segunda-feira, 24 de março de 2025

Eco das Palavras

ou a ousadia tonta de me associar a Umberto Eco

Gato

 

"Perguntei-lhe qual era o nome do gato e ele respondeu-me que os gatos

não têm nome porque não são cristãos como os cães" Umberto Eco

 

Caro Mestre, não leve a mal a intromissão 

mas do pouco que Deus me acrescentou 

sei que não é por aí que o gato vai às filhoses.

Estão em grande harmonia e não há jantar sem cão.

 

A não ser que da arranhadela o santo ficou uma fera

e nem a intervenção de Pedro apaziguou a discussão.

Ainda por cima a internet esteve todo o dia de baixa 

e não passou a mensagem do gato a pedir perdão.

 

Boa eucaristia senhor prior e bom jantar de celebração. 

Batize lá o gato no domingo e esqueça a ofensa.

Vai ser um bom cristão vai caçar os ratos na igreja.

O vinho não vai sumir da sacristia. Tenha um bom serão.

 

Sabedoria

 

“O amor é mais sábio do que a sabedoria” Umberto Eco

 

Cada história de amor nasce para não morrer 

não é preciso ser sábio para inventar uma melhor.

O amor é feito de paciência e arte da transpiração 

é feito da sabedoria dos que nasceram para viver.

 

Cada história de amor ou sua fulminante negação 

tem a sua própria época e prioridades a condizer.

Quando as tuas já são outras eu aceito dar o lugar. 

Amigo não atrasa amigo se não contar para a equação.

 

Cada história de amor custa mais decorar do que despir 

e custa mais vestir do que deixar a cama arrefecer 

mas por muitos esforços que faça não vou conseguir 

despir-me da pele que Deus escolheu para comigo trazer.

 

Esta frase aprendi há pouco de uns estrangeiros 

- Antes de criticares põem-te nos meus sapatos.

Eu não posso, não consigo ser quem não sou 

- Ouço a minha voz e sei que por aí eu não vou.

Deus

 

"Deus está morto, a arte deixou de existir, a história 

chegou ao fim e eu próprio não me sinto bem" Umberto Eco

 

Contra a gripe, a febre e a constipação 

contra o mau olhado da desilusão 

não duvide não perca mais tempo. 

Abra uma garrafa de vinho tinto.

 

Beba copo a copo com moderação 

e não se esqueça desta afirmação. 

 

Não um vinho qualquer meio martelado 

um vinho alentejano bem encorpado

como promoção do melhor medicamento. 

Como tributo à terra, à gente e à produção.

 

Beba copo a copo com devoção 

e não se esqueça desta opinião.

 

Caro leitor que nunca me vai ler

até pode não acreditar no que digo 

mas há muitos anos que não tomo 

comprimidos para as dores de cabeça.

 

Em primeiro lugar porque não me dói 

e se for o caso muito raro do contrário 

para começar bebo meio copo de vinho.

Beba com devoção e beba com o coração.

 

Vida

 

"O que é a vida senão a sombra de um sonho fugaz?"  Umberto Eco

 

A minha vida? Eu sempre fui uma boa boca 

e me contentei com o que vinha para a mesa. 

Se a refeição fosse farta como acontecia contigo

aproveitava o repasto e tirava a barriga de misérias.

Se não fosse o caso, era paciente e não me queixava. 

 

Os milagres das entradas das nossas sobremesas 

de tão divinos e tão humanos, eram o paraíso na terra 

eram momentos de amor que nos tornavam imortais.

Eram milagres, não feitos por Deus, mas por nós.

 

Lembras-te quando foi?

Foi numa terça-feira 

a nossa primeira festa 

a nossa primeira cama.

 

O nosso primeiro poema 

o primeiro dia da nossa vida. 

Foi numa terça-feira de março. 

Diabo


"O diabo não é o príncipe da matéria, o diabo é a arrogância do espírito, 

a fé sem sorriso, a verdade nunca tocada pela dúvida" Umberto Eco

 

Quando a cegueira colectiva da maioria já for credo e religião obrigatória 

não se respeitar a opinião da agora minoria que pode ser apenas temporária. 

Quando a maioria dos eleitores acreditarem num futuro fácil e barato 

levados pelas respostas do populismo sabe tudo e discurso simplificado.

 

Acredita que não estás sozinho que estás bem acompanhado 

que são muitos que pensam como tu, não te sintas abandonado.

Muitos que sabem pela história que contra a indigna submissão 

temos ao alcance da mão e da alma a nossa infinita insubmissão.

 

Temos de enfrentar o diabo mentiroso de uma mentira maior.

Temos de derrubar o falso profeta de um infame deus menor.

  

Poesia

 

"Fomos suficientemente inteligentes para transformar 

uma lista de roupa suja em poesia" Umberto Eco

 

Bom dia. Com o tempo e a observar como faziam os mais velhos 

- mãe estava longe e a vida era aqui - descobri que era mais prático 

lavar a roupa ao fim do dia, todos os dias no lavatório da sala de banho.

 Lavava a roupa com sabão - chegou a ser azul que trouxe de Portugal -  

e punha-a pendurada a secar no radiador do quarto da residência.


Na manhã seguinte estava enxuta. Eram mais complicadas as camisas

- felizmente na época usava sobretudo t-shirts - e pior as calças 

que tinham de ser passadas a ferro, mas como eram de ganga 

se não fossem centrifugadas e ficassem bem esticadas 

mesmo sem ferro de engomar, estavam prontas a serem usadas.

 

Foram sete semestres na residência estudantil da universidade.

Tantas recordações. Tantas histórias. Tão pouca roupa suja para lavar. 

Tanta roupa lavada para amarrotar, cheirar e amar. Tanta poesia. 

Abençoada juventude. Obrigado Ráday kollégium. Obrigado Budapeste.

Nobel

 

"As redes sociais dão a legiões de idiotas o direito de falar, quando antes só falavam num bar depois de um copo de vinho, sem prejudicar a comunidade... mas agora têm o mesmo direito de falar como um Prémio Nobel. É a invasão dos idiotas.” Umberto Eco

 

Estamos cercados por muita raiva de cão  

muito presente por ser apanhado do chão. 

Estamos perdidos com tanta merda seca

tanta camisa de vénus suja e esburacada.

 

Tanta trampa, rabo de gente em tampo de sanita

para quê tanto lavatório se nem as mãos lavam.

Não lhes chames ralo, sifão nem venerável válvula 

ou vibrador vibração que dá gozo à vulnerável vulva.

 

Quando estava a falar parecia que estava a dormir 

e a dormir parecia que estava a tossir e a vomitar

a ressonar grosso como uma osga ou uma lagartixa.

Um safado a comer salsicha de barba, bigode e barbicha.

 

Que seria se fossem para o diabo que vos carregue

e deixassem o Nobel e o futuro para quem o merece.

 

Budapeste, 2025

Pedro Assis Coimbra

Para o livro "De mim ficam as Palavras"