caixas automáticas

plantas e oceanos, serras e alguns desertos.

 

Antes terá sido um bairro com autocarro   

casas pré-fabricadas da idade pré-moderna 

agora somos em terra uns ecopontos perfeitos. 


Ecossistemas em que o eco da mãe ou madrasta 

a natureza está em baixo, perigosamente em baixo 

mas o ego individual nunca esteve tão em cima. 

 

Temos também ecossistemas de ciência e inovação

da vinha e do vinho, ecossistema religioso e financeiro. 

O ecossistema de primeiro foi o ovo ou a galinha.

Ecossistemas das palavras roubadas ou mal-usadas. 

Salvo raras excepções somos uns autênticos papagaios. 


Mainstream & Main street

 

Por ser míope uso óculos e para ouvir 

aparelhos nos dois ouvidos, sem eles 

estaria na cave o tempo quase todo. 

 

Tomo também vitaminas para continuar 

a magicar e a pensar pela minha cabeça 

as vitaminas da vida e do mundo à volta.

 

Como gosto de reflectir para ter opinião 

não posso estagnar, tenho de evoluir

e no verbo com alguns estrangeirismos.

 

Entre as things de que eu mais gosto 

é quando nos meetings em que participo 

cada segunda palavra ser importada

tem classe e sobretudo tem conteúdo.

 

Das minhas aquisições mais recentes 

e para o futuro shortlist do meu texto

no workshop destacaria em power point 

a importância do Mainstream & Main Street.

 

Europeu e americano, ocidental e liberal.

A corrente do pensamento dominante 

enfiada à martelada nas lojas da rua principal.

Discutida ao detalhe no último brainstorming.


A tasca da aldeia


 A tasca é a alma da aldeia disse o outro 

um espantalho das paprikas e beringelas 

e que por graça do pai Viktor é ministro.

 

A ideia é pôr o povo de volta do bota-abaixo

distribuir uns tostões para adiar as ressacas

e prolongar a cirrose e a vida das tabernas.

 

Feita a crítica política ao novo programa

de arrebanhar votos com aguardente 

e continuar mais uns anos no poleiro.

 

Vamos lá mudar de diapasão e de tema

contra dogmas não há milagre ou mensageiro 

e cada povo tem o governo que merece.

 

Serviço ao cliente não é à mesa é ao balcão 

o dinheiro é de plástico e sotaque estrangeiro 

o mata-bicho e um cigarro em cada mão.


Tiro na nuca

A pensar no criminoso-camarada Vasily Blokhin*


Inimigo do povo, tiro na nuca
Inimigo do partido, tiro na nuca
Inimigo da revolução, tiro na nuca
Inimigo da classe operária, tiro na nuca
Inimigo da pátria soviética, tiro na nuca

Inimigo do homem novo, tiro na nuca
Inimigo do marxismo-leninismo, tiro na nuca
Inimigo da amizade entre os povos, tiro na nuca
Inimigo da Internacional comunista, tiro na nuca

Inimigo da limpeza étnica, tiro na nuca
Inimigo da degola dos kulaks, tiro na nuca
Inimigo da verdade sobre Katyn, tiro na nuca
Inimigo da liquidação dos inimigos, tiro na nuca

Espalha mentiras sobre Holodomor, tiro na nuca
É judeu ao serviço do imperialismo, tiro na nuca
Quer abrir os olhos aos idiotas úteis, tiro na nuca
Ciumento das vodka-orgias de Béria, tiro na nuca
Desertor-traidor de Stálin Pai dos povos, tiro na nuca.

*Esta é a terceira versão de texto que escrevo sobre o camarada Blokhin (1895-1955) um dos melhores exemplos do que foi ser comunista e agente da polícia política na URSS. Um criminoso brutal, metódico e implacável. O melhor exemplo do homem novo comunista.


Vasily Blokhin executou dezenas de milhares de prisioneiros pelas suas próprias mãos, incluindo cerca de 7.000 prisioneiros polacos durante o Massacre de Katyn, na primavera de 1940, o que faz dele o pior carrasco de que há registo na história mundial.