quinta-feira, 20 de março de 2025

Versos da vida e outras histórias


Sob o meu coração

e na profundidade da minha cintura

está a crescer uma rosa vermelha 

Forough Farrokhzad (1934 - 1967)

Introdução

 

Ele esteve cá hoje? 

Sim, tu sabes que sim. 

Fizeram amor? Sim. 

Fizemos como sempre fazemos.  

 

Olhou-a nos olhos e o convite era tão forte.  

- Anda, é a nossa vez, vamos lá para cima. 

Nesses momentos era outro, transformava-se.

 

Nada se comparava àquela introdução. 

Amaram-se sofregamente, gulosamente 

como se depois não houvesse amanhã.  

 

Chegou a dizer que nada o excitava mais 

do que imaginar que sua amada mulher

ia para a cama, deitava-se mais vezes  

com o seu melhor amigo do que com ele. 

 

Era bom ter com quem partilhar o prazer.

As noites frias eram fogo, fogueiras a arder.


Estava à sua espera


Havia anos em que o meu amante 

fazia de carro mil e oitocentos quilómetros.  

- Conduzia à vez com o meu marido - 

para vir matar as saudades que tinha de mim.

 

Vinha porque sabia que seria bem recebido 

como um dos melhores amigos de toda a família

ao jantar seria o primeiro a ser servido.

Sabia que eu também estava à sua espera.

 

O amor se verdadeiro é entrega. 

Ele fazia todos aqueles quilómetros

para passar comigo duas ou três noites 

e fazer do nosso verão um rio de paixão. 

 

Depois despedia-se com o coração cheio

voltava feliz contando os dias que faltavam 

para o meu regresso e o nosso reencontro. 

Para o mundo que era o nosso a três partilhado. 

A primeira vez

 

Para continuar os estudos deixei a aldeia e fui para a cidade 

para um quarto alugado com uma prima da minha idade. 

Vivia pertinho do liceu e de uns velhos amigos dos meus pais 

de quem, em toda a minha meninice, apenas ouvi dizer bem

do prestígio, ele advogado e ela médica, um exemplo a seguir.

 

As poucas vezes que os vi guardei a imagem de um par perfeito

de um casal muito bonito e alegre, de gente culta e simples. 

Como criança pensei "quando for grande quero ser como eles".

 

Várias vezes me convidaram a lanchar em casa deles

e depois para ir estudar e fazer os trabalhos de casa 

porque lá estava mais sossegada e concentrada. 

Estudava primeiro na cozinha e depois na biblioteca.  

 

Foi ali que os meus jovens pensamentos voaram, sentia-me atraída

pelos seus cabelos grisalhos, o sorriso aberto, a sua voz melodiosa. 

O sentimento crescia em mim, em demasia para a tenra idade

e apesar de não ter ideia nem noção do que poderia vir a seguir

na minha fértil imaginação via que os meus sonhos eram apreciados.

 

Estava escrito, as coisas aconteceram como tinham de acontecer.

No divã, entre livros, deixei de ser menina e tornei-me uma mulher. 

Apesar dos seus remorsos, ali ou no meu quarto continuamos a fazer.

Foi com ele e as nossas tardes, que depois da dor descobri o prazer.

 

Por falta de cuidado, como quase sempre acontece, fomos apanhados

e para evitar males maiores eu tive de mudar de terra, mudar de ares

mas o escândalo foi elegantemente abafado. Foi por isso que eu emigrei.


Esconder os olhos

 

Nos primeiros meses da minha emigração o meu trabalho 

foi tomar conta de uma menina pequenina enquanto os pais 

trabalhavam, saíam ou estavam em casa, mas sem tempo 

para se ocuparem com a filha. Eram os dois arquitectos 

e viviam numa das melhores zonas dos subúrbios da capital.

 

Eu era uma miúda acabada de chegar, uma moça ingénua

mas estava cheia de vontade de me integrar e de aprender  

a ser moderna, eu que vinha de um meio tão pequeno 

e tão atrasado em relação àquela cidade tão cosmopolita.

 

Sentia-me deslocada e insegura, mas nunca tive jeito 

para baixar a cabeça, esconder os olhos e talvez por isso 

o senhor arquitecto começou a olhar-me com mais atenção

e com os cuidados devidos, os olhos foram conversando.

 

O meu quarto era no rés do chão ao lado da sala do duche

e numa manhã enganou-se na porta e entrou no meu quarto.

Fechou-a atrás de si, pôs o dedo na boca e sorriu-me cúmplice 

como quem diz, não digas nada, não faço mal, não tenhas medo.

 

Aproximou-se da minha cama e começou a acariciar-me 

a beijar-me o cabelo, a boca, a descer pela minha pele 

com os dedos, com as mãos e eu sem saber o que fazer.

 

Estava toda arrepiada e excitada, gostava, mas tinha medo 

com um sentimento estranho do que estava a acontecer comigo. 

Nem me perguntou se podia, mas recebi-o com um suspiro contido. 

 

Fez-me sinal que não podia gritar ou gemer em voz alta

para não acordar a esposa, haver confusão e ficar zangada.

E foi assim durante semanas. Eram poucas as manhãs  

que em silêncio não viesse tomar o duche ao meu quarto.

 

Com o que sei hoje estou convencida que a mulher sabia  

o incentivava a continuar e talvez desejasse participar 

- Teria sido aquilo que os franceses chamam ménage à trois

mas acabou por não dar esse passo, não me quiseram assustar. 

Nesse verão depois do regresso das férias mudei de trabalho.


À boleia


Estava à experiência a trabalhar num restaurante da periferia

e como estava no país há pouco tempo ainda não sabia 

que aos domingos era menor a frequência dos autocarros. 

Pelo próximo tinha de esperar mais de uma hora e pensei

que o melhor seria pôr-me à boleia, talvez tivesse sorte. 

 

Ao fim de um tempo parou um carro, um senhor de certa idade 

que me perguntou para onde é que eu queria ir, o meu destino.

Depois de ouvir disse que me levava, mas antes tinha de parar na casa

que estava a renovar, mas que não me preocupasse, chegava a tempo.

 

Não me quero fazer de coitadinha ou para mim tanto faz 

mas a verdade é que acabamos com ele em cima de mim 

numa sala com as paredes pintadas e as janelas acabadas 

com as nossas roupas amarrotadas a servirem de colchão.

 

Já mais limpos e arranjados levou-me ao trabalho

e quando acabei o meu turno ele estava à minha espera.

Nos dias, meses seguintes continuamos a encontrar-nos

a viver a vida, a levar-me a locais onde nunca imaginei entrar.

 

Ele era um homem charmoso com muitos amigos importantes

como pude constatar, com hábitos especiais e surpreendentes

a forma como conviviam entre si, elas e eles e quem os tivesse a ver

- Clubes muito discretos e reservados onde tudo podia acontecer.

 

Com a minha inexperiência podia ter caído fundo no poço  

na tentação do deslumbramento, da ilusão do mundo fácil

mas foi ele que depois de me mostrar como seu novo troféu

me protegeu, não me deixou submergir, não me deixou afundar.   

 

No fim, para me legalizar até se ofereceu para casar comigo.

Estou-lhe grata, mas ainda hoje sinto que fui abusada por ele.  

Os versos e os reversos da minha vida e outras histórias por contar.  

Professor de matemática

 

Professor de matemática de liceu era um pouco mais novo que eu 

e foi o homem mais bem-posto e mais bonito com quem estive.

Na gaveta das minhas memórias, o começo da nossa história 

foi dos momentos mais ardentes e apaixonantes da minha vida.


Estava a atender um cliente e senti que fora alguém me observava

olhei de forma discreta para ver quem era, mas ele já tinha entrado.

Como nesse dia estava sozinha, esperou a vez de ser atendido.

 

- Desculpe, mas eu não quero comprar nada, entrei para lhe dizer

já me esqueci quando vi uma senhora tão formosa e tão elegante. 

Só por si valeu a pena ter parado nesta pequena e delicada cidade.

A paixão não foi longa, mas aquele belo-homem bem cheiroso

na estratégia triunfante da sedução era um verdadeiro campeão.

 

Quando a magia passou, custou aceitar o fim do romance da loja

mas não havia volta a dar e fui em frente, fui eu que tomei a decisão

de acabar e não aparecer no nosso discreto hotel à saída da cidade.

Fiquei num parque de estacionamento a fazer tempo de ir para casa.

 

Ainda me telefonou a perguntar e a pedir explicações

mas ao saber a razão ficou tão ferido na sua autoestima  

que nem amigos ficamos. Nunca mais soube nada dele.


Com a minha amiga

 

Com a minha melhor amiga, ela divorciada e livre e eu casada 

e com filhos, em vários anos no verão passamos uns dias juntas. 

Apenas as duas como se eu fosse solteira e sem prole como ela.


Uma vez no país vizinho o nosso alojamento era uma cama de casal. 

Durante a noite de forma espontânea como fazia com o meu marido 

encostei-me e ela tímida acariciou-me o peito e os seios, a barriga  

beijou-me suavemente o pescoço como se soubesse que era o mimo 

das ternuras que eu mais adorava e excitava. A maravilha aconteceu.

Nesse dia, nas manhãs e noites que vieram. Umas férias de loucura.



Nos anos seguintes continuamos as escapadinhas, a paixão secreta

de duas amigas apaixonadas, mas eu continuei a preferir homens 

e a nossa linda aventura acabou. A amizade também. Não resistiu.

Demorei muito tempo a esquecê-la e anda hoje penso nela. 

Como poderei eu esquecer

 

A mais ousada das minhas histórias de amor 

a mais bonita foi com um jovem universitário 

quase quinze anos mais novo do que eu. 

 

Começou com o seu lindo olhar fixo em mim

e como durou tanto tempo, quando findou 

com o que sabia, parecia ter a minha idade.

 

O jogo de o seduzir de permitir os seus avanços 

de desmontar e saltar as barreiras físicas e morais 

dos preconceitos da idade e porque conhecia a família

de o termos feito à frente de todos sem ninguém notar

e com a arte mais discreta que se possa imaginar.

 

Ali, em que todos sabiam de todos e tudo se sabia

foi o maior desafio-paixão que me aconteceu na vida. 

Foi o jogo mais maravilhoso que jogadora joguei 

as melhores jogadas de sedução, de sexo e desejo.

 

A banda filarmónica a tocar, as pessoas a dançar 

a algazarra das crianças e da juventude e nós ali perto 

perdidos e achados na festa, no esplendor do prazer. 

 

Por muitos anos que viva nunca me vou esquecer

nem nunca deixarei de estar grata ao meu marido 

que entrava connosco e subia para o outro quarto   

cedia a sua cama e entregava a esposa à paixão

à energia inesgotável do seu jovem amante.

 

Ainda hoje me escreve "Lembras-te 

de vez em quando, ainda te lembras de mim?"

Tonto, como te poderia eu esquecer! 


Ficaram as saudades

 

Estava depois dos cinquenta e sentia-me bem, achava-me bonita 

não tinha pressa de ser idosa antes de tempo quando solidária

a vida me ofereceu mais uma prenda, uma nova oportunidade. 

Deu-me a conhecer um homem com um H grande.

 

Era mais velho uns bons anos, mas com uma pedalada... 

- Se fosse ciclismo seria o portador do maillot jaune du Tour.

Os nossos encontros eram como se fossem cronometrados 

tínhamos três horas à disposição até o meu marido voltar. 

Três que me sabiam a trinta e resgatavam todos os meus sonhos 

que me sabiam a pouco tal a intensidade, o ritmo do seu pedalar. 

 

Se aprendi tanto com ele na cama, que dizer da sua sabedoria? 

- Abriu-me a cabeça como ninguém antes dele tinha feito. 

Como ele me transmitiu conhecimento, cultura e filosofia! 

Eu tinha a nítida sensação de que ele sabia tudo e de tudo. 

O meu mestre na cama, na cultura e no meu conhecimento.

 

Numa das nossas tardes de amor por uns ciúmes infundados 

decidiu castigar-me, deixou-me pendurada e não apareceu.

Eu estava à sua espera com a minha lingerie mais ousada

de mulher que sabe o que quer, que o iria excitar ainda mais. 

 

Sem o meu mestre a casa ficou vazia em tarde vestida de solidão.

Devido ao meu orgulho ferido não nos voltamos a encontrar. 

Ficaram as saudades e o seu lugar reservado no meu coração. 

Se um dia de surpresa bater à minha porta vou deixá-lo entrar.


Amor a três acabou

 

Há muito que sou uma mulher casada com um homem maravilhoso

- O meu ombro perfeito, meu defensor primeiro, o meu porto de abrigo. 

- Motor do meu elevador social, país de acolhimento, meu melhor amigo. 

Meigo e cuidadoso, ternurento e tolerante, é o meu eterno apaixonado.

 

Durante dez anos tive uma vida partilhada: à tarde era do meu amante 

de noite e madrugada era do meu marido. Para mim foi natural viver assim.

Muito pouca gente soube desse filme da minha vida e se souberam 

Foi porque lhes disse ou eram vizinhos e todos os dias viam o carro ali parado. 

 

Recordo como se fosse hoje, a primeira vez com os dois em casa 

à hora de deitar. Estava na cama e o meu marido disse-me

- Não queres ir para cima ter com ele?

- Gostaria, mas tu não te importas?

- Sabes bem que não, que para mim o que conta é a tua felicidade.  

 

Foi talvez a noite mais intensa que passei com ele, o meu amante. 

O amor a três acabou há muito tempo, mas a amizade ficou e ainda hoje 

aos domingos sentamo-nos os três no café e pomos a conversa em dia.

Foi amor à primeira vista


Foi amor à primeira vista, ao primeiro, segundo e terceiro olhar.  

A história de amor e da paixão pelo homem da minha vida 

conta-se num episódio uma frase que está presente na minha alma 

como se ele tivesse dito esta manhã depois do nosso primeiro beijo. 

 

Eram as primeiras semanas, na época que quem namorou nunca esquece 

quando o amor pede cada momento, todos os momentos, todos os dias 

mas ele pelo seu trabalho teve de se ausentar durante quase duas semanas.

 

Quando regressou segurando-me as mãos e olhando-me como só ele sabe 

disse-me: Meu Deus já me tinha esquecido como és bela, deslumbrante!

 

Ainda hoje fico comovida e vêem-me as lágrimas aos olhos. 

Serei a sua namorada e mulher, a sua amante e amiga. 

A sua companheira até ao último dia, última hora da minha vida. 

 

Budapeste, 2024-2025

 

Para o livro “De mim ficam as Palavras”