quinta-feira, 3 de abril de 2025

Palavras do eléctrico ou o eléctrico das Palavras /3

 


Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta  

continuarei a escrever. Clarice Lispector 


Para o livro "De mim ficam as Palavras"

Hier encore - Charles Aznavour


Les yeux cherchant le ciel mais le cœur mis en terre

 

Meu bicho-da-seda, minha lagarta da amoreira 

que se faz a mais bela das borboletas 

e em ti representa a vida, o fim e o renascimento 

o feio feito feitiço da beleza ou precisamente o contrário.

 

Da vida ontem da vida sempre, vida nunca e vida eterna 

no baixo-relevo do teu copo abaixo e acima em tudo

na vertical, na horizontal e nas escadinhas do bairro 

ou no tapete voador, de paraquedas para-quedistas 

- Borlistas e carteiristas, vigaristas e feiticeiras...

 

Na autoestrada da chuva 

nas curvas e contracurvas do vento 

no cruzamento tardio da noite 

na acalmia da tempestade 

na estação para recomeço do novo dia

no apreço comovente na praça do nosso reencontro.

 

Nunca é tarde para tentar como se fosse a primeira vez 

Nunca é tarde para voltar a errar se é a mando do coração 

Nunca é tarde para voltar ao local onde tudo começou 

Nunca é tarde para chorar o passado e lamentar o futuro. 

 

Para deixar o coração em terra e apanhar o avião 

Levar consigo os olhos, o olhar do mundo nos teus olhos 

Cantar o passado e agradecer o futuro - a minha gratidão.  

La bohème - Charles Aznavour

 

Do princípio ao fim do mundo 

do século perdido, a algazarra  

não abrandava e o apara-lápis  

não parava de ser emprestado  

por vezes trocado por um beijo.

 

Cães e gatas já estavam habituados à confusão  

a alfazema e o alecrim não espantavam ninguém  

nem o alfarrabista da esquina que não vendia  

não se desfazia de nenhum dos seus melhores livros 

- que faria se não os tivesse à mão para os desfolhar.

 

Os bailes do bairro acabaram et les lilas sont morts  

os sindicatos perderam o pio e os trabalhadores amoucharam 

sentados no chão de pernas cruzadas à espera do milagre 

mas temos os jovens como ontem hoje também não se calam 

- é do futuro deles que escrevia e cantava o arménio Aznavour.

 

Em Montmartre de Paris do antigamente

eram pobres, ele passava fome e ela posava nua  

sentia-se em tudo a liberdade, decadência e liberdade  

que bem precioso é viver democracia num país livre  

sem perseguição - num país do decadente ocidente.


Cotovia ou confraria

 

"La chair des femmes se nourrit de caresses comme l'abeille de fleurs." 

Anatole France

 

Aquarela e a tinta dos seus olhos 

a doce conspiração das suas coxas

com a flanela nocturna dos seus braços 

na água morna dos seus lábios 

quando os beijo para saciar a sede. 

 

Cortiço mel das flores da sua serra

com a cobiça do fascínio maior

da planície lunar do seu olhar 

com a cotovia ou confraria do amor 

para não me esquecer e te esperar. 

 

Pôe a papoila a humedecer na tua papolia para crescer

Fotografia da ousadia que não deixou nada por mostrar 

Cadeira da sala onde tanta coisa boa ficou por fazer 

Bagageira da alma onde ainda hoje a quero guardar. 


Os pecados

 

Com a cerveja à frente pausadamente dizia 

- Se é pecado se por comer pouco pão

me descuidar e beber mais que a conta

pior seria ter sido moço de cabeça no chão.

 

Se me distrair a olhar aquela ilha vistosa 

ao lado sentada e pensar noutros tempos 

e dar asas de avioneta à imaginação

é não temer a régua de castigo e educação. 

 

Se é pecado cuidar e regar essa rosa 

para lhe dar cor e não a deixar murchar

como é deixar-se envolver pelo seu aroma 

e com ela se perder e em silêncio florescer.

 

Dizia Pedro Homem de Mello e Amália 

tão bem cantava quando iam a Viana

- Os pecados têm vinte anos 

e os remorsos têm oitenta -

 

O pecado (i)mortal mora na guloseima 

e cresce no bom gosto e na certeza  

do bem que faz pelo melhor que sabe.

Pelas vidas vividas que nos traz de volta. 


Prefácio & Posfácio

 

Prefácio 

 

Na manhã desse dia lavei-me e vesti-me 

arranjei-me, tratei da pele com mais cuidado

valia a pena, sabia bem por que o fazia.

 

Talvez tenha deixado a pele sem nenhuma defesa   

mas sabia que a tua pele na minha a iria proteger. 

Sabia que não seriam os teus beijos ardentes 

os teus dedos e os lábios que a iriam maltratar. 

 

Na manhã desse dia saí de cedo de casa 

o coração estremecia e quase me saía do peito 

estava ansiosa, sentia muito impaciência. 

 

A única certeza que tenho é que vacilava de receio 

se seria um sorriso, um abraço, um beijo forçado.

Felizmente perto de ti sempre perdia o medo 

e vi abrir-se o céu, vivi a paixão do nosso amor. 

Prefácio & Posfácio

 

Posfácio

 

Desatentos não se deram conta 

que o seu tempo se tinha gasto

e se foi de vez para outro país. 

 

A última pele parece que secou 

e fez-se deserto árido sem um oásis

sem uma mãcheia de ternura. 

 

O coração, com a lenha dos corações 

esse sabe-se continuou a arder feito fogo

até se fazer cinza e depois pipa de vento.

 

Recordar a terra húmida da margem do lago.

Descrever a dança do mar que nunca dançaram.  

Mundo que já não é nosso e depois a despedida.

Erotismo da classe operária

Para António Rosas

 

Esta noite a minha intenção é fazer um breve relance pelo erotismo 

e algumas liberdades da classe operária e dos seus representantes 

no Portugal da primavera marcelista antes do 25 de Abril libertador.

 

- Aquele é o padrinho, não é o afilhado famoso dos selfies 

que foi primeiro comentador referência da televisão 

e depois S.E. O Presidente da República Portuguesa…

 

Era o magusto e jeropiga de São Martinho na fábrica de fiação 

e houve quem se tenha acelerado mais do que devia

ultrapassou a barreira do pudor e alguma timidez recalcada.

 

Depois do almoço voltou-se ao trabalho, mas uma das operárias

no corredor menos iluminado fez-lhe uma espera inesperada 

- Não gostas? É tudo para ti! Bata no chão blusa aberta sem soutien. 

 

- Porque se acabava duas três vezes por semana pedia-me fio

eu fazia-lhe sinal para subir ao terceiro andar à sala dos rolos

onde nos enrolávamos ouvindo as máquinas a trabalhar. 

 

Era ali para os lados do Martim Moniz quando as fábricas 

ainda funcionavam em pleno centro da cidade 

- O prazer operário e não apenas ser explorado pelo patrão. 


Revendo Almada

 

Tenho andado de volta revendo Almada Negreiros

com o Manifesto Anti-Dantas, 1915, e a Taca de chá*.

Recordando: As Banhistas, 1925, A Sesta, 1939,

O Retrato de Fernando Pessoa, 1954 ou o meu favorito

Art Déco, Estudo para uma Decoração de Teatro,1929.

 

*”Pela manhã vinham os visinhos em bicos dos pés espreitar por entre os bambús,

e todos viram acocorada a gueisha abanando o morto com um leque de marfim.”

 

Preâmbulo: Se Almada visse a pose e a roupa colada ao corpo 

- Uma segunda pele da jovem mulher por baixo da gabardine - 

esta tarde na paragem do eléctrico... eu fiquei com a sensação

que teria escrito rápido e certeiro, dizendo em voz alta: 

 

Eléctricos do mundo libertem-se! Sejam uns fora de caixa 

saltem dos carris, não aceitem a escravidão fixa dos horários.

Parem, façam greve para que aprendam, chega de brincadeiras.

Com os condutores dos eléctricos não se brinca nem a brincar.

 

Assim tinha tempo podia observar mais uns minutos  

sem a ver desaparecer ou ter de se apressar, entrar a correr 

para a continuar a ter aquela visão mais algumas paragens. 

Não estava sozinho naquela observação de admiração.

 

Segundo preâmbulo: descobri Almada na minha adolescência.

O nosso primeiro encontro foi com o Manifesto Anti-Dantas 

declamado por Mário Viegas. Se fosse hoje, 110 anos depois

estou convencido que o título seria: Manifesto Anti-Ventura.

 

Ultimamente tenho jogado com a ideia-provocação de pensar

- Qual seria a sensata-opinião do wokismo sobre Almada?

Será que seria queimado na fogueira da inquisição wokista?  


Feita de plástico

 

As pestanas postiças, falsas eram mais compridas 

que a mais curta das pontes sueco-dinamarquesas

distante da tal Groenlândia que Trump quer anexar. 

 

Os lábios carnudos, espalhafato a mais de tão inchados

quase caiam da boca e deixavam os dentes à mostra. 

Os seios tão esticados que nem quatro mãos chegariam 

para os cobrir e esconder, para proteger do mau olhado 

que infelizmente do silicone já não havia nada a fazer.

 

Não teria mais de 20 anos e antes de se industrializar 

em exageros e afins deve ter sido uma miúda jeitosa

mas agora está feito um super armazém de plástico. 

Feita uma carroçaria que não precisa de bate-chapas

mecânico de amortecedores e assentos para fixar o dito.

 

Não há tempo para recriar a história sacana da palha seca 

se faz um bom colchão porque se tem de limpar a palha 

que tem no rabo, rabo de palha na ponta da navalha.

 

Primo californiano

 

O primo californiano veio à Hungria visitar a família. É uma jóia de pessoa 

e apesar de ali ter nascido há quase 70 anos e nunca aqui ter vivido 

sente-se húngaro e não esqueceu o idioma que aprendeu com os pais. 

Foi o primeiro, o idioma que se falava em casa, o inglês aprendeu na rua 

com as outras crianças e na escola, onde no início sentiu algumas dificuldades. 

 

O pai, Andor, órfão criado pelos tios, a convite de um famoso professor húngaro 

de quem era discípulo, em 1939 com 32 anos foi para os Estados Unidos. 

A mãe, Margit foi em 1950, depois de ter passado 5 anos num campo de refugiados

Na Áustria. Falava 8 idiomas e era a tradutora. Tinha vinda da Jugoslávia 

de uma região habitada sobretudo por húngaros e alemães, perto da fronteira 

da cidade universitária de Szeged, a Coimbra da Hungria, cidade onde nasceu. 

 

O pai era um abastado industrial têxtil, húngaro, mas com nome alemão.

Com o aproximar do fim da guerra, o avanço dos partisans de Tito 

e do Exército Vermelho, tiveram de fugir, deixando tudo para trás. 

O pai era há muito um entusiasta, grande colecionador de selos

selos que durante aqueles anos austríacos os ajudaram a sobreviver. 

 

Na América os húngaros casadoiros eram informados

quando chegava um barco da Europa com jovens húngaras. 

Foi assim que Margit e Andor se conheceram e se casaram 

namorando entre Pasadena, Los Angeles e S. Francisco.  

Após várias tentativas, nasceu Tibor e o médico disse

- Este bebé precisa da sua mãe, não tente nem mais uma vez.

 

Esteve cá este fim-de-semana e é sempre muito bom estar com ele.

Comove ver como se emociona a falar dos pais, das suas raízes húngaras. 

Está do outro lado do Atlântico e pensa como nós sobre o mundo 

sobre a América de hoje. Estivemos a ouvi-lo com atenção 

a aprender, por isso é primo californiano e não primo americano. 

 

Neste momento já está na Índia, vai até aos Himalaias. 

A última vez que passou por Budapeste

ofereci-lhe um cachecol do Sporting 

comprado quando do jogo com o Estoril (5-1). 

Com ele enviou uma fotografia do Kilimanjaro. 

Continuação de boa viagem Tibor!


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