2024 - 2025
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
Entre guerras, invasões e bombardeamentos
num mês de junho que merecia muito mais
o primeiro período de férias tinha acabado.
Era segundo as previsões, sem uma brisa
o começo da semana mais quente do ano
com as máximas muito acima dos trinta.
Apesar disso deixei o carro e a gravata em casa
fui de transportes públicos até ao escritório
e poder ler o semanário sobrevivente da oposição.
Esperei na paragem e entrei pela porta da frente
era uma senhora e como costume disse bom dia
sentei-me em frente lugar que dá uma boa visão.
Chamou-me a atenção a sua cuidadosa condução
e mais ainda as suas mãos esguias e elegantes
- As unhas pintadas da motorista do autocarro.
Se fosse noutros tempos não lhe teria apenas dito
obrigado
pela agradável viagem e profissionalismo que demonstrou.
- Teria perguntado se aceitava um café depois do trabalho.
Quem tem mãos de café bebido morno
sem açúcar à mesa depois do almoço
ou já frio por causa das palavras cruzadas.
Quem tem mãos de chá bem quente
bebido aos poucos com a vizinha
enquanto põem as novidades em dia.
Quem tem dedos de fio de crochê
e arte da malha cada vez mais na moda
pode esperar com a migração para o tricô.
Quem tem mãos de plantar rosas
de não se deixar picar pelos espinhos
nem desistir nos subúrbios do primeiro encontro.
Quem tem dedos de erva suave
de doce acariciar a cabeça do seu homem
não deixa a conversa das promessas a meio.
Quem tem mãos de água de lavar alface
em água corrente juntamente com os tomates
para o aperitivo da noite nos festejos da paixão.
Quem tem dedos de desabotoar a camisa
de não se ficar apenas pelas folhas verdes
e descer até ter a massaroca na mão.
Tem de se proteger na primavera e no verão
para não ter as mãos todas esgadanhadas
por tanto tempo de volta das ervas daninhas.
Na rua dela ninguém dizia como ela
como se falar com gosto e convicção
fosse a bandeira que pendurava à janela
Que deixava mostrar alguns seus segredos
enquanto afinava o refrão da nova canção
e decorava as palavras para os festejos
Tinha uma graça única ao encurtar a roupa
esticar e estender a mais íntima na cadeira
deixar para a imaginação a cor da sua coisa
Loisas e buracos de coelhos sentada no sofá
mais parecia estar deitada de perna aberta
jurava que as maçãs do peito sabiam a maracujá
Mostrava quase tudo sem mostrar quase nada
aos que passavam em frente do seu prédio
e olhavam para dentro da alcatifa autoestrada
Olhavam com esperança de ser agora ou nunca
ter a aplicação de usar primeiro e pagar depois
passar as férias da vida na via verde da cama.
Foi à farmácia do bairro pedir um gel
ou uma pomada para aliviar o ardor
que sentia no peixinho vermelho do seu mar
na recolha matinal das rendinhas finas da pesca.
Eu tenho um creme, uma boa pomada
para esse mal e que vai ajudar
para esse bem que é tão bom ter
disse-lhe segura de si a farmacêutica.
Essa perturbação costuma aparecer
quando a actividade é muita e persistente
quando se tem marido como deve ser
guarda-o, rematou com um sorriso brincalhão.
Vejam lá, o sortudo do meu marido
a ficar com a fama, os louros do meu falcão
pensou, morrendo já de saudades.
Cala-te boca, aguenta-te coração!
No assento traseiro do Mini Morris não havia lugar
e não funcionava a regra inclusiva do cheira bem
de haver sempre lugar para mais uma
se usasse rexina e curtinha mini-saia à maneira.
Ousadias que as avós de hoje sorriem ao lembrar.
Parece que ainda agora há por aí muita avó
para quem a porta afinada da rua não se fechou
e se pode convidar para dançar e adultos namorar.
Muito se dançava e apertava nas festas de garagem
e até se alinhavaram casamentos para a vida inteira.
Sentia-se a pressa de viver para antecipar o futuro.
Vai num pé e vem no outro que ela está à tua espera.
Com os pelos perfeitos bordados a preto e branco
com a calcinha prendada já sentada na calçada.
Ambas portuguesas ambas de qualidade superior.
Moderna mas clássica com um sotaque encantador.
De arte antiga daquela que deixa e fica na memória.
Das descobertas das coisas boas desse grande amor.
Se fosse cenoura seria como uma berinjela
de berbequim na mão de volta da donzela
seria beterraba ou pepino para salada
um quilo de berbigão afogado na panela
para condimentar a vida do soldado sentinela.
Dizia cosmopolita, amassado de tanto calor
- São couves ou nabiças de Lisboa
talvez grelos e grelinhos de Bruxelas
calções e blusas curtas de Varsóvia.
A ver o sol e levar com a chuva em cima.
Na Hungria quando faz sol e chove ao mesmo tempo
diz-se que o diabo está a dar porrada na mulher.
Não, a nenhuma, nem mesmo a mulher do diabo!
Diabo sê por uma vez um bom gajo
aproveita para tomares banho com a chuva
e a boleia do sol para secares depressa.
Corre para a cozinha e faz tu o almoço.
Vais ver como vais gostar e tem tempo
para a melhor sobremesa da tua cara-metade.
Pode parecer um pensamento mal semeado
mas que acalma a alma e distrai os remorsos
que estou a gozar com a má sorte dos outros
com falta de empatia com a pobreza dos pobres.
Esse inferno diário de estar na rua a pedir.
Eu gostaria de sublinhar e deixar escrito
que até para se ser pedinte tem de se ter
algum estilo no andar, alguma classe na voz
ter algum abandono nas roupas das mãos
e um apagão permanente nos olhos do destino.
Se tossimos à bruta sobre o toucinho
devemos pôr a mão da bruxa à frente
escovar a caspa do cabelo com um pente
e cobrir o chão da sala com rosmaninho.
Ofertar, mas evitar tocar a mão de um pedinte.
Uma das formas asseadas de nos desviarmos
é virarmos a cara e saltarmos por cima da miséria
é desconversarmos usando vulgares metáforas
ou verdades redondas, é o estado que tem resolver
a sociedade e não o indivíduo ao dar esmolas.
Nem os pobres nem a pobreza vão acabar.
Dizia há cinquenta anos a minha mãe
- Filho sempre houve ricos e pobres
e sempre haverá, nunca vai mudar.
A minha velhota tinha razão!
O dia acordou farrusco nos seus olhos
anunciava tempestade ou muita chuva.
A noite deitou-se em luz e solidão
adivinhava o adeus final da madrugada?
Monótono o tempo passava vagaroso
lá em casa já todos tinham partido.
De manhã não havia quem fosse preciso
despertar para não se atrasar no trabalho.
A vida tinha-se tornado quase vazia
não tinha de esperar ninguém à porta
ou o tocar do telefone sobre a mesinha
a avisar do atraso e da hora da chegada.
Resignada e em paz pedia a Deus
que quando, fosse rápido e sem demoras
não deixasse más recordações aos seus
e se lembrassem das tantas horas boas.
Pai vem por mim antes que a doença
faça de mim quem eu não sou!
- Filha, irmã, esposa e mãe de 4 crianças. Viveu 48 anos.
Agora que os familiares e tantos amigos
Em triste silêncio e emoção mal contida
Com as condolências de uma rosa branca
A depuseram nas jarras e no tapete da igreja
Junto à sua fotografia repleta de vida
- Tão bem, tão feliz e juvenil que ela estava!
- Agora que tanta gente, tantos amigos
Se juntaram no templo da minha vida
Para se lembrarem e me despedirem
Na casa de Deus que devota frequentei
Como se fosse a minha segunda casa
Onde me preparei para a vida e para a morte.
Deixem-me que seja eu a organizar pela última vez
Recordando os versos tão bem declamados:
- Não me procurem que eu não estou aí
Não chorem por mim que eu não morri.
- Ali está o mar e aqui está o meu barco
Que me há-de navegar ao reino de Deus.
Última mensagem de mãe em sofrimento profundo:
- Quero terminar dizendo do fundo do coração
Que eu seja a última mãe a sepultar a sua filha
Que mais nenhuma mãe ou pai tenha de passar
Pelo que a nossa família passou nos últimos meses.
Bom Deus cuida e toma conta da nossa Bea.
Gioconda Belli: "Nunca pensé que Daniel Ortega
sería un peor tirano que Somoza"
Não basta ser aos vinte anos revolucionário
e aos quarenta ou sessenta ser o contrário.
Não passa de um anticomunismo primário
dirão os comunistas, és um reles reacionário.
Nós vamos caminhar com Marx e o leninismo
não vamos perder nem um minuto contigo
apenas esfregar-te na tromba a bandeira da vitória
e pôr-te no teu lugar, no caixote do lixo da história.
É assim que oferecem de borla e cantando
a alma militante aos novos camaradas Stalin
sejam eles Ortega, Maduro, Xi, Kim Jong ou Putin.
A putina que os pariu, estou-me borrifando.
O quanto eu solidário e à distância
vivi a revolução sandinista!
Nicarágua
(Daqui das margens do Tejo)
Daqui das margens do Tejo
com as ondas-curtas da esperança
vislumbro em segredo Esteli
povoação guerrilheira cercada
pelas forças leais ao governo
muitos seios de linho
muitos sexos de ferro a arder.
À distância tudo indica
ser possível que o massacre
da razão seja sinónimo de futuro.
Quando Esteli cair
as formigas da sublevação
serão sepultadas colectivamente
provavelmente numa mina abandonada.
Agora até o disfarce da morte
vem todas as tardes jogar futebol
brincar às escondidas nas ruas
com as crianças pobres do bairro.
Os sinos da igreja do Bispo de Manágua
dos padres filhos do povo sabemos
nunca mais ficarão em silêncio.
Escrito em outubro de 1978
Talleres de poesía da Nicarágua
1. Tenho um livro Antologia – Talleres de Poesía
documento essencial de uma experiência única
a poesia cultivada em oficinas organizadas
para jovens gente simples poetas populares.
Sobre esta aventura escreveu-se:
“por primera vez se han socializado
los medios de producción poética.”
Poeticamente assim até soa muito bem.
É menos prejudicial e mais difícil que a dita
a colectivização dos meios de produção.
A Nicarágua a Revolução Sandinista
fez parte do meu itinerário romântico-
-libertário de um mundo melhor para todos.
Doce ilusão. Sei muito bem. Pura ilusão.
2. No “Ciclo das Palavras” com 82 textos
vários foram dedicados à Nicarágua
ao Comandante Zero Eden Pastora
à Comandante Dois Dora María Téllez
ao poeta e sacerdote católico Ernesto Cardenal
à cidade de Esteli e a outros momentos
dos avanços e recuos no cerco libertário a Somoza.
Os três há muito que optaram pela dissidência activa
por coerência e em ruptura com o sandinismo oficial...
Um excerto. Escrito em outubro - novembro de 2007
Eu mudei muito desde 1978-1979, mas o camarada
Daniel Ortega com a sua tirania mudou muito mais.
Sinto um nojo profundo por este tirano, por
este ditador.
2024- 2025
Dá-me tempo, mais umas semanas
de paciência para sem pressas
de manhã à noite poder-te mostrar
e com o meu olhar fazer-te acreditar
que tenho este mundo e o outro
para te receber e nos abrigar do vento.
Mundo que inventei entre pão e migalhas
entre beijos nossos e muitas palavras.
Permite-me que traga para a mesa
as melhores lembranças do futuro
enquanto levemente te acaricio o rosto
e tu me seduzes com o teu perfume de rosa.
"Deixa-me ser um poema
serei casa e palácio, água e pão
serei o mistério de vida
que se deleita na tua mão."
Se me deixares pegar-te pelo braço
serei vinha e pomar de laranjeiras
serei horta e plantação de oliveiras.
Farei do regresso um eterno abraço.
Ao desfolhar as notas e apontamentos
que tinha guardado para o presente incerto
encontrou um excerto que lhe fez lembrar
outros dias menos distantes, mais afirmativos.
"Foi em travessa
de porcelana portuguesa
que ao seu homem toda nua
se ofereceu no tampo da mesa."
Sim, na conversa desenvolta e fluída
lábia era coisa que não lhe faltava
e quando em condimentado aconchego
tinha sempre troco no bolso do mamilo.
Ninguém lhe passava a mão pelas costas de graça
quando jeitosa e segura de si afirmava com graça
- Bebo leite magro porque tenho o sangue gordo
dizia com um sorriso bonito, um sorriso maroto.
Não te esqueças de mim
quando a distância for muita
e a esperança for pouca
do amor se cultivar no jardim.
Não te esqueças de mim
quando os dias são noites escuras
e as manhãs já não tropeçam em nós
nas madrugadas sem te chamar jasmim.
"Não te esqueças de mim
quando no copo do teu vinho tinto
vires desenhar um outro sorriso.
Teu labirinto, teu absinto."
Lembra-te de mim, nunca te esqueças
mesmo de improviso, mesmo só por instinto
o teu melhor vinho são das uvas do meu corpo.
Para ti a areia fina do meu sorriso não tem fim.
Nessa época havia uma canção
que mal se ouvia na rádio
talvez por excesso de erotismo
numa terra de costas para o mundo.
Talvez por sermos muito pudicos
num país desde sempre adiado
ou os brandos costumes elogiados
de um pequeno povo tão resignado.
A letra dizia “Tu que fazes
do meu coração a tua morada
dos meus seios o teu passeio
dos meus olhos o teu jardim
Que fazes da minha boca teu pão
da minha água teu vinho,
do meu prazer uma canção.”
Parece que comprometia a alma da nação.
Foi quase excomungada
por uma padralhada que só via pecado
onde o amor era cantado
onde quase nua a paixão se sentia
e o prazer dos amantes se mostrava.
Não era preciso ser muito perspicaz
para ver que aquela amizade
era do melhor que havia por ali.
As surpresas ainda vinham a caminho
e já os adjectivos se iam esgotando
com a sua pertinência e encantamento.
Escrevia em verso e com rimas gostosas
que ficavam, não passavam despercebidas.
Experiente sabia destacar-se como poucas.
“Madura, dizem de ti
como se estar madura
não fosse sinónimo de doçura.”
Apetecia saltar as regras da discrição
apetecia comentar e perguntar-lhe a sorrir
qual era a parte mais doce da sua fruta.
Perguntar com quem estava a sonhar
e imaginar a resposta mais adocicada
- A sonhar como seria viver contigo.
Dá-me um minuto de atenção
mesmo que esse minuto se faça horas e dias
tu já tenhas há muito desligado o telefone
e eu continue a falar sem parar nem respirar.
Há muito tempo que te queria dizer
que esta nossa linda aventura
tão pouco comum, tão fora de caixa
não pode acabar só assim
sem um último encontro, uma despedida.
Sei muito bem, não preciso que repitas
que tudo tem um princípio e um fim
como há tempos que a ribeira vai cheia
e outros que está seca sem pinga de água.
Não é por isso que o pintassilgo deixa de
cantar.
Quero que saibas de uma vez por todas
faminta e despida de qualquer tola autoestima
"sem ti não há sol que me aqueça
nem pão que me apeteça".
"Se queres Amor que te esqueça
devolve-me o amor que te dei.
Eu só te posso esquecer
se esquecer que te amei."
Anda vem para a roda dançar
manda a tristeza para bem longe
sente o rodopio ali à volta da fonte
e não te importes se não sou o teu par.
Sente de perto os odores fortes da festa
os calores que colam a pele ao vestido
os alertas tímidos do coração adormecido
adeus velha paixão e depois começa outra.
Não te esqueças que a vida é um sopro
e quando damos por ela já está de saída
não desperdices os momentos de alegria
e faz do novo romance a tua nova fantasia.
Leitor que nunca me vais ler
sabes é em ti que estou a pensar
é para ti que estou a escrever.
Escrevo sabendo quão ingrato
é o papel do autoproclamado
escritor anónimo e desconhecido.
Como já antes escrevi não é por não ser lido
nem saberem de mim que vou desertar
as palavras com que me levanto e caminho.
Hoje com um jovial e acrescido optimismo
gostaria de afirmar que não conheço
ninguém que seja feliz sozinho.
Não estou a dizer que não há pessoas
que estão sozinhas e são felizes
mas eu não conheci nem as conheço.
Procura em cada dia a felicidade
o carinho que faz bem e faz viver
a ternura que não tem tempo nem idade.
Procura o amor verdadeiro
aquele que quanto mais se dá
mais há para dar no armazém do coração.
A amizade que como uma boa cola,
cola tudo o que há de melhor entre nós
cola os sentimentos com a alegria da festa.
Sim é-se muito mais feliz
se a felicidade for partilhada e se multiplicar.
Vale a pena manter abertas as portas da vida.
"Já fui alameda
praça, largo, avenida.
Já fui caminho, vereda
e hoje se sou beco sem saída
em mim tenho ainda abertas
todas as portas para a vida"
Quem foi que inventou
que a paixão faz crescer asas
e se verdade ensina a voar e sonhar?
Quem foi que escreveu
que grata a resiliência das almas
alimenta a perfeição das palavras?
Quem foi que espalhou ao vento
que o amor quando chega
fica em nós até ao nosso último dia?
"Meu amor como te dizer
que as saudades de ti
faz-me pouco a pouco morrer."
São excertos e migalhas
de um passado que se foi
que saiu de casa de mochila às costas
que partiu para não mais voltar.
Excertos e Migalhas (2025)
Para o livro “De mim ficam as Palavras”
Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.
Fernando Pessoa (Ricardo Reis)
2024 - 2025
Que queres de um campo de urtigas?
Searas de trigo, vinhas e cachos de uvas?
Pão e vinho? Em que mundo vives?
Quando amanhã de vez nos faltar a água
mata a sede com as ervas secas do velho rio.
Os mais clássicos lavam as meias à mão
os outros mais modernos lavam-nas ao pé.
Os mais agressivos preferem a pontapé
eu fico com elas calçadas como inspiração.
Aprendi recentemente um conceito novo
sobre a corrupção vertical e horizontal.
Sentada e nua jurava por toda a sua roupa
ser apenas transparente como a arte erótica.
Se nas montanhas não apanhastes chuva
desce até ao vale e colhe malmequeres
junta os pedaços de sol com carinho
e da planície do coração oferece o raminho
a quem ansiosa te espera apaixonada.
Os outros não sabiam e eles não queriam
que se soubesse e fosse motivo de conversa
que antes do primeiro encontro já se conheciam
como se tivessem dez verões de namoro.
Como se vivessem juntos há muito anos.
Persistente a paixão abriu todas as portas
e foi devidamente documentada e comprovada.
A doçura das suas palavras avulso e amargas
foi detalhadamente divulgada e promovida.
A festa que anunciava foi apresentada
comunicada pelos olhos lindos da remetente
apreciada e valorizada pelo seu destinatário.
Foi como sempre precisa e criativa e inventiva
como um espelho que à luz reflecte e ilumina.
Simplíssimo tributo a Jorge Mario Bergoglio
mais conhecido por Francisco, Papa do povo.
"O tu o nadie" escreveu Jorge a Amalia
quando tinha apenas 12 anos e acrescentou
"Si no me caso con vos, me hago cura".
Foi certamente um puro sentimento
uma linda história de amor de criança
uma paixão precoce e antes do tempo.
De um menino que tinha olhos para ver
e coração aberto para sentir e imaginar.
Um lindo amor que não se concretizou
Infantil, não se fez adolescente ou adulto.
Em contrapartida para nem tudo se perder
sessenta e tal anos depois tivemos um “porteño"
morador do humilde bairro das Flores
e desde sempre fervoroso do seu San Lorenzo.
Argentino, o primeiro papa latino-americano
da história milenar da sagrada igreja católica.
Tivemos e pudemos admirar, aplaudir e gostar
mesmo os não crentes e ateistas como eu.
Obrigado Francisco, Papa vindo do "fim do mundo".
Desfiladeiro desfolhado da garganta profunda
Desfile descartável de vaidade saloia e antiquada
Para dizer que gajo importante me coube ser
Ter vindo ao mundo para ser gente e convencer.
Podia continuar com prosa que ninguém vai ler
Lembrar que vim até aqui de burro a motor japonês
Que me mandei pintar do avesso para me refazer
Com as paredes de um sol de abril talvez português.
Dizer que é em Bled com esta paisagem maravilhosa
Mais de postal ilustrado do que invenção da alma
Que os pensamentos sobre o mundo me veem à cabeça
Me perturbam, mas não me tiram da vida aqui tão cerca.
Apesar de morar há muito num dos países vizinhos,
ontem foi a primeira que o encontrei e apreciei
caminhei pela obra-prima do senhor escultor Radovna
rio que com o seu metódico trabalho de anos e anos
esculpiu magistral o desfiladeiro Vintgar e lhe deu fama.
Comecei a escrever este apontamento
algures no trilho da Cascata Mostnica
e o rio de montanha com o mesmo nome
onde o elefante que se perdeu veio matar a sede
no caudal das águas que alimentam o Lago Bohinj.
Uma deliciosa queda de água quase anónima
logo no início e no final de uma difícil subida.
Chama-se ponte do diabo porque para um precipício
com aquela altura e perigo não havia mais ninguém
com tomates para a construir que não fosse o diabo.
Matreiro e velhaco impôs uma condição
a alma do primeiro a atravessar a ponte
seria sua propriedade para a eternidade.
O bispo da terra decidiu contornar o assunto.
O sacrificado foi um cão enganado por um osso.
Se fosse agora seria o bonito caía a ponte e a
Trindade
os amigos dos animais não deixariam a coisa pela lenda.
Para amenizar o conflito fala do que vistes
- As pedras não crescem nas árvores
mas as árvores crescem nas pedras.
No caminho de Savica é proibido pescar
desaconselhável desejar peixe frito
fotografar e partilhar avisos de zona
- Pela gargalhada aqui há gato
porque nesta terra escreve-se cona.
Não me levam a mal, mas por vezes é bom recordar
- Em Mostnica e Savica o eco barulhento das águas
fazia-me lembrar o mar da Nazaré a labregar.
Olhar o passo para não tropeçar e cair
parar para ver e apreciar tanta beleza
que à nossa volta se oferecia gratuita.
Caminhar de mochila tem mais encanto
quando se caminha por sítios de deslumbrar.
Depois de ontem posso dizer com um sorriso
que já não morro sem ter bebido água do rio.
Andamos em trilhos entre os Alpes Julianos
o ponto mais elevado com quase três mil metros.
Caminhadas com partidas e chegadas a Bovec.
Ali o passo mais alto é a ligação
entre os vales dos rios Sava e Soča.
Passo ou colo que bonita expressão.
Coloca as tuas mãos quentes em mim
e eu colo os meus lábios húmidos nos teus.
Sítio dos amantes dos desportos radicais
sítio de aventuras fluviais e amantes actuais.
Imaginar que aqui neste local tão pacífico
pela sobrevivência com armas e granadas
que há 100 anos se matavam uns aos outros.
Hoje há ecossistemas para tudo
pessoas e animais, cartões e caixas automáticas
plantas e oceanos, serras e alguns desertos.
Antes terá sido um bairro com autocarro
casas pré-fabricadas da idade pré-moderna
agora somos em terra uns ecopontos perfeitos.
Ecossistemas em que o eco da mãe ou madrasta
a natureza está em baixo, perigosamente em baixo
mas o ego individual nunca esteve tão em cima.
Temos também ecossistemas de ciência e inovação
da vinha e do vinho, ecossistema religioso e
financeiro.
O ecossistema de primeiro foi o ovo ou a galinha.
Ecossistemas das palavras roubadas ou mal-usadas.
Salvo raras excepções somos uns autênticos
papagaios.
Por ser míope uso óculos e para ouvir
aparelhos nos dois ouvidos, sem eles
estaria na cave o tempo quase todo.
Tomo também vitaminas para continuar
a magicar e a pensar pela minha cabeça
as vitaminas da vida e do mundo à volta.
Como gosto de reflectir para ter opinião
não posso estagnar, tenho de evoluir
e no verbo com alguns estrangeirismos.
Entre as things de que eu mais gosto
é quando nos meetings em que participo
cada segunda palavra ser importada
tem classe e sobretudo tem conteúdo.
Das minhas aquisições mais recentes
e para o futuro shortlist do meu texto
no workshop destacaria em power point
a importância do Mainstream & Main Street.
Europeu e americano, ocidental e liberal.
A corrente do pensamento dominante
enfiada à martelada nas lojas da rua principal.
Discutida ao detalhe no último brainstorming.
A tasca é a alma da aldeia disse o outro
um espantalho das paprikas e beringelas
e que por graça do pai Viktor é ministro.
A ideia é pôr o povo de volta do bota-abaixo
distribuir uns tostões para adiar as ressacas
e prolongar a cirrose e a vida das tabernas.
Feita a crítica política ao novo programa
de arrebanhar votos com aguardente
e continuar mais uns anos no poleiro.
Vamos lá mudar de diapasão e de tema
contra dogmas não há milagre ou mensageiro
e cada povo tem o governo que merece.
Serviço ao cliente não é à mesa é ao balcão
o dinheiro é de plástico e sotaque estrangeiro
o mata-bicho e um cigarro em cada mão.
A pensar no criminoso-camarada Vasily Blokhin*
Inimigo do povo, tiro na nuca
Inimigo do partido, tiro na nuca
Inimigo da revolução, tiro na nuca
Inimigo da classe operária, tiro na nuca
Inimigo da pátria soviética, tiro na nuca
Inimigo do homem novo, tiro na nuca
Inimigo do marxismo-leninismo, tiro na nuca
Inimigo da amizade entre os povos, tiro na nuca
Inimigo da Internacional comunista, tiro na nuca
Inimigo da limpeza étnica, tiro na nuca
Inimigo da degola dos kulaks, tiro na nuca
Inimigo da verdade sobre Katyn, tiro na nuca
Inimigo da liquidação dos inimigos, tiro na nuca
Espalha mentiras sobre Holodomor, tiro na nuca
É judeu ao serviço do imperialismo, tiro na nuca
Quer abrir os olhos aos idiotas úteis, tiro na nuca
Ciumento das vodka-orgias de Béria, tiro na nuca
Desertor-traidor de Stálin Pai dos povos, tiro na nuca.
*Esta é a terceira versão de texto que escrevo sobre o camarada Blokhin (1895-1955) um dos melhores exemplos do que foi ser comunista e agente da polícia política na URSS. Um criminoso brutal, metódico e implacável. O melhor exemplo do homem novo comunista.
Vasily Blokhin executou dezenas de milhares de prisioneiros pelas suas próprias
mãos, incluindo cerca de 7.000 prisioneiros polacos durante o
Massacre de Katyn, na primavera de 1940, o que faz dele o pior carrasco de que
há registo na história mundial.
Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta
continuarei a escrever. Clarice Lispector
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
Era ali que os caminhos subiam
e até ao cimo os levavam.
Era ali que livres pela encosta
rebolavam e se abraçavam.
Se envolviam, se disfarçavam e se escondiam
se comemoravam, se despiam e se amavam
e sem remissão se ofereciam um ao outro
certos do segredo da sua festa mais íntima.
Que ninguém sabia deles nem a poesia
para os escrever e imortalizar a sua história.
Enxaguavam-se no riacho da ladeira
onde as plantas formavam uma cadeira
o declive para uma última promessa
um último abraço, um beijo avassalador.
Encosta-te às suas costas, ao seu peito
à sua alma, à sua paixão infinita por ti
à aventura e ao milagre do vosso amor.
Encosta-te e nunca te afastes do amor.
Poderei estar enganado e se for o caso
penitencio-me, mas para mim poesia
é também remexer memórias do passado.
Voltar a ler cartas antigas, alguns excertos
de quando ainda havia tempo e havia alma
para escrever, redigir cartas com memória.
Sei que há muitos anos (agosto de 1983)
escrevi "Comecei - que sentido a poesia sem ti?
A secar o mar para encurtar a distancia".
Poder agora perder-me sozinho ou acompanhado
por alguma das praias de Portugal, caminhar
na areia húmida, molhar os pés para despertar.
Passear em praias que conheço bem
caso da Nazaré, Peniche ou Baleal
ou mal como a Ericeira e Carcavelos.
Sabes, foi sempre a minha sincera convicção
que quando tu passasses a ser a minha manhã
o meio-dia e a tarde, a noite e a madrugada.
Em que fosses o sol e a lua da minha vida
de pronto te irias cansar e fartar de mim.
Diz-me, enganei-me? Não é assim?
Olha bem, porque é o meu sangue que grita
- Não foste o primeiro, mas és o último.
Tu és quem eu sempre imaginei para mim.
Sente-se de novo a chegada da alba
do amanhecer sempre apressado
do tempo mais curto que o desejado
na roupa branca da cama amarrotada
e a camisa de dormir no chão esquecida.
A cantiga de entrega da minha prometida
da paixão a arder pela exaltação tardia
contra latitudes e geografias diferentes
dos amantes abraçados pela telepatia
dita ao telefone e com a televisão ligada.
Para os velhotes não ouvirem os gemidos
não virem ao alpendre e ficarem a saber
que o amor não é feito apenas de sorrisos
que não tem idade nem prazo de validade.
Rosa encantada feita invenção do prazer.
Após o ter encontrado e ter sido envolvida
por um sentimento desconhecido de fascinação
pelo deslumbramento da sua sabedoria infinita
de se sentir na voragem da sua vasta cultura
que sem parar fazia multiplicar a sua paixão.
Pouco depois desse decisivo momento
seguidora e discípula aceitou o desafio
passou a ver a realidade com outros olhos
com a sua ajuda e os seus bons conselhos
com as suas opiniões e críticas certeiras.
Nunca aprendeu tanto com uma pessoa
foi a descoberta de um mundo novo
de um imenso e alargado universo
para guardar dentro das gavetas da alma
e organizar a enciclopédia de um novo planeta.
Ninguém se pode despir da sua pele
não há quem mude apenas por mudar
tem de vir de dentro, do fundo da gente
e em sobressalto a tentação despertar.
Foram anos a se mostrar e se destacar
anos de encantamento e de exaltação
com tantos candidatos em lista de espera
a quererem arrebatar para si o seu coração.
Quando finalmente encontrou o trilho
percorreram de mãos dadas as dunas
e na praia se pode espreguiçar e deitar
adormeceu e ligou o piloto automático.
Sabe como poucos da poda da narrativa
escolher a melhor agulha, linha e o nó a dar
selecionar as respostas e não se sentir cativa.
Deixar-se ficar para trás e amanhã não voltar.
Ao longo das margens baixas do rio
sedimentava-se sedosa a sedução.
Às folhas no chão ninguém fazia caso
e ao subsolo ninguém prestava atenção.
Mas há por ali alguém que não dorme
e que não nega a esmola nem o pão.
Alguém que sabe da lua vinda do norte
e sonha com ela porque tem coração.
Alguém disposto a andar a monte
ou de barco para pescar o seu sorriso.
Não deixar Eros na erosão da quietude
ou a negação do bem-estar no paraíso.
Como dizia asssertivo, bom sexo
pode-se fazer a três, ménage à trois
mas verdadeiro o amor é como o tango
o Amor, faz-se e dança-se a dois.
A pergunta séria feita a sorrir seria
o que são cinco meses e dois dias
na longa vida de duas pessoas?
Com o que desde ontem sei hoje
estou convencido que nem a brincar
pronta a resposta não se faria esperar.
- Menos de meio ano, mas por mim podia ser
o tempo desta vida e da outra se houver
e para não ter de recorrer à tabuada
o tempo exacto para os olhos se olharem
o tempo certo para as bocas se cruzarem.
- Recordar os bons tempos passados juntos
não lamentar os que gastamos ao engano
esquecer os momentos dos dias mais cinzentos
sem a cor do sonho, com as palavras sem rumo
e a promessa de que estarei sempre contigo.
Sentou-se ao meu lado e nem me viu
eu vi-a pelo desafio do seu perfume
baunilha que nunca tinha cheirado antes.
Um perfume que convidava a comer
como se fosse uma bolacha baunilha
ou arroz-doce polvilhado com canela.
Loura nela havia algo de aristocracia distante
e pela grande diferença dos troncos entre nós
devia ser alta - comigo também não é difícil.
Pelo canto do olho via-lhe um traço renascentista
de alguém que não está habituado o dia inteiro
a virar frangos ou pensar nas últimas compras
do fim-de-semana e a comida que vai cozinhar.
Quando se levantou para descer pude ver
como era alta vestida de calças quentes
porque apesar de abril lá fora fazia frio.
Casaco curto peludo cor de doce creme
sem açúcar queimado para acompanhar.
Era a fome escondida da sobremesa
a vontade de não comer para não engordar.
Pode parecer conversa de jumento
mas ao contrário do que se pensa
hoje ainda é mais difícil do que antes
o despontar social e subir os degraus
do escadote na hierarquia da sociedade.
Quem nasce em baixo se não tiver
uma pitada de sal a salgar a sorte
ou talento especial, jogador de futebol
carreirista da juventude partidária
algo que lhe sirva de elevador social.
A vida é mais dura e mais velhaca
e é muito difícil escapar ao destino
porque faça o que fizer o normal
é ficar na cave ou no rés do chão
- habituar-se até ir desta para melhor.
Puta da igualdade de oportunidades!
Perdoa-me se eu sem querer
exagerar ao gritar a dor e gemer
mas é pelo amor por ti que o faço.
Por ti que tenho no coração
e pela criação do mundo novo.
O Filho de Deus colado ao peito.
A história escrita em argila
do tempo dos bisavós e trisavós
mais ano ou menos ano antigo
e me quero armar ao pingarelho.
Soube que a Epopeia de Gilgamesh
foi encontrado em escavações
feitas em Nínive hoje vestida de Mossul
no injustamente infeliz Iraque.
Como estou com pressa para acabar
li que a narrativa de génesis no Antigo Testamento
não ser mais do que uma cópia bem escrita
do mito muito antes escrito da criação babilónica.
A cópia em segunda mão é sempre pior
do que o original, tal homem tal deus
tal humanidade e tal divindade repleta
de fúrias e ódios, de traumas e castigos.
Mais a gratidão ao paladar da refeição
repasto de domingo para os deuses
que não cansam de mal dizer e mal fazer
ou não fossem eles criações dos homens.
2024-2025
Porque a música penetra mais fundo na alma. Platão
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
"Ama, ama enquanto puderes"
enquanto a amada te esperar
enquanto a paixão continuar
e o vosso amanhecer desejares.
Ama, ama enquanto fores vivo
enquanto te sentires renascer
quando o seu olhar te sorrir
e convidar para a rua do prazer.
Ama, ama enquanto souberes
que o seu coração bate em ti
que este Amor não morre por si
por ela estás pronto a tudo deixares.
Ama, ama até ao último sopro
sempre o vosso primeiro momento
e recorda que um minuto com ela
é mais do que uma vida com outra.
Ó Meu Amor, aconteça o que acontecer
por muitas mágoas que sintas e tenhas
mágoas por mil razões sedimentadas
barco afundado carregado de pedras.
Para a despedida, para a tua partida
que fria e impiedosa a vida justifica
peço-te, nunca me deixes abandonada
sozinha e perdida à beira da estrada.
Perdida, triste e por dentro escurecida
entre uma terra nova e outra desconhecida
a meio caminho entre a dor, o amor e o nada
sem saber o rumo nem tão pouco o futuro.
E é tão bom quando fazemos as pazes
quando as fúrias, as guerras e os ciúmes
dão lugar à paz e corremos para o reencontro.
E nos despimos para nos vestirmos um do outro
adormecemos lado a lado cansados e felizes
- A descansar em cinzas ao gosto do Bom Deus.
Ó Meu Amor, nunca te vou esquecer
- Os teus olhos são a noite no mar
- São o mar na noite, no dia da noite.
Devagar devagarinho com a transparência dissimulada
como quem não quer a coisa e com a finesse
que só uma dama, uma
mulher tem e sabe usar
se o assunto lhe interessa e pensa valer a pena.
Foi-o envolvendo e seduzindo (ele pensava o contrário).
Um dia depuseram as armas e tiraram as teimas
desarmados e abraçados multiplicaram o pão e o beijo
juntaram-se e não podia ter sido refügio mais valioso.
Na flor da vida e para não fazer as coisas pela metade
deixa-me adormecer contigo e sonhar ao teu lado
seres a minha toutinegra e eu ser o teu pintassilgo
casar-me contigo para esta e quantos vidas tivermos.
Fazer uma grande festa de casamento com toda a aldeia
dançarem contigo a menyasszonyi tánc (dança da noiva)
beber o último copinho de aguardente com os amigos
e nessa noite serei teu, serás minhas, uma alma seremos.
Parte dos "Grandes Études de Paganini”
O seu corpo na erva, no chão deitado
era a apanha antecipada da azeitona
Florido um caloroso teclado de piano.
A sua alma nos trabalhos da vindima
era a cesta cheia das sílabas da boca
A carícia dos dedos nas cordas do violino.
Afirmava com a sua malícia: é agora ou nunca
vamos pecar agora que ninguém se importa
Não há quem pense em nós, na nossa festa.
Ali próximo do monte no sopé do sonho em voo a planar
da imaginação à sombra da parreira a crescer sem parar
Não falar não olhar não desdizer não apalpar nem se
atrasar,
Esse perfume indesmentível da falésia ou da vertigem
a coragem e a voragem da loucura incontrolável a arder
Da subida vertical da ascensão ao céu pagão do
prazer.
Se os pactos com o demónio fossem todos assim
e se o diabo em figura de gente fosse Paganini
dedos magros e compridos que mais ninguém tinha
quantos de nós não seríamos devotos do diabo...
Se não fôssemos moleiros ou aguadeiros do moinho
(para quem não saiba Liszt em português é farinha
o nome de Liszt seria Francisco Farinha)
quantos de nós não seríamos padeiros da padaria...
A partir de 1830, Liszt (1811- 1886) vive em França e
torna-se amigo
de Frédéric Chopin (1810-1849) e de Niccolò Paganini
(1872-1840)
músicos-compositores que influenciaram a sua música para
piano.
Chegava pé ante pé feito bailarino
em silêncio da proximidade da vida
da planície ausente, da noite fechada.
Chegava com um ramo de rosas brancas
com uma caixa de fósforos para iluminar
um breve sorriso invisível e tímido na mão.
Sabia que ela iria reconhecer o perfume
da namorada natureza que vinha com ele
que o rosto imaginado ficaria para depois.
A razão podia explicar a força desse lume.
Sentia que um dia a noite madrasta dos olhos
se faria mãe com um coração doce e grande.
Deixa que entregue os olhos do meu coração
Ó meu amado benfeitor fica comigo para sempre.
Se fosse seara seria uma espiga de milho
Namorava às escondidas com o centeio
E passava o tempo a fazer ciúmes ao trigo.
Na festa das bruxas, no baile das raparigas
Espontânea adorava surpreender as formigas
Com migas, grãos de café e bolachinhas.
Vinha de dentro, era das irmãs a mais meiga
Tinha mais amigas do que um concerto gratuito
Mas também não se escondia de uma boa briga.
Nunca se sente cansada, visitada pela fadiga
Está sempre disponível para o seu prometido
E ainda hoje é nos seus braços que se abriga.
Foi quando aceitámos o perfume do vento
e a brisa nos protegeu com o seu véu
porque tecíamos as surpresas do tempo.
Porque pedaços da pele das tuas rendas
se prenderam ao coração das minhas silvas
cantamos o mosto do corpo, o altar do amor.
Como estamos de pé no piano, nota de roda-mão:
Chamava-se Maria Wodzińska e tinha 17 anos
e era de uma beleza que convidava a escrever.
Foi a primeira paixão conhecida de Fryderyk
em segredo estiveram comprometidos
mas o casamento acabou por ser cancelado.
Um século e meio depois numa outra capital
outra Maria também da Polónia tinha 18 anos
e apesar da dedicação também não se casou.
Não andava nem se deitava sem o crucifixo
com Jesus da Nazaré bem acomodado no vale
que separava e juntava os rijos e belos peitos.
Para ter reservado um lugarzinho assim.
Infiel inofensivo, quem me dera a mim
ter sido eu também injustamente crucificado.
e merecer por isso em terra alheia, o paraíso.
Seria pelo desleixo das roupas
da maquilhagem pouco cuidada
como para disfarçar tanta alegria
a felicidade desenhada no rosto
que afaga o peito
que enobrece a alma
que acicata o gosto
e desperta sentimentos.
Por um instante o olhar parece ausente
perdido algures entre memórias e desejos.
A mão meiga que toca no cravo vermelho
talvez por ser abril e passear por Lisboa.
Ali se perdeu com ela pelas suas ruas estreitas
com a melancolia tardia de algum sefardita
pelos labirintos miradouros e ruelas de Alfama
pelas tabernas, travessas e becos da Mouraria.
Nada levava a pensar que aquela linda moça
estava ali para te ouvir te acompanhar e confirmar.
Pelo menos o piano não magoa os dedos como as guitarras.
E eu levei isso muito a sério: Frédéric Chopin
Deixa o medo fechado em casa
por detrás do roupeiro, no fundo
da gaveta e perde a chave da porta.
Escolhe a espada com coragem
está na hora de se fazer à estrada.
Pátria nem que seja a última viagem.
Não é tempo de discutir a cor da madeixa
feita à medida da mentira para enganar.
O sexo dos anjos ou os cornos alçados
do cabresto cabrão do criminoso czar.
Vive-se uma época em que o heroísmo
precisa de inspiração, de força e de vigor
como disse a sua famosa amante e protectora.
Se possam desfraldar bandeiras como esta.
Budapeste, janeiro-abril 2025
Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.
Fernando Pessoa (Ricardo Reis)
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
Noli me tangere de Ticiano.
- Sem querer correr o risco da blasfémia
Não me toques que me desafinas
desafinas o piano, o pianoforte
da minha tranquilidade
e abstinência de séculos.
Mesmo não sendo tua intenção
traz-me de volta até ao coração
a vivência, a vida vivida sem morte
desses momentos maravilhosos (MM
- Maria Madalena, Marilyn Monroe)
que há muito eu quero esquecer.
E deixar dormir no subterrâneo da ilusão
na gruta não iluminada da desilusão.
O "Noli me tangere" de Ticiano
que vimos em Londres na National Gallery.
Recordar Picasso (PP) sem pregar a abstinência
ou não lhe tocar que queima, pelo contrário
se inspirou no "Noli me tangere" de
Correggio
- quadro exposto no Museu do Prado em Madrid.
Não esquecer, é na penumbra que as mãos tem olhos!
A emocionante tela La vie, 1903 do período azul
- Retrata o seu grande amigo Carlos Casagemas
que antes se tinha suicidado e deixou Pablo
inconsolável.
A partida dos amigos deixa vazios com mágoas infinitas.
Alguns dos meus melhores amigos não voltarão jamais!
A vida e a morte, modelo e musa, amada mulher
do princípio ao fim da nossa breve passagem pela
terra.
- PP não se pode queixar, foi dos que mais viveu (1881-1973)
Modigliani (36 anos), Van Gogh (37 anos) e Klimt (56 anos).
Que seria de nós sem a arte e os grandes artistas?
Touch me
now, I close my eyes
And dream
away (Roxette)*
Se digo
"Don’t touch me there"
porque sem querer troquei de canção
e seja em que língua for, não acredites
devo ter bebido gin tónico a mais
ou comido algo que me fez mal.
O que eu quero dizer é, Não pares!
Olha-me e entendes todo o meu mundo
que é teu desde o primeiro elevador
desde a primeira porta fechada atrás de nós.
Continua, continua até ser noite, até ser dia.
*It Must
Have Been Love
do
filme Pretty Woman (1990)
Dizem que gostos não se discutem
e que não há duas pessoas iguais
- cada cabeça sua sentença.
Uns multiplicam o pão e há outros
que preferem a multiplicação dos pobres
- preferem perpetuar a pobreza.
Fazem precisamente o contrário
das suas teorias e das suas ideias
- das suas promessas redentoras.
Mudando de assunto imaginando
estar perto de ti e pensando
em que dizer para te surpreender
abro o teu guarda-roupa e digo
- Diz-me o que vestes
e eu digo-te o que mostras
o que devias guardar para depois.
É tão bom observar indiscreto.
Prefiro-te nua ou quase nua
ou vestida de serviços mínimos
do que de design arejado e inovador.
Sabes bem que não há gostos iguais.
Se eu tivesse nascido em Budapeste
teria sido canalizador ou contabilista.
Se tivesse nascido na cidade de Lisboa
teria sido moço de recados e alfaiate.
Teria estudado numa escola industrial
e com tempo aprendido uma profissão
emprego numa sociedade comercial
subindo a pulso com espírito de missão.
Pessoa respeitada e útil à sociedade
com trabalho e clientes satisfeitos
teria sido um conhecido costureiro
a tesoura masculina, o fato da cidade.
Para a arte da confeção não se perder
teria casado com uma colega modista
ido de férias e a crédito comprado casa.
Seria um mundo a sério, uma vida a valer.
Pode ser que por milagre tenha sorte
mas quem é pobre, quem nasceu pobre
dificilmente algum dia deixará de o ser.
Andar sempre com o credo na boca
seja pela doença ou da renda da casa
as prestações e os estudos das crianças
da alimentação, do vestir ou desemprego.
No mundo de hoje como já foi antes
o que conta é a demagogia e o verbo
e são normalmente os ricos e abastados
que falam, dizem representar os pobres.
A mim dói-me e é tão triste assistir calado
ver como os mais pobres se deixam levar.
De que falam estes iluminados? Pelo Duce?
Como Lénin? Outro qualquer demagogo?
Deixem-me parafrasear García Marquez
- El día en que la mierda tenga algún valor
los pobres nacerán sin culo. Assim, Gabo!
Falava de pudor em pó como quem fala
de sabonete líquido inventado à medida
e feito para da cintura para baixo escorrer
- devagar pois o dia ainda é uma criança.
Para lavar cuidadosamente as pernas
a quatro mãos e a vinte e dois dedos
que mesmo com a tração às quatro rodas
- a atração para ser verdadeira é a dois.
Espalhava o pó de talco cor-de-rosa claro
pela saída do pescoço e entrada do peito
e dizia: está um belo dia para passear
- mais para amar do que para trabalhar.
No bairro degradado não havia tanto luar
como quando à noite arranjada saía de casa
para melhorar as finanças tremidas da família
- tanta boca para comer, tanta para calar.