Não há amor que
resista a vinte e quatro horas de filosofia
Camilo Castelo Branco
Não há amor que
resista a vinte e quatro horas de filosofia
Camilo Castelo Branco
E foi assim que
envelheci a pensar em ti.
Envelheci em
silêncio e a reduzir a lonjura
a
distância da cidade portuária mais próxima
tão próxima que
não cabia no meu pensamento.
Assim como quem
não acredita no destino
inquieto sem
dar conta das mudanças do vento
com o mais velho
e mais escuro caudal do tempo
fui aguadeiro camaleão
a desaguar no rio da vida.
Era tarde para sair
e mudar de embarcação
e cedo para aproveitar
a substância da baixa-mar.
Assim como um
estivador abraçado ao seu cais
sem grandes
pressas envelheci a pensar em ti.
Sem estar vacinado
cresci a sonhar contigo
como se fosses
uma madrugada madrinha
ou uma bela
mulher que sai à rua para se mostrar
querer-nos
convencer que é ela a nossa liberdade.
Cresci contigo
porque nasci no tempo da lua cheia
quando a manhã
se atrasava e o sonho era gratuito.
Não sabia como
te beijar, mas coragem não me faltava
sentia que um
amor como o nosso teria de dar certo.
Sem hesitar avancei
e ainda hoje sigo em frente contigo
pelas avenidas
que nos ajudam a chegar ao nosso abrigo.
Partilhando as
ideias e os sonhos, escutando os outros
porque sabemos
que a liberdade tem valor se for de todos.
Foi por ti que
sonhei viajar sozinho
Foi por ti que
saí do meu país
Foi por ti que
me fiz ao caminho
Só por ti é que
fui árvore e fui raiz.
Foi por ti que
viajei longe para te trazer até mim
Com violinos
nas asas e guitarras em cada mão.
No dia da
chegada organizar um grande festim
Onde juntasse
num só o teu e o meu coração.
Foi por ti que
sonhei e foi por ti que viajei
Para casar
contigo perante a praça e a lei.
Foi para te
esquecer que sai de casa a correr
foi para não te
lembrar que sai para espairecer
cai em mim e
pensei o que vai ser de mim sem ti
voltei a casa a
correr com medo de te perder.
Ainda lá
estavas em roupão em frente do monitor
preparei à
pressa um café, mas como me esqueci
e não aqueci as
chávenas como costumas fazer
levei na
bandeja para ser bebido antes de arrefecer.
Foi por me
lembrar o quanto eu gosto de ti
e que possa de
novo sentar-me na poltrona
foi para te
recordar o quanto eu gostei de ti
é que a culpa
morre casada, viúva ou solteirona.
Emagreci a
sonhar contigo
Engordei a
olhar-te de longe
Emagreci ao
ver-te de perto
Infeliz por não
saber o teu nome.
Emagreci porque
estraguei tudo
Emagreci por me
armar em esperto
Engordei porque
ao abrir a boca fechada
Porra sem
querer dei cabo do resto.
Deixei de comer
ao sentir-te tão perto
Deixei de beber
ao ver-te ao meu lado
Deixei má sorte
de o fazer por descuido
Por um erro
criança de folha de cálculo.
Emagreci porque
esqueci o seu nome
Será que ela se
chamava Clarisse
Quem disse que
a formiga tem catarro
Meter-me onde
nunca fui chamado.
Engordei porque
era um esforçado comilão
Engordei porque
era um rapaz brincalhão
Porque brinquei
muito contigo à apanhada
Às escondidas e
também à cabra-cega.
Emagreci por
não ter vergonha na cara
Engordei porque
nada me vem à cabeça
Emagreci porque
esqueci o que queria rimar.
Por
não ter um buraco onde me possa enfiar.
A descer as
escadas deslizei a correr pelo corrimão
A descer as
escadas faltou pouco para um grande trambolhão
A subir as
escadas tropecei e bati com o nariz nos degraus
Dá muito
trabalho subir escadas sem bater com ele no chão.
A subir as
escadas tive uma vertigem do pior em grau superior
como se nunca
tivesse visto uma moça bonita à porta do alçapão
foi um
trambolho trampolim da atração tramada pelo trambolhão
o que me valeu
foram os dois paus que tinha trazido do Equador.
A descer as
escadas esqueci-me que podia ter apanhado o avião
não caia nem
tropeçava e bastava-me agarrar-me ao corrimão
a descer as
escadas evitei a distração do tombo da nação.
A subir as escadas não tropecei, mas levei um empurrão.
Disserta sem descanso filosofia trinta e seis horas por dia
disserta sem
desconto cortesia e outros textos da ventania.
Enquanto pões a
máquina de lavar roupa a trabalhar
não te esqueças
da vibração que ela sente por te amar.
Do ranger das
dobradiças da fechadura a precisar de óleo
E da chave que
de não ser usada está cheia de ferrugem
Se a erva está
murcha a sacanice faz muito bem à pele
à penugem sagrada
no espaço vadio da vadiagem.
Disserta sem
desconto as tuas aulas de filosofia
Disserta sem
descanso, noite e dia e a bom preço
mas
não sejas cara de pau, faz-te às vezes de malandro
moleiro a vender o teu pão à freguesa mais madrugadora.
Budapeste, 2025
Para o livro
“De mim ficam as Palavras”