sexta-feira, 21 de março de 2025

Tempo de espairecer e envelhecer

 

Não há amor que resista a vinte e quatro horas de filosofia
Camilo Castelo Branco 


Envelheci a pensar em ti

 

E foi assim que envelheci a pensar em ti. 

Envelheci em silêncio e a reduzir a lonjura

a distância da cidade portuária mais próxima

tão próxima que não cabia no meu pensamento. 

 

Assim como quem não acredita no destino 

inquieto sem dar conta das mudanças do vento  

com o mais velho e mais escuro caudal do tempo 

fui aguadeiro camaleão a desaguar no rio da vida. 

 

Era tarde para sair e mudar de embarcação 

e cedo para aproveitar a substância da baixa-mar. 

Assim como um estivador abraçado ao seu cais 

sem grandes pressas envelheci a pensar em ti.


Cresci contigo

 

Sem estar vacinado cresci a sonhar contigo 

como se fosses uma madrugada madrinha

ou uma bela mulher que sai à rua para se mostrar 

querer-nos convencer que é ela a nossa liberdade. 

 

Cresci contigo porque nasci no tempo da lua cheia 

quando a manhã se atrasava e o sonho era gratuito. 

Não sabia como te beijar, mas coragem não me faltava 

sentia que um amor como o nosso teria de dar certo. 

 

Sem hesitar avancei e ainda hoje sigo em frente contigo 

pelas avenidas que nos ajudam a chegar ao nosso abrigo. 

Partilhando as ideias e os sonhos, escutando os outros

porque sabemos que a liberdade tem valor se for de todos.


Foi por ti que sonhei

 

Foi por ti que sonhei viajar sozinho 

Foi por ti que saí do meu país 

Foi por ti que me fiz ao caminho 

Só por ti é que fui árvore e fui raiz.

 

Foi por ti que viajei longe para te trazer até mim

Com violinos nas asas e guitarras em cada mão. 

No dia da chegada organizar um grande festim

Onde juntasse num só o teu e o meu coração.

 

Foi por ti que sonhei e foi por ti que viajei 

Para casar contigo perante a praça e a lei.


Para te esquecer

 

Foi para te esquecer que sai de casa a correr

foi para não te lembrar que sai para espairecer 

cai em mim e pensei o que vai ser de mim sem ti 

voltei a casa a correr com medo de te perder.

 

Ainda lá estavas em roupão em frente do monitor 

preparei à pressa um café, mas como me esqueci 

e não aqueci as chávenas como costumas fazer

levei na bandeja para ser bebido antes de arrefecer.

 

Foi por me lembrar o quanto eu gosto de ti 

e que possa de novo sentar-me na poltrona 

foi para te recordar o quanto eu gostei de ti

é que a culpa morre casada, viúva ou solteirona.

 

Emagreci a sonhar contigo



Emagreci a sonhar contigo 

Engordei a olhar-te de longe 

Emagreci ao ver-te de perto 

Infeliz por não saber o teu nome.

 

Emagreci porque estraguei tudo 

Emagreci por me armar em esperto 

Engordei porque ao abrir a boca fechada

Porra sem querer dei cabo do resto.

 

Deixei de comer ao sentir-te tão perto 

Deixei de beber ao ver-te ao meu lado 

Deixei má sorte de o fazer por descuido 

Por um erro criança de folha de cálculo.

 

Emagreci porque esqueci o seu nome 

Será que ela se chamava Clarisse 

Quem disse que a formiga tem catarro 

Meter-me onde nunca fui chamado.

 

Engordei porque era um esforçado comilão 

Engordei porque era um rapaz brincalhão 

Porque brinquei muito contigo à apanhada

Às escondidas e também à cabra-cega.

 

Emagreci por não ter vergonha na cara

Engordei porque nada me vem à cabeça 

Emagreci porque esqueci o que queria rimar. 

Por não ter um buraco onde me possa enfiar.


A descer as escadas


A descer as escadas deslizei a correr pelo corrimão 

A descer as escadas faltou pouco para um grande trambolhão 

A subir as escadas tropecei e bati com o nariz nos degraus 

Dá muito trabalho subir escadas sem bater com ele no chão. 

 

A subir as escadas tive uma vertigem do pior em grau superior 

como se nunca tivesse visto uma moça bonita à porta do alçapão 

foi um trambolho trampolim da atração tramada pelo trambolhão 

o que me valeu foram os dois paus que tinha trazido do Equador. 

 

A descer as escadas esqueci-me que podia ter apanhado o avião 

não caia nem tropeçava e bastava-me agarrar-me ao corrimão 

a descer as escadas evitei a distração do tombo da nação.

A subir as escadas não tropecei, mas levei um empurrão. 

Disserta filosofia

 

Disserta sem descanso filosofia trinta e seis horas por dia

disserta sem desconto cortesia e outros textos da ventania.

Enquanto pões a máquina de lavar roupa a trabalhar 

não te esqueças da vibração que ela sente por te amar.

 

Do ranger das dobradiças da fechadura a precisar de óleo 

E da chave que de não ser usada está cheia de ferrugem 

Se a erva está murcha a sacanice faz muito bem à pele  

à penugem sagrada no espaço vadio da vadiagem.

 

Disserta sem desconto as tuas aulas de filosofia

Disserta sem descanso, noite e dia e a bom preço 

mas não sejas cara de pau, faz-te às vezes de malandro

moleiro a vender o teu pão à freguesa mais madrugadora.

 

Budapeste, 2025

 

Para o livro “De mim ficam as Palavras”