Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta
continuarei a escrever. Clarice Lispector
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta
continuarei a escrever. Clarice Lispector
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
Era no meio do campo que os caminhos subiam
e livres pela encosta até ao cimo os levavam.
Era ali que felizes rebolavam e se abraçavam.
Se envolviam, se disfarçavam e se escondiam
se comemoravam, se despiam e se amavam
e sem remissão tudo ofereciam um ao outro.
Certos do segredo da sua festa mais íntima
que ninguém sabia deles nem mesmo a poesia
que os queria escrever, imortalizar a sua história.
Enxaguavam-se sem medo na água do riacho
e para se secarem ao sol deitavam-se na erva
entre os arbustos no sopé secular da ladeira.
Era chegado o momento de irem para casa
de um último beijo intenso de despedida
que prometia todas as carícias, toda a doçura
desse amor sem fim, dessa milagrosa aventura.
Poderei estar muito enganado, mas poesia
é também remexer os bolsos do passado
voltar a ler cartas antigas, alguns excertos
de quando ainda havia tempo e havia alma
para escrever, redigir cartas com memória.
Escrevi há muitos anos (Nazaré, agosto de 1983)
"Comecei - que sentido a poesia sem ti?
A secar o mar para encurtar a distância".
Agora para voar gostaria de me perder sozinho
por alguma das praias de Portugal, caminhar
na areia húmida e molhar os pés para despertar.
Ele, no seu acerto de contas com o presente
com devoção pensava, mas não escrevia
ter a certeza de que a partir do momento
em que ela passasse a ser a manhã e a tarde
a noite e a madrugada, o sol e a lua da sua vida
se iria fartar de tanta entrega, de tanta dedicação.
- Diz, se não foi essa a razão, qual foi
então?
Sente-se de novo a chegada da alba
do amanhecer sempre apressado
do tempo mais curto que o desejado
na roupa branca da cama amarrotada
e a camisa de dormir no chão esquecida.
A cantiga de entrega da minha prometida
da paixão a arder pela exaltação tardia
contra latitudes e geografias diferentes
dos amantes abraçados pela telepatia
dita ao telefone e com a televisão ligada.
Para os velhotes não ouvirem os gemidos
não virem ao alpendre e ficarem a saber
que o amor não é feito apenas de sorrisos
que não tem idade nem prazo de validade.
Rosa encantada feita invenção do prazer.
Por detrás da sua linda simplicidade natural
havia uma mulher completa, sabida e madura
nem sempre discreta, na verdade era ousada
e dava a volta à cabeça de qualquer mortal.
Parece que dessa vez aconteceu o contrário
após o ter encontrado e ter sido seduzida
foi ela que ficou prisioneira e submergida
do forte entusiasmo que há muito não sentia.
Envolvida pelo sentimento da fascinação
pelo vigor e o resto da sua imensa sabedoria
de sentir em si a voragem da vasta cultura
que profunda fazia multiplicar a sua paixão.
Com ele foi a descoberta de um mundo novo
de um pouco conhecido e surpreso universo
para feliz guardar nas gavetas da consciência
e para arrumar nas prateleiras da sua essência.
Ninguém se pode despir da sua pele
não há quem mude apenas por mudar
tem de vir de dentro, do fundo da gente
e em sobressalto a tentação despertar.
Foram anos a se mostrar e se destacar
anos de encantamento e de representação
com tantos candidatos em lista de espera
a quererem arrebatar para si o seu coração.
Quando finalmente encontrou o trilho
percorreram de mãos dadas as dunas
e na praia pode-se espreguiçar e deitar
adormecer e ligar o piloto automático.
Sabe como poucos da poda da narrativa
escolher a melhor agulha, linha e o nó a dar
selecionar as respostas para não se sentir cativa.
Deixar-se ficar de fora e amanhã não voltar.
Ao longo das margens baixas do rio
sedimentava-se sedosa a sedução.
Às folhas no chão ninguém fazia caso
e ao subsolo ninguém prestava atenção.
Mas há por ali alguém que não dorme
e que não nega a esmola nem o pão.
Alguém que sabe da luz vinda do norte
e sonha com ela porque tem coração.
Alguém disposto a andar a monte
ou de barco para pescar o seu sorriso.
Não deixar Eros na erosão da quietude
ou a negação do bem-estar no paraíso.
Como dizia asssertivo, bom sexo
pode-se fazer a três, ménage à trois
mas verdadeiro o amor é como o tango
o Amor, faz-se e dança-se a dois.
Olha e respira. Olha e sonha. Grava na memória.
Na memória dos sentidos que são a tua história.
Regressa livre ao teu futuro. Ao teu passado.
Passa os dedos de outrora pelas lembranças.
Sente neles o cheiro forte a alfazema fresca
que em dias quentes respirou a pele húmida.
É uma história exemplar de rara bondade.
Amavam-se e namoravam há muito tempo.
Gostava dele, mas filhos fazia com outros.
Voava até Berlim para a acompanhar no parto.
Para o caso do pai da criança a deixar sozinha
e se esquecer de vir conhecer o novo filho.
De vez em quando para variar bebe leite de vaca
para não pensarem que aqui só há leite de novilho.
Chá de aveia, de borras de café ou grão-de-bico.
Sentou-se ao meu lado e nem me viu
eu senti-a pelo desafio do seu perfume
de baunilha que antes não tinha cheirado.
Um perfume que convidava a comer
como se fosse uma bolacha baunilha
ou arroz-doce polvilhado com canela.
Loura nela havia algo de aristocracia distante
e pela grande diferença dos troncos entre nós
- comigo também não é difícil - devia ser alta.
Pelo canto do olho via-lhe um traço renascentista
de alguém que não está habituado o dia inteiro
a virar frangos ou pensar nas últimas compras
do fim-de-semana, nos pratos que vai cozinhar.
Quando se levantou para descer pude ver
como era elegante, vestida de calças quentes
porque apesar de abril, lá fora fazia frio
e era aconselhável andar-se bem agasalhado.
Casaco curto peludo cor de doce creme
mas sem açúcar queimado para acompanhar.
Parecia ser a fome escondida da sobremesa
que se deve evitar para não engordar.
Pode parecer conversa tonta de burro
mas ao contrário do que se pensa
hoje ainda é mais difícil do que antes
o despontar social e subir os degraus
da escadaria na hierarquia da sociedade.
Quem nasce em baixo se não tiver
uma pitada de sal para salgar a sorte
ou talento especial, jogador de futebol
carreirista da juventude partidária
algo que lhe sirva de elevador social.
A vida é mais dura e mais velhaca
e é muito difícil escapar ao destino
porque faça o que fizer o normal
é permanecer na cave ou no rés do chão
- habituar-se até ir desta para melhor.
Puta da igualdade de oportunidades!
Perdoa-me se eu sem querer
exagerar ao gritar a dor e gemer
mas é pelo amor por ti que o faço.
Por ti que tenho no coração
e pela criação do mundo novo.
O Filho de Deus colado ao peito.
A história escrita em argila
do tempo dos bisavós e trisavós
mais ano ou menos ano antigo
e me quero armar ao pingarelho.
Soube que a Epopeia de Gilgamesh
foi encontrado em escavações
feitas em Nínive hoje vestida de Mossul
no injustamente infeliz Iraque.
Como estou com pressa para acabar
li que a narrativa de génesis no Antigo Testamento
não ser mais do que uma cópia bem escrita
do mito muito antes escrito da criação babilónica.
A cópia em segunda mão é sempre pior
do que o original, tal homem tal deus
tal humanidade e tal divindade repleta
de fúrias e ódios, de traumas e castigos.
Mais a gratidão ao paladar da refeição
repasto de domingo para os deuses
que não cansam de mal dizer e mal fazer
ou não fossem eles criações dos homens.
2024-2025