quinta-feira, 17 de julho de 2025

Excertos e Migalhas

 

Para o livro "De mim ficam as Palavras"

Deixa-me ser um poema

 

Dá-me tempo, mais umas semanas

de paciência para sem pressas 

de manhã à noite poder-te mostrar 

e com o meu olhar fazer-te acreditar

 

que tenho este mundo e o outro

para te receber e nos abrigar do vento.

Mundo que inventei entre pão e migalhas 

entre beijos nossos e muitas palavras.

 

Permite-me que traga para a mesa

as melhores lembranças do futuro

enquanto levemente te acaricio o rosto 

e tu me seduzes com o teu perfume de rosa.

 

"Deixa-me ser um poema

serei casa e palácio, água e pão 

serei o mistério de vida 

que se deleita na tua mão."

 

Se me deixares pegar-te pelo braço 

serei vinha e pomar de laranjeiras

serei horta e plantação de oliveiras.

Farei do regresso um eterno abraço. 


Porcelana portuguesa


Ao desfolhar as notas e apontamentos

que tinha guardado para o presente incerto

encontrou um excerto que lhe fez lembrar 

outros dias menos distantes, mais afirmativos.

 

"Foi em travessa   

de porcelana portuguesa  

que ao seu homem toda nua  

se ofereceu no tampo da mesa."

 

Sim, na conversa desenvolta e fluída

lábia era coisa que não lhe faltava 

e quando em condimentado aconchego 

tinha sempre troco no bolso do mamilo.

 

Ninguém lhe passava a mão pelas costas de graça 

quando jeitosa e segura de si afirmava com graça 

- Bebo leite magro porque tenho o sangue gordo 

dizia com um sorriso bonito, um sorriso maroto. 

Não te esqueças de mim

 

Não te esqueças de mim

quando a distância for muita

e a esperança for pouca

do amor se cultivar no jardim.

 

Não te esqueças de mim

quando os dias são noites escuras

e as manhãs já não tropeçam em nós

nas madrugadas sem te chamar jasmim.

 

"Não te esqueças de mim  

quando no copo do teu vinho tinto 

vires desenhar um outro sorriso. 

Teu labirinto, teu absinto."

 

Lembra-te de mim, nunca te esqueças 

mesmo de improviso, mesmo só por instinto

o teu melhor vinho são das uvas do meu corpo.

Para ti a areia fina do meu sorriso não tem fim.


Do meu prazer uma canção

 

Nessa época havia uma canção 

que mal se ouvia na rádio 

talvez por excesso de erotismo 

numa terra de costas para o mundo. 

 

Talvez por sermos muito pudicos 

num país desde sempre adiado 

ou os brandos costumes elogiados  

de um pequeno povo tão resignado. 

 

A letra dizia “Tu que fazes 

do meu coração a tua morada

dos meus seios o teu passeio

dos meus olhos o teu jardim 

 

Que fazes da minha boca teu pão

da minha água teu vinho,

do meu prazer uma canção.”

Parece que comprometia a alma da nação. 

 

Foi quase excomungada

por uma padralhada que só via pecado

onde o amor era cantado

onde quase nua a paixão se sentia

e o prazer dos amantes se mostrava.


Madura sinónimo de doçura

 

Não era preciso ser muito perspicaz 

para ver que aquela amizade 

era do melhor que havia por ali.

 

As surpresas ainda vinham a caminho 

e já os adjectivos se iam esgotando 

com a sua pertinência e encantamento.

 

Escrevia em verso e com rimas gostosas 

que ficavam, não passavam despercebidas.

Experiente sabia destacar-se como poucas.

 

“Madura, dizem de ti

como se estar madura 

não fosse sinónimo de doçura.” 

 

Apetecia saltar as regras da discrição 

apetecia comentar e perguntar-lhe a sorrir 

qual era a parte mais doce da sua fruta.

 

Perguntar com quem estava a sonhar 

e imaginar a resposta mais adocicada 

- A sonhar como seria viver contigo.


Sem ti não há sol

 

Dá-me um minuto de atenção 

mesmo que esse minuto se faça horas e dias

tu já tenhas há muito desligado o telefone

e eu continue a falar sem parar nem respirar. 

 

Há muito tempo que te queria dizer

que esta nossa linda aventura 

tão pouco comum, tão fora de caixa

não pode acabar só assim 

sem um último encontro, uma despedida.  

 

Sei muito bem, não preciso que repitas

que tudo tem um princípio e um fim

como há tempos que a ribeira vai cheia 

e outros que está seca sem pinga de água.

Não é por isso que o pintassilgo deixa de cantar.  

 

Quero que saibas de uma vez por todas

faminta e despida de qualquer tola autoestima 

"sem ti não há sol que me aqueça

nem pão que me apeteça".


Se queres Amor que te esqueça

 

"Se queres Amor que te esqueça 

devolve-me o amor que te dei. 

Eu só te posso esquecer  

se esquecer que te amei."

 

Anda vem para a roda dançar

manda a tristeza para bem longe 

sente o rodopio ali à volta da fonte 

e não te importes se não sou o teu par.

 

Sente de perto os odores fortes da festa 

os calores que colam a pele ao vestido 

os alertas tímidos do coração adormecido

adeus velha paixão e depois começa outra.

  

Não te esqueças que a vida é um sopro

e quando damos por ela já está de saída

não desperdices os momentos de alegria

e faz do novo romance a tua nova fantasia.


Já fui alameda

 

Leitor que nunca me vais ler

sabes é em ti que estou a pensar

é para ti que estou a escrever.

 

Escrevo sabendo quão ingrato 

é o papel do autoproclamado 

escritor anónimo e desconhecido. 

 

Como já antes escrevi não é por não ser lido 

nem saberem de mim que vou desertar

as palavras com que me levanto e caminho.

 

Hoje com um jovial e acrescido optimismo

gostaria de afirmar que não conheço

ninguém que seja feliz sozinho.

 

Não estou a dizer que não há pessoas 

que estão sozinhas e são felizes

mas eu não conheci nem as conheço.

 

Procura em cada dia a felicidade 

o carinho que faz bem e faz viver

a ternura que não tem tempo nem idade.

 

Procura o amor verdadeiro 

aquele que quanto mais se dá 

mais há para dar no armazém do coração. 

 

A amizade que como uma boa cola, 

cola tudo o que há de melhor entre nós 

cola os sentimentos e a festa da vida 

 

Sim é-se muito mais feliz 

se a felicidade for partilhada e se multiplicar.

Vale a pena manter abertas as portas da vida.

 

"Já fui alameda  

praça, largo, avenida. 

Já fui caminho, vereda 

e hoje se sou beco sem saída 

em mim tenho ainda abertas 

todas as portas para a vida"


As saudades de ti

 

Quem foi que inventou 

que a paixão faz crescer asas

e se verdade ensina a voar e sonhar?


Quem foi que escreveu 

que grata a resiliência das almas

alimenta a perfeição das palavras?

 

Quem foi que espalhou ao vento 

que o amor quando chega 

fica em nós até ao nosso último dia?

 

"Meu amor como te dizer 

que as saudades de ti 

faz-me pouco a pouco morrer."

 

São excertos e migalhas 

de um passado que se foi

que saiu de casa de mochila às costas

que partiu para não mais voltar.

 


Excertos e Migalhas (2025)

Para o livro “De mim ficam as Palavras”


terça-feira, 6 de maio de 2025

Palavras avulso e a granel / 4


Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.

Fernando Pessoa (Ricardo Reis)


2024 - 2025 

Se nas montanhas

 

Que queres de um campo de urtigas? 

Searas de trigo, vinhas e cachos de uvas?

Pão e vinho? Em que mundo vives? 

Quando amanhã de vez nos faltar a água  

mata a sede com as ervas secas do velho rio.

 

Os mais clássicos lavam as meias à mão 

os outros mais modernos lavam-nas ao pé.

Os mais agressivos preferem a pontapé 

eu fico com elas calçadas como inspiração.

 

Aprendi recentemente um conceito novo 

sobre a corrupção vertical e horizontal.

Sentada e nua jurava por toda a sua roupa 

ser apenas transparente como a arte erótica.

 

Se nas montanhas não apanhastes chuva 

desce até ao vale e colhe malmequeres

junta os pedaços de sol com carinho  

e da planície do coração oferece o raminho 

a quem ansiosa te espera apaixonada.


Palavras avulso (soneto)

 

Os outros não sabiam e eles não queriam

que se soubesse e fosse motivo de conversa 

que antes do primeiro encontro já se conheciam 

como se tivessem dez verões de namoro.

Como se vivessem juntos há muito anos.

 

Persistente a paixão abriu todas as portas 

e foi devidamente documentada e comprovada.

A doçura das suas palavras avulso e amargas

foi detalhadamente divulgada e promovida.

 

A festa que anunciava foi apresentada 

comunicada pelos olhos lindos da remetente 

apreciada e valorizada pelo seu destinatário.

 

Foi como sempre precisa e criativa e inventiva 

como um espelho que à luz reflecte e ilumina.


O tu o nadie

 

Simplíssimo tributo a Jorge Mario Bergoglio

mais conhecido por Francisco, Papa do povo.

 

"O tu o nadie" escreveu Jorge a Amalia

quando tinha apenas 12 anos e acrescentou

"Si no me caso con vos, me hago cura".

 

Foi certamente um puro sentimento

uma linda história de amor de criança

uma paixão precoce e antes do tempo.

 

De um menino que tinha olhos para ver

e coração aberto para sentir e imaginar.

Um lindo amor que não se concretizou

Infantil, não se fez adolescente ou adulto.

 

Em contrapartida para nem tudo se perder

sessenta e tal anos depois tivemos um “porteño"

morador do humilde bairro das Flores

e desde sempre fervoroso do seu San Lorenzo.

 

Argentino, o primeiro papa latino-americano

da história milenar da sagrada igreja católica.

Tivemos e pudemos admirar, aplaudir e gostar

mesmo os não crentes e ateistas como eu.

Obrigado Francisco, Papa vindo do "fim do mundo".


É em Bled


Desfiladeiro desfolhado da garganta profunda

Desfile descartável de vaidade saloia e antiquada

Para dizer que gajo importante me coube ser

Ter vindo ao mundo para ser gente e convencer. 

 

Podia continuar com prosa que ninguém vai ler

Lembrar que vim até aqui de burro a motor japonês 

Que me mandei pintar do avesso para me refazer 

Com as paredes de um sol de abril talvez português. 

 

Dizer que é em Bled com esta paisagem maravilhosa 

Mais de postal ilustrado do que invenção da alma 

Que os pensamentos sobre o mundo me veem à cabeça 

Me perturbam, mas não me tiram da vida aqui tão cerca.

 

Apesar de morar há muito num dos países vizinhos, 

ontem foi a primeira que o encontrei e apreciei 

caminhei pela obra-prima do senhor escultor Radovna 

rio que com o seu metódico trabalho de anos e anos 

esculpiu magistral o desfiladeiro Vintgar e lhe deu fama. 

Bohinj, Mostnica e Savica

 

Comecei a escrever este apontamento  

algures no trilho da Cascata Mostnica 

e o rio de montanha com o mesmo nome 

onde o elefante que se perdeu veio matar a sede  

no caudal das águas que alimentam o Lago Bohinj.

 

Uma deliciosa queda de água quase anónima 

logo no início e no final de uma difícil subida. 

Chama-se ponte do diabo porque para um precipício  

com aquela altura e perigo não havia mais ninguém  

com tomates para a construir que não fosse o diabo.

 

Matreiro e velhaco impôs uma condição  

a alma do primeiro a atravessar a ponte  

seria sua propriedade para a eternidade. 

O bispo da terra decidiu contornar o assunto. 

O sacrificado foi um cão enganado por um osso.

 

Se fosse agora seria o bonito caía a ponte e a Trindade 

os amigos dos animais não deixariam a coisa pela lenda.

Para amenizar o conflito fala do que vistes 

- As pedras não crescem nas árvores 

mas as árvores crescem nas pedras. 

 

No caminho de Savica é proibido pescar 

desaconselhável desejar peixe frito 

fotografar e partilhar avisos de zona  

- Pela gargalhada aqui há gato  

porque nesta terra escreve-se cona. 

 

Não me levam a mal, mas por vezes é bom recordar  

- Em Mostnica e Savica o eco barulhento das águas 

fazia-me lembrar o mar da Nazaré a labregar.  


Rio Soča e Bovec


Olhar o passo para não tropeçar e cair  

parar para ver e apreciar tanta beleza  

que à nossa volta se oferecia gratuita. 

Caminhar de mochila tem mais encanto  

quando se caminha por sítios de deslumbrar.  

 

Depois de ontem posso dizer com um sorriso  

que já não morro sem ter bebido água do rio. 

Andamos em trilhos entre os Alpes Julianos   

o ponto mais elevado com quase três mil metros.  

Caminhadas com partidas e chegadas a Bovec.    

 

Ali o passo mais alto é a ligação   

entre os vales dos rios Sava e Soča.  

Passo ou colo que bonita expressão.  

Coloca as tuas mãos quentes em mim   

e eu colo os meus lábios húmidos nos teus.  

 

Sítio dos amantes dos desportos radicais  

sítio de aventuras fluviais e amantes actuais. 

Imaginar que aqui neste local tão pacífico  

pela sobrevivência com armas e granadas 

que há 100 anos se matavam uns aos outros.

 

Ecossistemas para tudo

 

Hoje há ecossistemas para tudo 

pessoas e animais, cartões e caixas automáticas

plantas e oceanos, serras e alguns desertos.

 

Antes terá sido um bairro com autocarro   

casas pré-fabricadas da idade pré-moderna 

agora somos em terra uns ecopontos perfeitos. 


Ecossistemas em que o eco da mãe ou madrasta 

a natureza está em baixo, perigosamente em baixo 

mas o ego individual nunca esteve tão em cima. 

 

Temos também ecossistemas de ciência e inovação

da vinha e do vinho, ecossistema religioso e financeiro. 

O ecossistema de primeiro foi o ovo ou a galinha.

Ecossistemas das palavras roubadas ou mal-usadas. 

Salvo raras excepções somos uns autênticos papagaios. 


Mainstream & Main street

 

Por ser míope uso óculos e para ouvir 

aparelhos nos dois ouvidos, sem eles 

estaria na cave o tempo quase todo. 

 

Tomo também vitaminas para continuar 

a magicar e a pensar pela minha cabeça 

as vitaminas da vida e do mundo à volta.

 

Como gosto de reflectir para ter opinião 

não posso estagnar, tenho de evoluir

e no verbo com alguns estrangeirismos.

 

Entre as things de que eu mais gosto 

é quando nos meetings em que participo 

cada segunda palavra ser importada

tem classe e sobretudo tem conteúdo.

 

Das minhas aquisições mais recentes 

e para o futuro shortlist do meu texto

no workshop destacaria em power point 

a importância do Mainstream & Main Street.

 

Europeu e americano, ocidental e liberal.

A corrente do pensamento dominante 

enfiada à martelada nas lojas da rua principal.

Discutida ao detalhe no último brainstorming.


A tasca da aldeia


 A tasca é a alma da aldeia disse o outro 

um espantalho das paprikas e beringelas 

e que por graça do pai Viktor é ministro.

 

A ideia é pôr o povo de volta do bota-abaixo

distribuir uns tostões para adiar as ressacas

e prolongar a cirrose e a vida das tabernas.

 

Feita a crítica política ao novo programa

de arrebanhar votos com aguardente 

e continuar mais uns anos no poleiro.

 

Vamos lá mudar de diapasão e de tema

contra dogmas não há milagre ou mensageiro 

e cada povo tem o governo que merece.

 

Serviço ao cliente não é à mesa é ao balcão 

o dinheiro é de plástico e sotaque estrangeiro 

o mata-bicho e um cigarro em cada mão.


Tiro na nuca

A pensar no criminoso-camarada Vasily Blokhin*


Inimigo do povo, tiro na nuca
Inimigo do partido, tiro na nuca
Inimigo da revolução, tiro na nuca
Inimigo da classe operária, tiro na nuca
Inimigo da pátria soviética, tiro na nuca

Inimigo do homem novo, tiro na nuca
Inimigo do marxismo-leninismo, tiro na nuca
Inimigo da amizade entre os povos, tiro na nuca
Inimigo da Internacional comunista, tiro na nuca

Inimigo da limpeza étnica, tiro na nuca
Inimigo da degola dos kulaks, tiro na nuca
Inimigo da verdade sobre Katyn, tiro na nuca
Inimigo da liquidação dos inimigos, tiro na nuca

Espalha mentiras sobre Holodomor, tiro na nuca
É judeu ao serviço do imperialismo, tiro na nuca
Quer abrir os olhos aos idiotas úteis, tiro na nuca
Ciumento das vodka-orgias de Béria, tiro na nuca
Desertor-traidor de Stálin Pai dos povos, tiro na nuca.

*Esta é a terceira versão de texto que escrevo sobre o camarada Blokhin (1895-1955) um dos melhores exemplos do que foi ser comunista e agente da polícia política na URSS. Um criminoso brutal, metódico e implacável. O melhor exemplo do homem novo comunista.


Vasily Blokhin executou dezenas de milhares de prisioneiros pelas suas próprias mãos, incluindo cerca de 7.000 prisioneiros polacos durante o Massacre de Katyn, na primavera de 1940, o que faz dele o pior carrasco de que há registo na história mundial.    

 

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Palavras do eléctrico ou o eléctrico das Palavras / 4

 

Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta

continuarei a escrever. Clarice Lispector


Para o livro "De mim ficam as Palavras"

Encosta


Era ali que os caminhos subiam 

e até ao cimo os levavam.

Era ali que livres pela encosta 

rebolavam e se abraçavam.   

 

Se envolviam, se disfarçavam e se escondiam 

se comemoravam, se despiam e se amavam

e sem remissão se ofereciam um ao outro

certos do segredo da sua festa mais íntima. 

 

Que ninguém sabia deles nem a poesia 

para os escrever e imortalizar a sua história. 

 

Enxaguavam-se no riacho da ladeira 

onde as plantas formavam uma cadeira 

o declive para uma última promessa 

um último abraço, um beijo avassalador.

 

Encosta-te às suas costas, ao seu peito 

à sua alma, à sua paixão infinita por ti 

à aventura e ao milagre do vosso amor.

Encosta-te e nunca te afastes do amor.

 

Excertos de cartas antigas

 

Poderei estar enganado e se for o caso 

penitencio-me por isso, mas poesia

é também remexer memórias do passado

voltar a ler cartas antigas ou alguns excertos

de quando ainda havia tempo para escrever.

 

Foi sempre a minha sincera convicção 

quando tu passasses a ser a minha manhã 

o meio-dia e a tarde, a noite e a madrugada.

 

Em que fosses o sol e a lua da minha vida

de pronto te irias cansar e fartar de mim.

Diz-me, enganei-me? Não é assim?

 

Estás muito enganado. Ouve, não é assim. 

Olha bem, porque é a minha alma que grita.

Tu és quem sempre imaginei para mim.

 

Não foste o primeiro, mas és o último.

Aqui, o primeiro e último da minha vida

e até ao meu último sopro estarás em mim. 

 

Ao alpendre

 

Sente-se de novo a chegada da alba 

do amanhecer sempre apressado 

do tempo mais curto que o desejado

na roupa branca da cama amarrotada

e a camisa de dormir no chão esquecida.

 

A cantiga de entrega da minha prometida 

da paixão a arder pela exaltação tardia 

contra latitudes e geografias diferentes 

dos amantes abraçados pela telepatia 

dita ao telefone e com a televisão ligada.

 

Para os velhotes não ouvirem os gemidos 

não virem ao alpendre e ficarem a saber 

que o amor não é feito apenas de sorrisos 

que não tem idade nem prazo de validade.  

Rosa encantada feita invenção do prazer.


Novo planeta


Depois de o ter conhecido e sido envolvida

no abismo pela magia infinita da sua sabedoria 

por ser uma verdadeira enciclopédia viva

e ter ficado fascinada pela sua vasta cultura.

 

Pouco depois desse decisivo momento

passou a ver o mundo pelos seus olhos 

as suas frases típicas e os seus conselhos 

com as suas opiniões e críticas certeiras.

 

Foi a descoberta de um novo mundo 

de um alargado e desconhecido universo 

para guardar por dentro de cada gaveta 

e construir a livraria do seu novo planeta. 

Piloto automático


Ninguém se pode despir da sua pele

não há quem mude apenas por mudar

tem de vir de dentro e do fundo da alma 

em sobressalto incontido o fascínio despertar. 

 

Foram anos a se mostrar e se destacar 

anos de encantamento e de sedução 

com tantos candidatos em lista de espera 

a quererem arrebatar o seu coração. 

 

Quando finalmente encontrou o trilho

e percorreu as dunas de mãos dadas 

na praia se pode espreguiçar e deitar

adormeceu e ligou o piloto automático. 

 

Sabe como poucos da poda da narrativa 

escolher a melhor agulha a linha e o nó a dar

selecionar as respostas e não se sentir cativa.

Deixar-se ficar para trás e amanhã não voltar.  

O Amor dança-se a dois


Ao longo das margens baixas do rio

sedimentava-se sedosa a sedução.

Às folhas no chão ninguém fazia caso

e ao subsolo ninguém prestava atenção. 

 

Mas há por ali alguém que não dorme 

e que não nega a esmola nem o pão.  

Alguém que sabe da lua vinda do norte

e sonha com ela porque tem coração.

 

Alguém disposto a andar a monte

ou de barco para pescar o seu sorriso. 

Não deixar Eros na erosão da quietude

ou a negação do bem-estar no paraíso.

 

Como dizia asssertivo, bom sexo 

pode-se fazer a três, ménage à trois 

mas verdadeiro o amor é como o tango 

o Amor, faz-se e dança-se a dois. 

Cinco meses e dois dias


A pergunta séria feita a sorrir seria 

o que são cinco meses e dois dias

na longa vida de duas pessoas? 

 

Com o que desde ontem sei hoje

estou convencido que nem a brincar

pronta a resposta não se faria esperar. 

 

- Menos de meio ano, mas por mim podia ser 

o tempo desta vida e da outra se houver

e para não ter de recorrer à tabuada

o tempo exacto para os olhos se olharem

o tempo certo para as bocas se cruzarem.

 

- Recordar os bons tempos passados juntos  

não lamentar os que gastamos ao engano

esquecer os momentos dos dias mais cinzentos

sem a cor do sonho, com as palavras sem rumo

e a promessa de que estarei sempre contigo. 

Sentou-se ao meu lado

 

Sentou-se ao meu lado e nem me viu 

eu vi-a pelo desafio do seu perfume 

baunilha que nunca tinha cheirado antes.

 

Um perfume que convidava a comer 

como se fosse uma bolacha baunilha 

ou arroz-doce polvilhado com canela.

Loura nela havia algo de aristocracia distante

e pela grande diferença dos troncos entre nós 

devia ser alta - comigo também não é difícil.

 

Pelo canto do olho via-lhe um traço renascentista 

de alguém que não está habituado o dia inteiro 

a virar frangos ou pensar nas últimas compras 

do fim-de-semana e a comida que vai cozinhar. 

 

Quando se levantou para descer pude ver 

como era alta vestida de calças quentes  

porque apesar de abril lá fora fazia frio. 

 

Casaco curto peludo cor de doce creme 

sem açúcar queimado para acompanhar.

Era a fome escondida da sobremesa 

a vontade de não comer para não engordar.


Mais dura e velhaca


Pode parecer conversa de jumento

mas ao contrário do que se pensa 

hoje ainda é mais difícil do que antes

o despontar social e subir os degraus 

do escadote na hierarquia da sociedade.

 

Quem nasce em baixo se não tiver 

uma pitada de sal a salgar a sorte 

ou talento especial, jogador de futebol 

carreirista da juventude partidária 

algo que lhe sirva de elevador social.

 

A vida é mais dura e mais velhaca

e é muito difícil escapar ao destino

porque faça o que fizer o normal 

é ficar na cave ou no rés do chão

- habituar-se até ir desta para melhor.

Puta da igualdade de oportunidades!


Epopeia de Gilgamesh

 

Perdoa-me se eu sem querer  

exagerar ao gritar a dor e gemer  

mas é pelo amor por ti que o faço.  

 

Por ti que tenho no coração 

e pela criação do mundo novo. 

O Filho de Deus colado ao peito.

 

A história escrita em argila

do tempo dos bisavós e trisavós 

mais ano ou menos ano antigo

e me quero armar ao pingarelho.

 

Soube que a Epopeia de Gilgamesh 

foi encontrado em escavações 

feitas em Nínive hoje vestida de Mossul 

no injustamente infeliz Iraque. 

 

Como estou com pressa para acabar

li que a narrativa de génesis no Antigo Testamento 

não ser mais do que uma cópia bem escrita 

do mito muito antes escrito da criação babilónica.

 

A cópia em segunda mão é sempre pior 

do que o original, tal homem tal deus 

tal humanidade e tal divindade repleta 

de fúrias e ódios, de traumas e castigos. 

 

Mais a gratidão ao paladar da refeição 

repasto de domingo para os deuses 

que não cansam de mal dizer e mal fazer

ou não fossem eles criações dos homens.

 

2024-2025


quinta-feira, 17 de abril de 2025

Com Liszt e Chopin


Porque a música penetra mais fundo na alma. Platão


Para o livro "De mim ficam as Palavras"

Liebestraum No. 3 (Sonho de Amor) de Liszt

 

"Ama, ama enquanto puderes"

enquanto a amada te esperar

enquanto a paixão continuar 

e o vosso amanhecer desejares.

 

Ama, ama enquanto fores vivo

enquanto te sentires renascer 

quando o seu olhar te sorrir

e convidar para a rua do prazer. 

 

Ama, ama enquanto souberes 

que o seu coração bate em ti 

que este Amor não morre por si

por ela estás pronto a tudo deixares.

 

Ama, ama até ao último sopro 

sempre o vosso primeiro momento 

e recorda que um minuto com ela

é mais do que uma vida com outra.


Rapsódia Húngara No. 6 de Liszt

 

Ó Meu Amor, aconteça o que acontecer 

por muitas mágoas que sintas e tenhas 

mágoas por mil razões sedimentadas

barco afundado carregado de pedras.

 

Para a despedida, para a tua partida 

que fria e impiedosa a vida justifica

peço-te, nunca me deixes abandonada

sozinha e perdida à beira da estrada. 

 

Perdida, triste e por dentro escurecida

entre uma terra nova e outra desconhecida

a meio caminho entre a dor, o amor e o nada

sem saber o rumo nem tão pouco o futuro.

 

E é tão bom quando fazemos as pazes 

quando as fúrias, as guerras e os ciúmes 

dão lugar à paz e corremos para o reencontro.

 

E nos despimos para nos vestirmos um do outro 

adormecemos lado a lado cansados e felizes

- A descansar em cinzas ao gosta do Bom Deus.

 

Ó Meu Amor, nunca te vou esquecer 

- Os teus olhos são a noite no mar 

- São o mar na noite, no dia da noite.


Rapsódia Húngara No. 2 de Liszt

 

Devagar devagarinho com a transparência dissimulada 

como quem não quer a coisa e com a finesse 

que só uma dama, uma mulher tem e sabe usar 

se o assunto lhe interessa e pensa valer a pena. 

 

Foi-o envolvendo e seduzindo (ele pensava o contrário).

Um dia depuseram as armas e tiraram as teimas 

desarmados e abraçados multiplicaram o pão e o beijo

juntaram-se e não podia ter sido refügio mais valioso. 

 

Na flor da vida e para não fazer as coisas pela metade 

deixa-me adormecer contigo e sonhar ao teu lado 

seres a minha toutinegra e eu ser o teu pintassilgo 

casar-me contigo para esta e quantos vidas tivermos.

 

Fazer uma grande festa de casamento com toda a aldeia 

dançarem contigo a menyasszonyi tánc (dança da noiva)

beber o último copinho de aguardente com os amigos 

e nessa noite serei teu, serás minhas, uma alma seremos.


La Campanella de Liszt

Parte dos "Grandes Études de Paganini”

 

O seu corpo na erva, no chão deitado

era a apanha antecipada da azeitona 

Florido um caloroso teclado de piano.

 

A sua alma nos trabalhos da vindima

era a cesta cheia das sílabas da boca

A carícia dos dedos nas cordas do violino.

 

Afirmava com a sua malícia: é agora ou nunca

vamos pecar agora que ninguém se importa 

Não há quem pense em nós, na nossa festa.

 

Ali próximo do monte no sopé do sonho em voo a planar 

da imaginação à sombra da parreira a crescer sem parar

Não falar não olhar não desdizer não apalpar nem se atrasar, 

 

Esse perfume indesmentível da falésia ou da vertigem 

a coragem e a voragem da loucura incontrolável a arder

Da subida vertical da ascensão ao céu pagão do prazer.  

 

Se os pactos com o demónio fossem todos assim 

e se o diabo em figura de gente fosse Paganini

dedos magros e compridos que mais ninguém tinha 

quantos de nós não seríamos devotos do diabo... 

 

Se não fôssemos moleiros ou aguadeiros do moinho 

(para quem não saiba Liszt em português é farinha 

o nome de Liszt seria Francisco Farinha)

quantos de nós não seríamos padeiros da padaria... 

 

A partir de 1830, Liszt (1811- 1886) vive em França e torna-se amigo 

de Frédéric Chopin (1810-1849) e de Niccolò Paganini (1872-1840)

músicos-compositores que influenciaram a sua música para piano.

Chopin-Nocturne No. 20 (in C Sharp Minor)

 

Chegava pé ante pé feito bailarino 

em silêncio da proximidade da vida

da planície ausente, da noite fechada.

 

Chegava com um ramo de rosas brancas

com uma caixa de fósforos para iluminar

um breve sorriso invisível e tímido na mão. 

 

Sabia que ela iria reconhecer o perfume 

da namorada natureza que vinha com ele 

que o rosto imaginado ficaria para depois.

A razão podia explicar a força desse lume.

 

Sentia que um dia a noite madrasta dos olhos 

se faria mãe com um coração doce e grande.

Deixa que entregue os olhos do meu coração 

Ó meu amado benfeitor fica comigo para sempre.


Chopin-Ballade No. 1 (in G Minor)

 

Se fosse seara seria uma espiga de milho 

Namorava às escondidas com o centeio 

E passava o tempo a fazer ciúmes ao trigo.

 

Na festa das bruxas, no baile das raparigas 

Espontânea adorava surpreender as formigas 

Com migas, grãos de café e bolachinhas. 

 

Vinha de dentro, era das irmãs a mais meiga 

Tinha mais amigas do que um concerto gratuito 

Mas também não se escondia de uma boa briga. 

 

Nunca se sente cansada, visitada pela fadiga

Está sempre disponível para o seu prometido 

E ainda hoje é nos seus braços que se abriga.


Chopin-Grande Valsa Brilhante Op.18 (in E flat major)

 

Foi quando aceitámos o perfume do vento

e a brisa nos protegeu com o seu véu

porque tecíamos as surpresas do tempo.

 

Porque pedaços da pele das tuas rendas

se prenderam ao coração das minhas silvas

cantamos o mosto do corpo, o altar do amor.

 

Como estamos de pé no piano, nota de roda-mão: 

Chamava-se Maria Wodzińska e tinha 17 anos

e era de uma beleza que convidava a escrever.

 

Foi a primeira paixão conhecida de Fryderyk

em segredo estiveram comprometidos 

mas o casamento acabou por ser cancelado.

 

Um século e meio depois numa outra capital

outra Maria também da Polónia tinha 18 anos 

e apesar da dedicação também não se casou.

 

Não andava nem se deitava sem o crucifixo 

com Jesus da Nazaré bem acomodado no vale  

que separava e juntava os rijos e belos peitos. 

 

Para ter reservado um lugarzinho assim.

Infiel inofensivo, quem me dera a mim

ter sido eu também injustamente crucificado.

e merecer por isso em terra alheia, o paraíso. 


Fantaisie-Impromptu, Op. 66 de Chopin

 

Seria pelo desleixo das roupas 

da maquilhagem pouco cuidada

como para disfarçar tanta alegria 

a felicidade desenhada no rosto

 

que afaga o peito 

que enobrece a alma 

que acicata o gosto 

e desperta sentimentos.

 

Por um instante o olhar parece ausente 

perdido algures entre memórias e desejos.

A mão meiga que toca no cravo vermelho

talvez por ser abril e passear por Lisboa.

 

Ali se perdeu com ela pelas suas ruas estreitas

com a melancolia tardia de algum sefardita

pelos labirintos miradouros e ruelas de Alfama 

pelas tabernas, travessas e becos da Mouraria. 

 

Nada levava a pensar que aquela linda moça 

estava ali para te ouvir te acompanhar e confirmar.

Pelo menos o piano não magoa os dedos como as guitarras.

E eu levei isso muito a sério: Frédéric Chopin


Chopin-Polonaise Heróica , Op. 53 (in A flat major)

 

Deixa o medo fechado em casa 

por detrás do roupeiro, no fundo 

da gaveta e perde a chave da porta. 

 

Escolhe a espada com coragem 

está na hora de se fazer à estrada.

Pátria nem que seja a última viagem. 

 

Não é tempo de discutir a cor da madeixa

feita à medida da mentira para enganar. 

O sexo dos anjos ou os cornos alçados 

do cabresto cabrão do criminoso czar.

 

Vive-se uma época em que o heroísmo

precisa de inspiração, de força e de vigor 

como disse a sua famosa amante e protectora.  

Se possam desfraldar bandeiras como esta. 

 

Budapeste, janeiro-abril 2025


segunda-feira, 7 de abril de 2025

Palavras avulso e a granel / 3


 

Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.

Fernando Pessoa (Ricardo Reis)


Para o livro "De mim ficam as Palavras"


Noli me tangere de Ticiano

 

Noli me tangere de Ticiano.

- Sem querer correr o risco da blasfémia

Não me toques que me desafinas 

desafinas o piano, o pianoforte

da minha tranquilidade 

e abstinência de séculos.


Mesmo não sendo tua intenção 

traz-me de volta até ao coração 

a vivência, a vida vivida sem morte

desses momentos maravilhosos (MM 

- Maria Madalena, Marilyn Monroe) 

que há muito eu quero esquecer.

 

E deixar dormir no subterrâneo da ilusão 

na gruta não iluminada da desilusão. 

O "Noli me tangere" de Ticiano

que vimos em Londres na National Gallery.


Noli me tangere de Correggio

 

Recordar Picasso (PP) sem pregar a abstinência 

ou não lhe tocar que queima, pelo contrário 

se inspirou no "Noli me tangere" de Correggio 

- quadro exposto no Museu do Prado em Madrid.  

 

A emocionante tela La vie, 1903 do período azul 

-  Retrata o seu grande amigo Carlos Casagemas 

que antes se tinha suicidado e deixou Pablo inconsolável.

A partida dos amigos deixa vazios com mágoas infinitas.


A vida e a morte, modelo e musa, amada mulher 

do princípio ao fim da nossa breve passagem pela terra. 

- PP não se pode queixar, foi dos que mais viveu (1881-1973)

Modigliani (36anos), Van Gogh (37 anos) e Klimt (56 anos).


Touch me now de Roxette

 

Touch me now, I close my eyes 

And dream away (Roxette)*

 

Se digo "Don’t touch me there" 

porque sem querer troquei de canção 

e seja em que língua for, não acredites 

devo ter bebido gin tónico a mais 

ou comido algo que me fez mal.

 

O que eu quero dizer é, Não pares!

Olha-me e entendes todo o meu mundo

que é teu desde o primeiro elevador

desde a primeira porta fechada atrás de nós.

Continua, continua até ser noite, até ser dia.


*It Must Have Been Love

do filme Pretty Woman (1990)


Serviços mínimos

 

Dizem que gostos não se discutem 

e que não há duas pessoas iguais 

- cada cabeça sua sentença.

Uns multiplicam o pão e há outros 

que preferem a multiplicação dos pobres 

- preferem perpetuar a pobreza.

 

Fazem precisamente o contrário 

das suas teorias e das suas ideias 

- das suas promessas redentoras.

Mudando de assunto imaginando 

estar perto de ti e pensando 

em que dizer para te surpreender 

abro o teu guarda-roupa e digo


- Diz-me o que vestes 

e eu digo-te o que mostras 

o que devias guardar para depois.

É tão bom observar indiscreto.

Prefiro-te nua ou quase nua

ou vestida de serviços mínimos

do que de design arejado e inovador.

Sabes bem que não há gostos iguais.


Pessoa respeitada

 

Se eu tivesse nascido em Budapeste 

teria sido canalizador ou contabilista.

Se tivesse nascido na cidade de Lisboa 

teria sido moço de recados e alfaiate.

 

Teria estudado numa escola industrial 

e com tempo aprendido uma profissão

emprego numa sociedade comercial 

subindo a pulso com espírito de missão.

 

Pessoa respeitada e útil à sociedade 

com trabalho e clientes satisfeitos

teria sido um conhecido costureiro 

a tesoura masculina, o fato da cidade.

 

Para a arte da confeção não se perder 

teria casado com uma colega modista 

ido de férias e a crédito comprado casa.

Seria um mundo a sério, uma vida a valer.


Quem nasceu pobre


Pode ser que por milagre tenha sorte 

mas quem é pobre, quem nasceu pobre 

dificilmente algum dia deixará de o ser.

 

Andar sempre com o credo na boca

seja pela doença ou da renda da casa

as prestações e os estudos das crianças 

da alimentação, do vestir ou desemprego.

 

No mundo de hoje como já foi antes 

o que conta é a demagogia e o verbo 

e são normalmente os ricos e abastados 

que falam, dizem representar os pobres.

 

A mim dói-me e é tão triste assistir calado

ver como os mais pobres se deixam levar.

De que falam estes iluminados? Pelo Duce?

Como Lénin? Outro qualquer demagogo?

 

Deixem-me parafrasear García Marquez 

- El día en que la mierda tenga algún valor 

los pobres nacerán sin culo. Assim, Gabo! 

Pudor em pó

 

Falava de pudor em pó como quem fala 

de sabonete líquido inventado à medida 

e feito para da cintura para baixo escorrer 

- devagar pois o dia ainda é uma criança.

 

Para lavar cuidadosamente as pernas 

a quatro mãos e a vinte e dois dedos 

que mesmo com a tração às quatro rodas

- a atração para ser verdadeira é a dois. 

 

Espalhava o pó de talco cor-de-rosa claro

pela saída do pescoço e entrada do peito 

e dizia: está um belo dia para passear 

- mais para amar do que para trabalhar. 

 

No bairro degradado não havia tanto luar

como quando à noite arranjada saía de casa

para melhorar as finanças tremidas da família 

- tanta boca para comer, tanta para calar.


Solidária e humana


Chegou cedo e a más horas

e encontrou a mulher 

na cama com um desconhecido 

- Querida o que é que se passa aqui?

- Querido não é o que parece. 

 

- Vi-o na rua tão triste e abandonado 

que o trouxe pela mão para casa

para lhe dar uma sopa 

consolar-lhe a alma e aconteceu.

 

- Se é assim como dizes fizeste bem.

Foste mais uma vez solidária e humana.

Continuem, eu volto mais tarde.

 

É tão bonito quando se é compreensivo. 

É tão bom viver nestes tempos modernos. 

Armário e arminho

 

As arrumações começaram pelos armários do corredor 

e continuaram pelas gavetas e guarda-roupas do quarto. 

Não sabiam que armário vinha da velha palavra arma.

Armário, cofre ou guarda-armas de quem as tinha.

 

Saíram do armário com estrondo e espanto dos outros 

- Ele gostava de homens e ela gostava de mulheres 

era assim há muito tempo, entre eles, mas em segredo.

Casados mais de vinte anos, continuaram bons amigos.

 

Da palavra armário ocorreu-me arminho

pele de arminho macia, fofa e mimosa 

e daquela loiraça muito gira e vistosa

que trocava a lama da floresta pela cama.

 

Veio a saber-se mais tarde que era agente da kgb 

andava sempre perdida pelos melhores hotéis 

e o seu destaque era o casaco pele de arminho.

que em tempos idos teria sido símbolo da pureza.

 

- Por baixo tinha uma bata acinzentada 

e não usava nem tapa montinhos 

nem calcinha stop, aqui tens de esperar

até eu dizer que está verde, podes avançar. 


Belcanto e ovo da serpente

 

Belcanto. As muitas teorias da conspiração que por aí abundam 

pelo seu letal veneno acabarão por matar, por assassinar.

Não sejamos ingénuos, não tentem compreender o absurdo 

não se deixem enganar pelo belcanto das serpentes.

 

Ovo de serpente com várias cabeças como um dragão 

hidra-anão símbolo do mal que cresce sem parar 

se não lhe cortarmos as cabeças uma a uma.

 

Não será trigo limpo farinha amparo, mas com coragem

vamos fazer das suas cabeças decepadas e queimadas 

das cinzas o melhor estrume das nossas terras agrícolas.

 

Não penses em te suicidar! Mata as serpentes dos belcantos!  

- Pode ver-se a olho nu em miniatura o réptil já concebido. 

É só uma questão de tempo e de ocasião. Há sempre. 

Do filme Ovo da serpente (1977) de Bergman.

 

Belcanto um restaurante ao lado da Ópera em Budapeste. 

Era muito caro, mas comia-se e cantava-se bem. 

Os empregados traziam cantando os pratos à mesa. 

Caso para dizer viva a cultura da voz e do estômago. 

 

2024 - 2025


quinta-feira, 3 de abril de 2025

Palavras do eléctrico ou o eléctrico das Palavras /3

 


Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta  

continuarei a escrever. Clarice Lispector 


Para o livro "De mim ficam as Palavras"

Hier encore - Charles Aznavour


Les yeux cherchant le ciel mais le cœur mis en terre

 

Meu bicho-da-seda, minha lagarta da amoreira 

que se faz a mais bela das borboletas 

e em ti representa a vida, o fim e o renascimento 

o feio feito feitiço da beleza ou precisamente o contrário.

 

Da vida ontem da vida sempre, vida nunca e vida eterna 

no baixo-relevo do teu copo abaixo e acima em tudo

na vertical, na horizontal e nas escadinhas do bairro 

ou no tapete voador, de paraquedas para-quedistas 

- Borlistas e carteiristas, vigaristas e feiticeiras...

 

Na autoestrada da chuva 

nas curvas e contracurvas do vento 

no cruzamento tardio da noite 

na acalmia da tempestade 

na estação para recomeço do novo dia

no apreço comovente na praça do nosso reencontro.

 

Nunca é tarde para tentar como se fosse a primeira vez 

Nunca é tarde para voltar a errar se é a mando do coração 

Nunca é tarde para voltar ao local onde tudo começou 

Nunca é tarde para chorar o passado e lamentar o futuro. 

 

Para deixar o coração em terra e apanhar o avião 

Levar consigo os olhos, o olhar do mundo nos teus olhos 

Cantar o passado e agradecer o futuro - a minha gratidão.  

La bohème - Charles Aznavour

 

Do princípio ao fim do mundo 

do século perdido, a algazarra  

não abrandava e o apara-lápis  

não parava de ser emprestado  

por vezes trocado por um beijo.

 

Cães e gatas já estavam habituados à confusão  

a alfazema e o alecrim não espantavam ninguém  

nem o alfarrabista da esquina que não vendia  

não se desfazia de nenhum dos seus melhores livros 

- que faria se não os tivesse à mão para os desfolhar.

 

Os bailes do bairro acabaram et les lilas sont morts  

os sindicatos perderam o pio e os trabalhadores amoucharam 

sentados no chão de pernas cruzadas à espera do milagre 

mas temos os jovens como ontem hoje também não se calam 

- é do futuro deles que escrevia e cantava o arménio Aznavour.

 

Em Montmartre de Paris do antigamente

eram pobres, ele passava fome e ela posava nua  

sentia-se em tudo a liberdade, decadência e liberdade  

que bem precioso é viver democracia num país livre  

sem perseguição - num país do decadente ocidente.


Cotovia ou confraria

 

"La chair des femmes se nourrit de caresses comme l'abeille de fleurs." 

Anatole France

 

Aquarela e a tinta dos seus olhos 

a doce conspiração das suas coxas

com a flanela nocturna dos seus braços 

e a água morna dos seus lábios 

quando os beijo para saciar a sede. 

 

Cortiço mel das flores da sua serra

com a cobiça do fascínio maior

da planície lunar do seu olhar 

com a cotovia ou confraria do amor 

para não me esquecer e te esperar. 

 

Cadeira onde tanta coisa boa ficou por fazer. 

Bagageira onde ainda hoje a quero guardar.


Os pecados

 

Com a cerveja à frente pausadamente dizia 

- Se é pecado se por comer pouco pão

me descuidar e beber mais que a conta

pior seria ter sido moço de cabeça no chão.

 

Se me distrair a olhar aquela ilha vistosa 

ao lado sentada e pensar noutros tempos 

e dar asas de avioneta à imaginação

é não temer a régua de castigo e educação. 

 

Se é pecado cuidar e regar essa rosa 

para lhe dar cor e não a deixar murchar

como é deixar-se envolver pelo seu aroma 

e com ela se perder e em silêncio florescer.

 

Dizia Pedro Homem de Mello e Amália 

tão bem cantava quando iam a Viana

- Os pecados têm vinte anos 

e os remorsos têm oitenta -

 

O pecado (i)mortal mora na guloseima 

e cresce no bom gosto e na certeza  

do bem que faz pelo melhor que sabe.

Pelas vidas vividas que nos traz de volta. 


Prefácio & Posfácio

 

Prefácio 

 

Na manhã desse dia lavei-me e vesti-me 

arranjei-me, tratei da pele com mais cuidado

valia a pena, sabia bem por que o fazia.

 

Talvez tenha deixado a pele sem nenhuma defesa   

mas sabia que a tua pele na minha a iria proteger. 

Sabia que não seriam os teus beijos ardentes 

os teus dedos e os lábios que a iriam maltratar. 

 

Na manhã desse dia saí de cedo de casa 

o coração estremecia e quase me saía do peito 

estava ansiosa, sentia muito impaciência. 

 

A única certeza que tenho é que vacilava de receio 

se seria um sorriso, um abraço, um beijo forçado.

Felizmente perto de ti sempre perdia o medo 

e vi abrir-se o céu, vivi a paixão do nosso amor. 

Prefácio & Posfácio

 

Posfácio

 

Desatentos não se deram conta 

que o seu tempo tinha passado

e se foi para não mais voltar. 

 

A última pele parece que secou 

e fez-se um deserto sem oásis

sem fonte nem alguma areia molhada. 

 

O coração, a lenha dos corações 

esse continuou a arder feito fogo

até se fazer cinza e depois vento.

 

Recordar a terra húmida da margem do rio.   

Mundo que já não é o nosso e depois nada.

Erotismo da classe operária

Para António Rosas

 

Esta noite a minha intenção é fazer um breve relance pelo erotismo 

e algumas liberdades da classe operária e dos seus representantes 

no Portugal da primavera marcelista antes do 25 de Abril libertador.

 

- Aquele é o padrinho, não é o afilhado famoso dos selfies 

que foi primeiro comentador referência da televisão 

e depois S.E. O Presidente da República Portuguesa…

 

Era o magusto e jeropiga de São Martinho na fábrica de fiação 

e houve quem se tenha acelerado mais do que devia

ultrapassou a barreira do pudor e alguma timidez recalcada.

 

Depois do almoço voltou-se ao trabalho, mas uma das operárias

no corredor menos iluminado fez-lhe uma espera inesperada 

- Não gostas? É tudo para ti! Bata no chão blusa aberta sem soutien. 

 

- Porque se acabava duas três vezes por semana pedia-me fio

eu fazia-lhe sinal para subir ao terceiro andar à sala dos rolos

onde nos enrolávamos ouvindo as máquinas a trabalhar. 

 

Era ali para os lados do Martim Moniz quando as fábricas 

ainda funcionavam em pleno centro da cidade 

- O prazer operário e não apenas ser explorado pelo patrão. 


Revendo Almada

 

Tenho andado de volta revendo Almada Negreiros

com o Manifesto Anti-Dantas, 1915, e a Taca de chá*.

Recordando: As Banhistas, 1925, A Sesta, 1939,

O Retrato de Fernando Pessoa, 1954 ou o meu favorito

Art Déco, Estudo para uma Decoração de Teatro,1929.

 

*”Pela manhã vinham os visinhos em bicos dos pés espreitar por entre os bambús,

e todos viram acocorada a gueisha abanando o morto com um leque de marfim.”

 

Preâmbulo: Se Almada visse a pose e a roupa colada ao corpo 

- Uma segunda pele da jovem mulher por baixo da gabardine - 

esta tarde na paragem do eléctrico... eu fiquei com a sensação

que teria escrito rápido e certeiro, dizendo em voz alta: 

 

Eléctricos do mundo libertem-se! Sejam uns fora de caixa 

saltem dos carris, não aceitem a escravidão fixa dos horários.

Parem, façam greve para que aprendam, chega de brincadeiras.

Com os condutores dos eléctricos não se brinca nem a brincar.

 

Assim tinha tempo podia observar mais uns minutos  

sem a ver desaparecer ou ter de se apressar, entrar a correr 

para a continuar a ter aquela visão mais algumas paragens. 

Não estava sozinho naquela observação de admiração.

 

Segundo preâmbulo: descobri Almada na minha adolescência.

O nosso primeiro encontro foi com o Manifesto Anti-Dantas 

declamado por Mário Viegas. Se fosse hoje, 110 anos depois

estou convencido que o título seria: Manifesto Anti-Ventura.

 

Ultimamente tenho jogado com a ideia-provocação de pensar

- Qual seria a sensata-opinião do wokismo sobre Almada?

Será que seria queimado na fogueira da inquisição wokista?  


Feita de plástico

 

As pestanas postiças, falsas eram mais compridas 

que a mais curta das pontes sueco-dinamarquesas

distante da tal Groenlândia que Trump quer anexar. 

 

Os lábios carnudos, espalhafato a mais de tão inchados

quase caiam da boca e deixavam os dentes à mostra. 

Os seios tão esticados que nem quatro mãos chegariam 

para os cobrir e esconder, para proteger do mau olhado 

que infelizmente do silicone já não havia nada a fazer.

 

Não teria mais de 20 anos e antes de se industrializar 

em exageros e afins deve ter sido uma miúda jeitosa

mas agora está feito um super armazém de plástico. 

Feita uma carroçaria que não precisa de bate-chapas

mecânico de amortecedores e assentos para fixar o dito.

 

Não há tempo para recriar a história sacana da palha seca 

se faz um bom colchão porque se tem de limpar a palha 

que tem no rabo, rabo de palha na ponta da navalha.

 

Primo californiano

 

O primo californiano veio à Hungria visitar a família. É uma jóia de pessoa 

e apesar de ali ter nascido há quase 70 anos e nunca aqui ter vivido 

sente-se húngaro e não esqueceu o idioma que aprendeu com os pais. 

Foi o primeiro, o idioma que se falava em casa, o inglês aprendeu na rua 

com as outras crianças e na escola, onde no início sentiu algumas dificuldades. 

 

O pai, Andor, órfão criado pelos tios, a convite de um famoso professor húngaro 

de quem era discípulo, em 1939 com 32 anos foi para os Estados Unidos. 

A mãe, Margit foi em 1950, depois de ter passado 5 anos num campo de refugiados

Na Áustria. Falava 8 idiomas e era a tradutora. Tinha vinda da Jugoslávia 

de uma região habitada sobretudo por húngaros e alemães, perto da fronteira 

da cidade universitária de Szeged, a Coimbra da Hungria, cidade onde nasceu. 

 

O pai era um abastado industrial têxtil, húngaro, mas com nome alemão.

Com o aproximar do fim da guerra, o avanço dos partisans de Tito 

e do Exército Vermelho, tiveram de fugir, deixando tudo para trás. 

O pai era há muito um entusiasta, grande colecionador de selos

selos que durante aqueles anos austríacos os ajudaram a sobreviver. 

 

Na América os húngaros casadoiros eram informados

quando chegava um barco da Europa com jovens húngaras. 

Foi assim que Margit e Andor se conheceram e se casaram 

namorando entre Pasadena, Los Angeles e S. Francisco.  

Após várias tentativas, nasceu Tibor e o médico disse

- Este bebé precisa da sua mãe, não tente nem mais uma vez.

 

Esteve cá este fim-de-semana e é sempre muito bom estar com ele.

Comove ver como se emociona a falar dos pais, das suas raízes húngaras. 

Está do outro lado do Atlântico e pensa como nós sobre o mundo 

sobre a América de hoje. Estivemos a ouvi-lo com atenção 

a aprender, por isso é primo californiano e não primo americano. 

 

Neste momento já está na Índia, vai até aos Himalaias. 

A última vez que passou por Budapeste

ofereci-lhe um cachecol do Sporting 

comprado quando do jogo com o Estoril (5-1). 

Com ele enviou uma fotografia do Kilimanjaro. 

Continuação de boa viagem Tibor!


2024 - 2025