segunda-feira, 5 de maio de 2025

Palavras do eléctrico ou o eléctrico das Palavras / 4

 

Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta

continuarei a escrever. Clarice Lispector


Para o livro "De mim ficam as Palavras"

Encosta


Era ali que os caminhos subiam 

e até ao cimo os levavam.

Era ali que livres pela encosta 

rebolavam e se abraçavam.   

 

Se envolviam, se disfarçavam e se escondiam 

se comemoravam, se despiam e se amavam

e sem remissão se ofereciam um ao outro

certos do segredo da sua festa mais íntima. 

 

Que ninguém sabia deles nem a poesia 

para os escrever e imortalizar a sua história. 

 

Enxaguavam-se no riacho da ladeira 

onde as plantas formavam uma cadeira 

o declive para uma última promessa 

um último abraço, um beijo avassalador.

 

Encosta-te às suas costas, ao seu peito 

à sua alma, à sua paixão infinita por ti 

à aventura e ao milagre do vosso amor.

Encosta-te e nunca te afastes do amor.

 

Cartas antigas

 

Poderei estar enganado e se for o caso 

penitencio-me, mas para mim poesia

é também remexer memórias do passado.


Voltar a ler cartas antigas, alguns excertos

de quando ainda havia tempo e havia alma  

para escrever, redigir cartas com memória. 


Sei que há muitos anos (Nazaré, agosto de 1983)

escrevi "Comecei - que sentido a poesia sem ti?

A secar o mar para encurtar a distancia".


Poder agora perder-me sozinho ou acompanhado

por alguma das praias de Portugal, caminhar 

na areia húmida, molhar os pés para despertar.

 

Sabes, foi sempre a minha sincera convicção 

que quando tu passasses a ser a minha manhã 

o meio-dia e a tarde, a noite e a madrugada.

 

Em que fosses o sol e a lua da minha vida

de pronto te irias cansar e fartar de mim.

Diz-me, enganei-me? Não é assim? 

Ao alpendre

 

Sente-se de novo a chegada da alba 

do amanhecer sempre apressado 

do tempo mais curto que o desejado

na roupa branca da cama amarrotada

e a camisa de dormir no chão esquecida.

 

A cantiga de entrega da minha prometida 

da paixão a arder pela exaltação tardia 

contra latitudes e geografias diferentes 

dos amantes abraçados pela telepatia 

dita ao telefone e com a televisão ligada.

 

Para os velhotes não ouvirem os gemidos 

não virem ao alpendre e ficarem a saber 

que o amor não é feito apenas de sorrisos 

que não tem idade nem prazo de validade.  

Rosa encantada feita invenção do prazer.


As prateleiras da essência


Após ter encontrado e ter sido envolvida

pelo forte sentimento da fascinação

pelo vigor da sua imensa sabedoria 

e de sentir a voragem da vasta cultura

que fazia multiplicar a sua paixão.

 

Depois desse momento único e decisivo

seguidora e discípula aceitou o desafio 

passou a ver a realidade com outros olhos 

com a sua ajuda e os seus bons conselhos 

com as suas opiniões e críticas certeiras.

 

Antes nunca tinha aprendido tanto 

foi a descoberta de um mundo novo

de um profundo e alargado universo 

para guardar nas gavetas da consciência  

e arrumar nas prateleiras da sua essência. 


Piloto automático


Ninguém se pode despir da sua pele

não há quem mude apenas por mudar

tem de vir de dentro, do fundo da gente 

e em sobressalto a tentação despertar. 


Foram anos a se mostrar e se destacar 

anos de encantamento e de representação 

com tantos candidatos em lista de espera 

a quererem arrebatar para si o seu coração. 

 

Quando finalmente encontrou o trilho

percorreram de mãos dadas as dunas

e na praia pode-se espreguiçar e deitar

adormecer e ligar o piloto automático. 

 

Sabe como poucos da poda da narrativa 

escolher a melhor agulha, linha e o nó a dar

selecionar as respostas para não se sentir cativa.

Deixar-se ficar de fora e amanhã não voltar.  

O Amor dança-se a dois


Ao longo das margens baixas do rio

sedimentava-se sedosa a sedução.

Às folhas no chão ninguém fazia caso

e ao subsolo ninguém prestava atenção. 

 

Mas há por ali alguém que não dorme 

e que não nega a esmola nem o pão.  

Alguém que sabe da lua vinda do norte

e sonha com ela porque tem coração.

 

Alguém disposto a andar a monte

ou de barco para pescar o seu sorriso. 

Não deixar Eros na erosão da quietude

ou a negação do bem-estar no paraíso.

 

Como dizia asssertivo, bom sexo 

pode-se fazer a três, ménage à trois 

mas verdadeiro o amor é como o tango 

o Amor, faz-se e dança-se a dois. 

Cinco meses


Por detrás do bigode e com um ar sério

a pergunta mais difícil feita a sorrir seria 

- na verdade o que são cinco meses e dois dias

no longo caminho de duas pessoas comuns e normais? 

 

Com o que a vida até hoje me ensinou

- se não aprendi até ontem, amanhã vou saber

estou convencido que mesmo a brincar 

a resposta convicta não se faria esperar. 

 

- Menos de meio ano, mas por mim pode ser 

o tempo desta vida e da outra se houver

e para não ter de recorrer à tabuada

o tempo exacto para os olhos se olharem

o tempo certo para as bocas se cruzarem.

 

- Recordar os bons tempos passados juntos  

não lamentar os que gastamos por engano

esquecer os momentos dos dias mais cinzentos

sem a cor do sonho, com as palavras sem rumo

e com a promessa de que estarei sempre contigo. 

Sentou-se ao meu lado

 

Sentou-se ao meu lado e nem me viu 

eu senti-a pelo desafio do seu perfume 

de baunilha que antes não tinha cheirado.

 

Um perfume que convidava a comer 

como se fosse uma bolacha baunilha 

ou arroz-doce polvilhado com canela.


Loura nela havia algo de aristocracia distante

e pela grande diferença dos troncos entre nós 

- comigo também não é difícil - devia ser alta.

 

Pelo canto do olho via-lhe um traço renascentista 

de alguém que não está habituado o dia inteiro 

a virar frangos ou pensar nas últimas compras 

do fim-de-semana, nos pratos que vai cozinhar. 

 

Quando se levantou para descer pude ver 

como era elegante, vestida de calças quentes  

porque apesar de abril, lá fora fazia frio

e era aconselhável andar-se bem agasalhado. 

 

Casaco curto peludo cor de doce creme 

mas sem açúcar queimado para acompanhar.

Parecia ser a fome escondida da sobremesa 

que se deve evitar para não engordar.

Mais dura e velhaca


Pode parecer conversa tonta de burro 

mas ao contrário do que se pensa 

hoje ainda é mais difícil do que antes

o despontar social e subir os degraus 

da escadaria na hierarquia da sociedade.

 

Quem nasce em baixo se não tiver 

uma pitada de sal para salgar a sorte 

ou talento especial, jogador de futebol 

carreirista da juventude partidária 

algo que lhe sirva de elevador social.

 

A vida é mais dura e mais velhaca

e é muito difícil escapar ao destino

porque faça o que fizer o normal 

é permanecer na cave ou no rés do chão

- habituar-se até ir desta para melhor.

Puta da igualdade de oportunidades!


Epopeia de Gilgamesh

 

Perdoa-me se eu sem querer  

exagerar ao gritar a dor e gemer  

mas é pelo amor por ti que o faço.  

 

Por ti que tenho no coração 

e pela criação do mundo novo. 

O Filho de Deus colado ao peito.

 

A história escrita em argila

do tempo dos bisavós e trisavós 

mais ano ou menos ano antigo

e me quero armar ao pingarelho.

 

Soube que a Epopeia de Gilgamesh 

foi encontrado em escavações 

feitas em Nínive hoje vestida de Mossul 

no injustamente infeliz Iraque. 

 

Como estou com pressa para acabar

li que a narrativa de génesis no Antigo Testamento 

não ser mais do que uma cópia bem escrita 

do mito muito antes escrito da criação babilónica.

 

A cópia em segunda mão é sempre pior 

do que o original, tal homem tal deus 

tal humanidade e tal divindade repleta 

de fúrias e ódios, de traumas e castigos. 

 

Mais a gratidão ao paladar da refeição 

repasto de domingo para os deuses 

que não cansam de mal dizer e mal fazer

ou não fossem eles criações dos homens.

 

2024-2025