Para o livro "De mim ficam as Palavras"
Dá-me tempo, mais umas semanas
de paciência para sem pressas
de manhã à noite poder-te mostrar
e com o meu olhar fazer-te acreditar
que tenho este mundo e o outro
para te receber e nos abrigar do vento.
Mundo que inventei entre pão e migalhas
entre beijos nossos e muitas palavras.
Permite-me que traga para a mesa
as melhores lembranças do futuro
enquanto levemente te acaricio o rosto
e tu me seduzes com o teu perfume de rosa.
"Deixa-me ser um poema
serei casa e palácio, água e pão
serei o mistério de vida
que se deleita na tua mão."
Se me deixares pegar-te pelo braço
serei vinha e pomar de laranjeiras
serei horta e plantação de oliveiras.
Farei do regresso um eterno abraço.
Ao desfolhar as notas e apontamentos
que tinha guardado para o presente incerto
encontrou um excerto que lhe fez lembrar
outros dias menos distantes, mais afirmativos.
"Foi em travessa
de porcelana portuguesa
que ao seu homem toda nua
se ofereceu no tampo da mesa."
Sim, na conversa desenvolta e fluída
lábia era coisa que não lhe faltava
e quando em condimentado aconchego
tinha sempre troco no bolso do mamilo.
Ninguém lhe passava a mão pelas costas de graça
quando jeitosa e segura de si afirmava com graça
- Bebo leite magro porque tenho o sangue gordo
dizia com um sorriso bonito, um sorriso maroto.
Não te esqueças de mim
quando a distância for muita
e a esperança for pouca
do amor se cultivar no jardim.
Não te esqueças de mim
quando os dias são noites escuras
e as manhãs já não tropeçam em nós
nas madrugadas sem te chamar jasmim.
"Não te esqueças de mim
quando no copo do teu vinho tinto
vires desenhar um outro sorriso.
Teu labirinto, teu absinto."
Lembra-te de mim, nunca te esqueças
mesmo de improviso, mesmo só por instinto
o teu melhor vinho são das uvas do meu corpo.
Para ti a areia fina do meu sorriso não tem fim.
Nessa época havia uma canção
que mal se ouvia na rádio
talvez por excesso de erotismo
numa terra de costas para o mundo.
Talvez por sermos muito pudicos
num país desde sempre adiado
ou os brandos costumes elogiados
de um pequeno povo tão resignado.
A letra dizia “Tu que fazes
do meu coração a tua morada
dos meus seios o teu passeio
dos meus olhos o teu jardim
Que fazes da minha boca teu pão
da minha água teu vinho,
do meu prazer uma canção.”
Parece que comprometia a alma da nação.
Foi quase excomungada
por uma padralhada que só via pecado
onde o amor era cantado
onde quase nua a paixão se sentia
e o prazer dos amantes se mostrava.
Não era preciso ser muito perspicaz
para ver que aquela amizade
era do melhor que havia por ali.
As surpresas ainda vinham a caminho
e já os adjectivos se iam esgotando
com a sua pertinência e encantamento.
Escrevia em verso e com rimas gostosas
que ficavam, não passavam despercebidas.
Experiente sabia destacar-se como poucas.
“Madura, dizem de ti
como se estar madura
não fosse sinónimo de doçura.”
Apetecia saltar as regras da discrição
apetecia comentar e perguntar-lhe a sorrir
qual era a parte mais doce da sua fruta.
Perguntar com quem estava a sonhar
e imaginar a resposta mais adocicada
- A sonhar como seria viver contigo.
Dá-me um minuto de atenção
mesmo que esse minuto se faça horas e dias
tu já tenhas há muito desligado o telefone
e eu continue a falar sem parar nem respirar.
Há muito tempo que te queria dizer
que esta nossa linda aventura
tão pouco comum, tão fora de caixa
não pode acabar só assim
sem um último encontro, uma despedida.
Sei muito bem, não preciso que repitas
que tudo tem um princípio e um fim
como há tempos que a ribeira vai cheia
e outros que está seca sem pinga de água.
Não é por isso que o pintassilgo deixa de
cantar.
Quero que saibas de uma vez por todas
faminta e despida de qualquer tola autoestima
"sem ti não há sol que me aqueça
nem pão que me apeteça".
"Se queres Amor que te esqueça
devolve-me o amor que te dei.
Eu só te posso esquecer
se esquecer que te amei."
Anda vem para a roda dançar
manda a tristeza para bem longe
sente o rodopio ali à volta da fonte
e não te importes se não sou o teu par.
Sente de perto os odores fortes da festa
os calores que colam a pele ao vestido
os alertas tímidos do coração adormecido
adeus velha paixão e depois começa outra.
Não te esqueças que a vida é um sopro
e quando damos por ela já está de saída
não desperdices os momentos de alegria
e faz do novo romance a tua nova fantasia.
Leitor que nunca me vais ler
sabes é em ti que estou a pensar
é para ti que estou a escrever.
Escrevo sabendo quão ingrato
é o papel do autoproclamado
escritor anónimo e desconhecido.
Como já antes escrevi não é por não ser lido
nem saberem de mim que vou desertar
as palavras com que me levanto e caminho.
Hoje com um jovial e acrescido optimismo
gostaria de afirmar que não conheço
ninguém que seja feliz sozinho.
Não estou a dizer que não há pessoas
que estão sozinhas e são felizes
mas eu não conheci nem as conheço.
Procura em cada dia a felicidade
o carinho que faz bem e faz viver
a ternura que não tem tempo nem idade.
Procura o amor verdadeiro
aquele que quanto mais se dá
mais há para dar no armazém do coração.
A amizade que como uma boa cola,
cola tudo o que há de melhor entre nós
cola os sentimentos e a festa da vida
Sim é-se muito mais feliz
se a felicidade for partilhada e se multiplicar.
Vale a pena manter abertas as portas da vida.
"Já fui alameda
praça, largo, avenida.
Já fui caminho, vereda
e hoje se sou beco sem saída
em mim tenho ainda abertas
todas as portas para a vida"
Quem foi que inventou
que a paixão faz crescer asas
e se verdade ensina a voar e sonhar?
Quem foi que escreveu
que grata a resiliência das almas
alimenta a perfeição das palavras?
Quem foi que espalhou ao vento
que o amor quando chega
fica em nós até ao nosso último dia?
"Meu amor como te dizer
que as saudades de ti
faz-me pouco a pouco morrer."
São excertos e migalhas
de um passado que se foi
que saiu de casa de mochila às costas
que partiu para não mais voltar.
Excertos e Migalhas (2025)
Para o livro “De mim ficam as Palavras”
Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.
Fernando Pessoa (Ricardo Reis)
2024 - 2025
Que queres de um campo de urtigas?
Searas de trigo, vinhas e cachos de uvas?
Pão e vinho? Em que mundo vives?
Quando amanhã de vez nos faltar a água
mata a sede com as ervas secas do velho rio.
Os mais clássicos lavam as meias à mão
os outros mais modernos lavam-nas ao pé.
Os mais agressivos preferem a pontapé
eu fico com elas calçadas como inspiração.
Aprendi recentemente um conceito novo
sobre a corrupção vertical e horizontal.
Sentada e nua jurava por toda a sua roupa
ser apenas transparente como a arte erótica.
Se nas montanhas não apanhastes chuva
desce até ao vale e colhe malmequeres
junta os pedaços de sol com carinho
e da planície do coração oferece o raminho
a quem ansiosa te espera apaixonada.
Os outros não sabiam e eles não queriam
que se soubesse e fosse motivo de conversa
que antes do primeiro encontro já se conheciam
como se tivessem dez verões de namoro.
Como se vivessem juntos há muito anos.
Persistente a paixão abriu todas as portas
e foi devidamente documentada e comprovada.
A doçura das suas palavras avulso e amargas
foi detalhadamente divulgada e promovida.
A festa que anunciava foi apresentada
comunicada pelos olhos lindos da remetente
apreciada e valorizada pelo seu destinatário.
Foi como sempre precisa e criativa e inventiva
como um espelho que à luz reflecte e ilumina.
Simplíssimo tributo a Jorge Mario Bergoglio
mais conhecido por Francisco, Papa do povo.
"O tu o nadie" escreveu Jorge a Amalia
quando tinha apenas 12 anos e acrescentou
"Si no me caso con vos, me hago cura".
Foi certamente um puro sentimento
uma linda história de amor de criança
uma paixão precoce e antes do tempo.
De um menino que tinha olhos para ver
e coração aberto para sentir e imaginar.
Um lindo amor que não se concretizou
Infantil, não se fez adolescente ou adulto.
Em contrapartida para nem tudo se perder
sessenta e tal anos depois tivemos um “porteño"
morador do humilde bairro das Flores
e desde sempre fervoroso do seu San Lorenzo.
Argentino, o primeiro papa latino-americano
da história milenar da sagrada igreja católica.
Tivemos e pudemos admirar, aplaudir e gostar
mesmo os não crentes e ateistas como eu.
Obrigado Francisco, Papa vindo do "fim do mundo".
Desfiladeiro desfolhado da garganta profunda
Desfile descartável de vaidade saloia e antiquada
Para dizer que gajo importante me coube ser
Ter vindo ao mundo para ser gente e convencer.
Podia continuar com prosa que ninguém vai ler
Lembrar que vim até aqui de burro a motor japonês
Que me mandei pintar do avesso para me refazer
Com as paredes de um sol de abril talvez português.
Dizer que é em Bled com esta paisagem maravilhosa
Mais de postal ilustrado do que invenção da alma
Que os pensamentos sobre o mundo me veem à cabeça
Me perturbam, mas não me tiram da vida aqui tão cerca.
Apesar de morar há muito num dos países vizinhos,
ontem foi a primeira que o encontrei e apreciei
caminhei pela obra-prima do senhor escultor Radovna
rio que com o seu metódico trabalho de anos e anos
esculpiu magistral o desfiladeiro Vintgar e lhe deu fama.
Comecei a escrever este apontamento
algures no trilho da Cascata Mostnica
e o rio de montanha com o mesmo nome
onde o elefante que se perdeu veio matar a sede
no caudal das águas que alimentam o Lago Bohinj.
Uma deliciosa queda de água quase anónima
logo no início e no final de uma difícil subida.
Chama-se ponte do diabo porque para um precipício
com aquela altura e perigo não havia mais ninguém
com tomates para a construir que não fosse o diabo.
Matreiro e velhaco impôs uma condição
a alma do primeiro a atravessar a ponte
seria sua propriedade para a eternidade.
O bispo da terra decidiu contornar o assunto.
O sacrificado foi um cão enganado por um osso.
Se fosse agora seria o bonito caía a ponte e a
Trindade
os amigos dos animais não deixariam a coisa pela lenda.
Para amenizar o conflito fala do que vistes
- As pedras não crescem nas árvores
mas as árvores crescem nas pedras.
No caminho de Savica é proibido pescar
desaconselhável desejar peixe frito
fotografar e partilhar avisos de zona
- Pela gargalhada aqui há gato
porque nesta terra escreve-se cona.
Não me levam a mal, mas por vezes é bom recordar
- Em Mostnica e Savica o eco barulhento das águas
fazia-me lembrar o mar da Nazaré a labregar.
Olhar o passo para não tropeçar e cair
parar para ver e apreciar tanta beleza
que à nossa volta se oferecia gratuita.
Caminhar de mochila tem mais encanto
quando se caminha por sítios de deslumbrar.
Depois de ontem posso dizer com um sorriso
que já não morro sem ter bebido água do rio.
Andamos em trilhos entre os Alpes Julianos
o ponto mais elevado com quase três mil metros.
Caminhadas com partidas e chegadas a Bovec.
Ali o passo mais alto é a ligação
entre os vales dos rios Sava e Soča.
Passo ou colo que bonita expressão.
Coloca as tuas mãos quentes em mim
e eu colo os meus lábios húmidos nos teus.
Sítio dos amantes dos desportos radicais
sítio de aventuras fluviais e amantes actuais.
Imaginar que aqui neste local tão pacífico
pela sobrevivência com armas e granadas
que há 100 anos se matavam uns aos outros.
Hoje há ecossistemas para tudo
pessoas e animais, cartões e caixas automáticas
plantas e oceanos, serras e alguns desertos.
Antes terá sido um bairro com autocarro
casas pré-fabricadas da idade pré-moderna
agora somos em terra uns ecopontos perfeitos.
Ecossistemas em que o eco da mãe ou madrasta
a natureza está em baixo, perigosamente em baixo
mas o ego individual nunca esteve tão em cima.
Temos também ecossistemas de ciência e inovação
da vinha e do vinho, ecossistema religioso e
financeiro.
O ecossistema de primeiro foi o ovo ou a galinha.
Ecossistemas das palavras roubadas ou mal-usadas.
Salvo raras excepções somos uns autênticos
papagaios.
Por ser míope uso óculos e para ouvir
aparelhos nos dois ouvidos, sem eles
estaria na cave o tempo quase todo.
Tomo também vitaminas para continuar
a magicar e a pensar pela minha cabeça
as vitaminas da vida e do mundo à volta.
Como gosto de reflectir para ter opinião
não posso estagnar, tenho de evoluir
e no verbo com alguns estrangeirismos.
Entre as things de que eu mais gosto
é quando nos meetings em que participo
cada segunda palavra ser importada
tem classe e sobretudo tem conteúdo.
Das minhas aquisições mais recentes
e para o futuro shortlist do meu texto
no workshop destacaria em power point
a importância do Mainstream & Main Street.
Europeu e americano, ocidental e liberal.
A corrente do pensamento dominante
enfiada à martelada nas lojas da rua principal.
Discutida ao detalhe no último brainstorming.
A tasca é a alma da aldeia disse o outro
um espantalho das paprikas e beringelas
e que por graça do pai Viktor é ministro.
A ideia é pôr o povo de volta do bota-abaixo
distribuir uns tostões para adiar as ressacas
e prolongar a cirrose e a vida das tabernas.
Feita a crítica política ao novo programa
de arrebanhar votos com aguardente
e continuar mais uns anos no poleiro.
Vamos lá mudar de diapasão e de tema
contra dogmas não há milagre ou mensageiro
e cada povo tem o governo que merece.
Serviço ao cliente não é à mesa é ao balcão
o dinheiro é de plástico e sotaque estrangeiro
o mata-bicho e um cigarro em cada mão.
A pensar no criminoso-camarada Vasily Blokhin*
Inimigo do povo, tiro na nuca
Inimigo do partido, tiro na nuca
Inimigo da revolução, tiro na nuca
Inimigo da classe operária, tiro na nuca
Inimigo da pátria soviética, tiro na nuca
Inimigo do homem novo, tiro na nuca
Inimigo do marxismo-leninismo, tiro na nuca
Inimigo da amizade entre os povos, tiro na nuca
Inimigo da Internacional comunista, tiro na nuca
Inimigo da limpeza étnica, tiro na nuca
Inimigo da degola dos kulaks, tiro na nuca
Inimigo da verdade sobre Katyn, tiro na nuca
Inimigo da liquidação dos inimigos, tiro na nuca
Espalha mentiras sobre Holodomor, tiro na nuca
É judeu ao serviço do imperialismo, tiro na nuca
Quer abrir os olhos aos idiotas úteis, tiro na nuca
Ciumento das vodka-orgias de Béria, tiro na nuca
Desertor-traidor de Stálin Pai dos povos, tiro na nuca.
*Esta é a terceira versão de texto que escrevo sobre o camarada Blokhin (1895-1955) um dos melhores exemplos do que foi ser comunista e agente da polícia política na URSS. Um criminoso brutal, metódico e implacável. O melhor exemplo do homem novo comunista.
Vasily Blokhin executou dezenas de milhares de prisioneiros pelas suas próprias
mãos, incluindo cerca de 7.000 prisioneiros polacos durante o
Massacre de Katyn, na primavera de 1940, o que faz dele o pior carrasco de que
há registo na história mundial.
Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta
continuarei a escrever. Clarice Lispector
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
Era ali que os caminhos subiam
e até ao cimo os levavam.
Era ali que livres pela encosta
rebolavam e se abraçavam.
Se envolviam, se disfarçavam e se escondiam
se comemoravam, se despiam e se amavam
e sem remissão se ofereciam um ao outro
certos do segredo da sua festa mais íntima.
Que ninguém sabia deles nem a poesia
para os escrever e imortalizar a sua história.
Enxaguavam-se no riacho da ladeira
onde as plantas formavam uma cadeira
o declive para uma última promessa
um último abraço, um beijo avassalador.
Encosta-te às suas costas, ao seu peito
à sua alma, à sua paixão infinita por ti
à aventura e ao milagre do vosso amor.
Encosta-te e nunca te afastes do amor.
Poderei estar enganado e se for o caso
penitencio-me por isso, mas poesia
é também remexer memórias do passado
voltar a ler cartas antigas ou alguns excertos
de quando ainda havia tempo para escrever.
Foi sempre a minha sincera convicção
quando tu passasses a ser a minha manhã
o meio-dia e a tarde, a noite e a madrugada.
Em que fosses o sol e a lua da minha vida
de pronto te irias cansar e fartar de mim.
Diz-me, enganei-me? Não é assim?
Estás muito enganado. Ouve, não é assim.
Olha bem, porque é a minha alma que grita.
Tu és quem sempre imaginei para mim.
Não foste o primeiro, mas és o último.
Aqui, o primeiro e último da minha vida
e até ao meu último sopro estarás em mim.
Sente-se de novo a chegada da alba
do amanhecer sempre apressado
do tempo mais curto que o desejado
na roupa branca da cama amarrotada
e a camisa de dormir no chão esquecida.
A cantiga de entrega da minha prometida
da paixão a arder pela exaltação tardia
contra latitudes e geografias diferentes
dos amantes abraçados pela telepatia
dita ao telefone e com a televisão ligada.
Para os velhotes não ouvirem os gemidos
não virem ao alpendre e ficarem a saber
que o amor não é feito apenas de sorrisos
que não tem idade nem prazo de validade.
Rosa encantada feita invenção do prazer.
Depois de o ter conhecido e sido envolvida
no abismo pela magia infinita da sua sabedoria
por ser uma verdadeira enciclopédia viva
e ter ficado fascinada pela sua vasta cultura.
Pouco depois desse decisivo momento
passou a ver o mundo pelos seus olhos
as suas frases típicas e os seus conselhos
com as suas opiniões e críticas certeiras.
Foi a descoberta de um novo mundo
de um alargado e desconhecido universo
para guardar por dentro de cada gaveta
e construir a livraria do seu novo planeta.
Ninguém se pode despir da sua pele
não há quem mude apenas por mudar
tem de vir de dentro e do fundo da alma
em sobressalto incontido o fascínio despertar.
Foram anos a se mostrar e se destacar
anos de encantamento e de sedução
com tantos candidatos em lista de espera
a quererem arrebatar o seu coração.
Quando finalmente encontrou o trilho
e percorreu as dunas de mãos dadas
na praia se pode espreguiçar e deitar
adormeceu e ligou o piloto automático.
Sabe como poucos da poda da narrativa
escolher a melhor agulha a linha e o nó a dar
selecionar as respostas e não se sentir cativa.
Deixar-se ficar para trás e amanhã não voltar.
Ao longo das margens baixas do rio
sedimentava-se sedosa a sedução.
Às folhas no chão ninguém fazia caso
e ao subsolo ninguém prestava atenção.
Mas há por ali alguém que não dorme
e que não nega a esmola nem o pão.
Alguém que sabe da lua vinda do norte
e sonha com ela porque tem coração.
Alguém disposto a andar a monte
ou de barco para pescar o seu sorriso.
Não deixar Eros na erosão da quietude
ou a negação do bem-estar no paraíso.
Como dizia asssertivo, bom sexo
pode-se fazer a três, ménage à trois
mas verdadeiro o amor é como o tango
o Amor, faz-se e dança-se a dois.
A pergunta séria feita a sorrir seria
o que são cinco meses e dois dias
na longa vida de duas pessoas?
Com o que desde ontem sei hoje
estou convencido que nem a brincar
pronta a resposta não se faria esperar.
- Menos de meio ano, mas por mim podia ser
o tempo desta vida e da outra se houver
e para não ter de recorrer à tabuada
o tempo exacto para os olhos se olharem
o tempo certo para as bocas se cruzarem.
- Recordar os bons tempos passados juntos
não lamentar os que gastamos ao engano
esquecer os momentos dos dias mais cinzentos
sem a cor do sonho, com as palavras sem rumo
e a promessa de que estarei sempre contigo.
Sentou-se ao meu lado e nem me viu
eu vi-a pelo desafio do seu perfume
baunilha que nunca tinha cheirado antes.
Um perfume que convidava a comer
como se fosse uma bolacha baunilha
ou arroz-doce polvilhado com canela.
Loura nela havia algo de aristocracia distante
e pela grande diferença dos troncos entre nós
devia ser alta - comigo também não é difícil.
Pelo canto do olho via-lhe um traço renascentista
de alguém que não está habituado o dia inteiro
a virar frangos ou pensar nas últimas compras
do fim-de-semana e a comida que vai cozinhar.
Quando se levantou para descer pude ver
como era alta vestida de calças quentes
porque apesar de abril lá fora fazia frio.
Casaco curto peludo cor de doce creme
sem açúcar queimado para acompanhar.
Era a fome escondida da sobremesa
a vontade de não comer para não engordar.
Pode parecer conversa de jumento
mas ao contrário do que se pensa
hoje ainda é mais difícil do que antes
o despontar social e subir os degraus
do escadote na hierarquia da sociedade.
Quem nasce em baixo se não tiver
uma pitada de sal a salgar a sorte
ou talento especial, jogador de futebol
carreirista da juventude partidária
algo que lhe sirva de elevador social.
A vida é mais dura e mais velhaca
e é muito difícil escapar ao destino
porque faça o que fizer o normal
é ficar na cave ou no rés do chão
- habituar-se até ir desta para melhor.
Puta da igualdade de oportunidades!
Perdoa-me se eu sem querer
exagerar ao gritar a dor e gemer
mas é pelo amor por ti que o faço.
Por ti que tenho no coração
e pela criação do mundo novo.
O Filho de Deus colado ao peito.
A história escrita em argila
do tempo dos bisavós e trisavós
mais ano ou menos ano antigo
e me quero armar ao pingarelho.
Soube que a Epopeia de Gilgamesh
foi encontrado em escavações
feitas em Nínive hoje vestida de Mossul
no injustamente infeliz Iraque.
Como estou com pressa para acabar
li que a narrativa de génesis no Antigo Testamento
não ser mais do que uma cópia bem escrita
do mito muito antes escrito da criação babilónica.
A cópia em segunda mão é sempre pior
do que o original, tal homem tal deus
tal humanidade e tal divindade repleta
de fúrias e ódios, de traumas e castigos.
Mais a gratidão ao paladar da refeição
repasto de domingo para os deuses
que não cansam de mal dizer e mal fazer
ou não fossem eles criações dos homens.
2024-2025
Porque a música penetra mais fundo na alma. Platão
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
"Ama, ama enquanto puderes"
enquanto a amada te esperar
enquanto a paixão continuar
e o vosso amanhecer desejares.
Ama, ama enquanto fores vivo
enquanto te sentires renascer
quando o seu olhar te sorrir
e convidar para a rua do prazer.
Ama, ama enquanto souberes
que o seu coração bate em ti
que este Amor não morre por si
por ela estás pronto a tudo deixares.
Ama, ama até ao último sopro
sempre o vosso primeiro momento
e recorda que um minuto com ela
é mais do que uma vida com outra.
Ó Meu Amor, aconteça o que acontecer
por muitas mágoas que sintas e tenhas
mágoas por mil razões sedimentadas
barco afundado carregado de pedras.
Para a despedida, para a tua partida
que fria e impiedosa a vida justifica
peço-te, nunca me deixes abandonada
sozinha e perdida à beira da estrada.
Perdida, triste e por dentro escurecida
entre uma terra nova e outra desconhecida
a meio caminho entre a dor, o amor e o nada
sem saber o rumo nem tão pouco o futuro.
E é tão bom quando fazemos as pazes
quando as fúrias, as guerras e os ciúmes
dão lugar à paz e corremos para o reencontro.
E nos despimos para nos vestirmos um do outro
adormecemos lado a lado cansados e felizes
- A descansar em cinzas ao gosta do Bom Deus.
Ó Meu Amor, nunca te vou esquecer
- Os teus olhos são a noite no mar
- São o mar na noite, no dia da noite.
Devagar devagarinho com a transparência dissimulada
como quem não quer a coisa e com a finesse
que só uma dama, uma
mulher tem e sabe usar
se o assunto lhe interessa e pensa valer a pena.
Foi-o envolvendo e seduzindo (ele pensava o contrário).
Um dia depuseram as armas e tiraram as teimas
desarmados e abraçados multiplicaram o pão e o beijo
juntaram-se e não podia ter sido refügio mais valioso.
Na flor da vida e para não fazer as coisas pela metade
deixa-me adormecer contigo e sonhar ao teu lado
seres a minha toutinegra e eu ser o teu pintassilgo
casar-me contigo para esta e quantos vidas tivermos.
Fazer uma grande festa de casamento com toda a aldeia
dançarem contigo a menyasszonyi tánc (dança da noiva)
beber o último copinho de aguardente com os amigos
e nessa noite serei teu, serás minhas, uma alma seremos.
Parte dos "Grandes Études de Paganini”
O seu corpo na erva, no chão deitado
era a apanha antecipada da azeitona
Florido um caloroso teclado de piano.
A sua alma nos trabalhos da vindima
era a cesta cheia das sílabas da boca
A carícia dos dedos nas cordas do violino.
Afirmava com a sua malícia: é agora ou nunca
vamos pecar agora que ninguém se importa
Não há quem pense em nós, na nossa festa.
Ali próximo do monte no sopé do sonho em voo a planar
da imaginação à sombra da parreira a crescer sem parar
Não falar não olhar não desdizer não apalpar nem se
atrasar,
Esse perfume indesmentível da falésia ou da vertigem
a coragem e a voragem da loucura incontrolável a arder
Da subida vertical da ascensão ao céu pagão do
prazer.
Se os pactos com o demónio fossem todos assim
e se o diabo em figura de gente fosse Paganini
dedos magros e compridos que mais ninguém tinha
quantos de nós não seríamos devotos do diabo...
Se não fôssemos moleiros ou aguadeiros do moinho
(para quem não saiba Liszt em português é farinha
o nome de Liszt seria Francisco Farinha)
quantos de nós não seríamos padeiros da padaria...
A partir de 1830, Liszt (1811- 1886) vive em França e
torna-se amigo
de Frédéric Chopin (1810-1849) e de Niccolò Paganini
(1872-1840)
músicos-compositores que influenciaram a sua música para
piano.
Chegava pé ante pé feito bailarino
em silêncio da proximidade da vida
da planície ausente, da noite fechada.
Chegava com um ramo de rosas brancas
com uma caixa de fósforos para iluminar
um breve sorriso invisível e tímido na mão.
Sabia que ela iria reconhecer o perfume
da namorada natureza que vinha com ele
que o rosto imaginado ficaria para depois.
A razão podia explicar a força desse lume.
Sentia que um dia a noite madrasta dos olhos
se faria mãe com um coração doce e grande.
Deixa que entregue os olhos do meu coração
Ó meu amado benfeitor fica comigo para sempre.
Se fosse seara seria uma espiga de milho
Namorava às escondidas com o centeio
E passava o tempo a fazer ciúmes ao trigo.
Na festa das bruxas, no baile das raparigas
Espontânea adorava surpreender as formigas
Com migas, grãos de café e bolachinhas.
Vinha de dentro, era das irmãs a mais meiga
Tinha mais amigas do que um concerto gratuito
Mas também não se escondia de uma boa briga.
Nunca se sente cansada, visitada pela fadiga
Está sempre disponível para o seu prometido
E ainda hoje é nos seus braços que se abriga.
Foi quando aceitámos o perfume do vento
e a brisa nos protegeu com o seu véu
porque tecíamos as surpresas do tempo.
Porque pedaços da pele das tuas rendas
se prenderam ao coração das minhas silvas
cantamos o mosto do corpo, o altar do amor.
Como estamos de pé no piano, nota de roda-mão:
Chamava-se Maria Wodzińska e tinha 17 anos
e era de uma beleza que convidava a escrever.
Foi a primeira paixão conhecida de Fryderyk
em segredo estiveram comprometidos
mas o casamento acabou por ser cancelado.
Um século e meio depois numa outra capital
outra Maria também da Polónia tinha 18 anos
e apesar da dedicação também não se casou.
Não andava nem se deitava sem o crucifixo
com Jesus da Nazaré bem acomodado no vale
que separava e juntava os rijos e belos peitos.
Para ter reservado um lugarzinho assim.
Infiel inofensivo, quem me dera a mim
ter sido eu também injustamente crucificado.
e merecer por isso em terra alheia, o paraíso.
Seria pelo desleixo das roupas
da maquilhagem pouco cuidada
como para disfarçar tanta alegria
a felicidade desenhada no rosto
que afaga o peito
que enobrece a alma
que acicata o gosto
e desperta sentimentos.
Por um instante o olhar parece ausente
perdido algures entre memórias e desejos.
A mão meiga que toca no cravo vermelho
talvez por ser abril e passear por Lisboa.
Ali se perdeu com ela pelas suas ruas estreitas
com a melancolia tardia de algum sefardita
pelos labirintos miradouros e ruelas de Alfama
pelas tabernas, travessas e becos da Mouraria.
Nada levava a pensar que aquela linda moça
estava ali para te ouvir te acompanhar e confirmar.
Pelo menos o piano não magoa os dedos como as guitarras.
E eu levei isso muito a sério: Frédéric Chopin
Deixa o medo fechado em casa
por detrás do roupeiro, no fundo
da gaveta e perde a chave da porta.
Escolhe a espada com coragem
está na hora de se fazer à estrada.
Pátria nem que seja a última viagem.
Não é tempo de discutir a cor da madeixa
feita à medida da mentira para enganar.
O sexo dos anjos ou os cornos alçados
do cabresto cabrão do criminoso czar.
Vive-se uma época em que o heroísmo
precisa de inspiração, de força e de vigor
como disse a sua famosa amante e protectora.
Se possam desfraldar bandeiras como esta.
Budapeste, janeiro-abril 2025
Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.
Fernando Pessoa (Ricardo Reis)
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
Noli me tangere de Ticiano.
- Sem querer correr o risco da blasfémia
Não me toques que me desafinas
desafinas o piano, o pianoforte
da minha tranquilidade
e abstinência de séculos.
Mesmo não sendo tua intenção
traz-me de volta até ao coração
a vivência, a vida vivida sem morte
desses momentos maravilhosos (MM
- Maria Madalena, Marilyn Monroe)
que há muito eu quero esquecer.
E deixar dormir no subterrâneo da ilusão
na gruta não iluminada da desilusão.
O "Noli me tangere" de Ticiano
que vimos em Londres na National Gallery.
Recordar Picasso (PP) sem pregar a abstinência
ou não lhe tocar que queima, pelo contrário
se inspirou no "Noli me tangere" de
Correggio
- quadro exposto no Museu do Prado em Madrid.
A emocionante tela La vie, 1903 do período azul
- Retrata o seu grande amigo Carlos Casagemas
que antes se tinha suicidado e deixou Pablo
inconsolável.
A partida dos amigos deixa vazios com mágoas infinitas.
A vida e a morte, modelo e musa, amada mulher
do princípio ao fim da nossa breve passagem pela
terra.
- PP não se pode queixar, foi dos que mais viveu (1881-1973)
Modigliani (36anos), Van Gogh (37 anos) e Klimt (56 anos).
Touch me
now, I close my eyes
And dream
away (Roxette)*
Se digo
"Don’t touch me there"
porque sem querer troquei de canção
e seja em que língua for, não acredites
devo ter bebido gin tónico a mais
ou comido algo que me fez mal.
O que eu quero dizer é, Não pares!
Olha-me e entendes todo o meu mundo
que é teu desde o primeiro elevador
desde a primeira porta fechada atrás de nós.
Continua, continua até ser noite, até ser dia.
*It Must
Have Been Love
do
filme Pretty Woman (1990)
Dizem que gostos não se discutem
e que não há duas pessoas iguais
- cada cabeça sua sentença.
Uns multiplicam o pão e há outros
que preferem a multiplicação dos pobres
- preferem perpetuar a pobreza.
Fazem precisamente o contrário
das suas teorias e das suas ideias
- das suas promessas redentoras.
Mudando de assunto imaginando
estar perto de ti e pensando
em que dizer para te surpreender
abro o teu guarda-roupa e digo
- Diz-me o que vestes
e eu digo-te o que mostras
o que devias guardar para depois.
É tão bom observar indiscreto.
Prefiro-te nua ou quase nua
ou vestida de serviços mínimos
do que de design arejado e inovador.
Sabes bem que não há gostos iguais.
Se eu tivesse nascido em Budapeste
teria sido canalizador ou contabilista.
Se tivesse nascido na cidade de Lisboa
teria sido moço de recados e alfaiate.
Teria estudado numa escola industrial
e com tempo aprendido uma profissão
emprego numa sociedade comercial
subindo a pulso com espírito de missão.
Pessoa respeitada e útil à sociedade
com trabalho e clientes satisfeitos
teria sido um conhecido costureiro
a tesoura masculina, o fato da cidade.
Para a arte da confeção não se perder
teria casado com uma colega modista
ido de férias e a crédito comprado casa.
Seria um mundo a sério, uma vida a valer.
Pode ser que por milagre tenha sorte
mas quem é pobre, quem nasceu pobre
dificilmente algum dia deixará de o ser.
Andar sempre com o credo na boca
seja pela doença ou da renda da casa
as prestações e os estudos das crianças
da alimentação, do vestir ou desemprego.
No mundo de hoje como já foi antes
o que conta é a demagogia e o verbo
e são normalmente os ricos e abastados
que falam, dizem representar os pobres.
A mim dói-me e é tão triste assistir calado
ver como os mais pobres se deixam levar.
De que falam estes iluminados? Pelo Duce?
Como Lénin? Outro qualquer demagogo?
Deixem-me parafrasear García Marquez
- El día en que la mierda tenga algún valor
los pobres nacerán sin culo. Assim, Gabo!
Falava de pudor em pó como quem fala
de sabonete líquido inventado à medida
e feito para da cintura para baixo escorrer
- devagar pois o dia ainda é uma criança.
Para lavar cuidadosamente as pernas
a quatro mãos e a vinte e dois dedos
que mesmo com a tração às quatro rodas
- a atração para ser verdadeira é a dois.
Espalhava o pó de talco cor-de-rosa claro
pela saída do pescoço e entrada do peito
e dizia: está um belo dia para passear
- mais para amar do que para trabalhar.
No bairro degradado não havia tanto luar
como quando à noite arranjada saía de casa
para melhorar as finanças tremidas da família
- tanta boca para comer, tanta para calar.
Chegou cedo e a más horas
e encontrou a mulher
na cama com um desconhecido
- Querida o que é que se passa aqui?
- Querido não é o que parece.
- Vi-o na rua tão triste e abandonado
que o trouxe pela mão para casa
para lhe dar uma sopa
consolar-lhe a alma e aconteceu.
- Se é assim como dizes fizeste bem.
Foste mais uma vez solidária e humana.
Continuem, eu volto mais tarde.
É tão bonito quando se é compreensivo.
É tão bom viver nestes tempos modernos.
As arrumações começaram pelos armários do
corredor
e continuaram pelas gavetas e guarda-roupas do quarto.
Não sabiam que armário vinha da velha palavra arma.
Armário, cofre ou guarda-armas de quem as tinha.
Saíram do armário com estrondo e espanto dos outros
- Ele gostava de homens e ela gostava de mulheres
era assim há muito tempo, entre eles, mas em segredo.
Casados mais de vinte anos, continuaram bons amigos.
Da palavra armário ocorreu-me arminho
pele de arminho macia, fofa e mimosa
e daquela loiraça muito gira e vistosa
que trocava a lama da floresta pela cama.
Veio a saber-se mais tarde que era agente da kgb
andava sempre perdida pelos melhores hotéis
e o seu destaque era o casaco pele de arminho.
que em tempos idos teria sido símbolo da pureza.
- Por baixo tinha uma bata acinzentada
e não usava nem tapa montinhos
nem calcinha stop, aqui tens de esperar
até eu dizer que está verde, podes avançar.
Belcanto. As muitas teorias da conspiração que por aí
abundam
pelo seu letal veneno acabarão por matar, por assassinar.
Não sejamos ingénuos, não tentem compreender o absurdo
não se deixem enganar pelo belcanto das serpentes.
Ovo de serpente com várias cabeças como um dragão
hidra-anão símbolo do mal que cresce sem parar
se não lhe cortarmos as cabeças uma a uma.
Não será trigo limpo farinha amparo, mas com coragem
vamos fazer das suas cabeças decepadas e queimadas
das cinzas o melhor estrume das nossas terras agrícolas.
Não penses em te suicidar! Mata as serpentes dos
belcantos!
- Pode ver-se a olho nu em miniatura o réptil já
concebido.
É só uma questão de tempo e de ocasião. Há sempre.
Do filme Ovo da serpente (1977) de Bergman.
Belcanto um restaurante ao lado da Ópera em Budapeste.
Era muito caro, mas comia-se e cantava-se bem.
Os empregados traziam cantando os pratos à mesa.
Caso para dizer viva a cultura da voz e do estômago.
2024 - 2025
Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta
continuarei a escrever. Clarice Lispector
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
Les yeux cherchant le ciel mais le cœur mis en terre
Meu bicho-da-seda, minha lagarta da amoreira
que se faz a mais bela das borboletas
e em ti representa a vida, o fim e o renascimento
o feio feito feitiço da beleza ou precisamente o contrário.
Da vida ontem da vida sempre, vida nunca e vida eterna
no baixo-relevo do teu copo abaixo e acima em tudo
na vertical, na horizontal e nas escadinhas do bairro
ou no tapete voador, de paraquedas para-quedistas
- Borlistas e carteiristas, vigaristas e feiticeiras...
Na autoestrada da chuva
nas curvas e contracurvas do vento
no cruzamento tardio da noite
na acalmia da tempestade
na estação para recomeço do novo dia
no apreço comovente na praça do nosso reencontro.
Nunca é tarde para tentar como se fosse a primeira vez
Nunca é tarde para voltar a errar se é a mando do
coração
Nunca é tarde para voltar ao local onde tudo começou
Nunca é tarde para chorar o passado e lamentar o futuro.
Para deixar o coração em terra e apanhar o avião
Levar consigo os olhos, o olhar do mundo nos teus
olhos
Cantar o passado e agradecer o futuro - a minha gratidão.
Do princípio ao fim do mundo
do século perdido, a algazarra
não abrandava e o apara-lápis
não parava de ser emprestado
por vezes trocado por um beijo.
Cães e gatas já estavam habituados à confusão
a alfazema e o alecrim não espantavam ninguém
nem o alfarrabista da esquina que não vendia
não se desfazia de nenhum dos seus melhores livros
- que faria se não os tivesse à mão para os desfolhar.
Os bailes do bairro acabaram et les lilas sont morts
os sindicatos perderam o pio e os trabalhadores
amoucharam
sentados no chão de pernas cruzadas à espera do
milagre
mas temos os jovens como ontem hoje também não se
calam
- é do futuro deles que escrevia e cantava o arménio
Aznavour.
Em Montmartre de Paris do antigamente
eram pobres, ele passava fome e ela posava nua
sentia-se em tudo a liberdade, decadência e liberdade
que bem precioso é viver democracia num país livre
sem perseguição - num país do decadente ocidente.
"La chair des femmes se nourrit de caresses comme
l'abeille de fleurs."
Anatole France
Aquarela e a tinta dos seus olhos
a doce conspiração das suas coxas
com a flanela nocturna dos seus braços
e a água morna dos seus lábios
quando os beijo para saciar a sede.
Cortiço mel das flores da sua serra
com a cobiça do fascínio maior
da planície lunar do seu olhar
com a cotovia ou confraria do amor
para não me esquecer e te esperar.
Cadeira onde tanta coisa boa ficou por fazer.
Bagageira onde ainda hoje a quero guardar.
Com a cerveja à frente pausadamente dizia
- Se é pecado se por comer pouco pão
me descuidar e beber mais que a conta
pior seria ter sido moço de cabeça no chão.
Se me distrair a olhar aquela ilha vistosa
ao lado sentada e pensar noutros tempos
e dar asas de avioneta à imaginação
é não temer a régua de castigo e educação.
Se é pecado cuidar e regar essa rosa
para lhe dar cor e não a deixar murchar
como é deixar-se envolver pelo seu aroma
e com ela se perder e em silêncio florescer.
Dizia Pedro Homem de Mello e Amália
tão bem cantava quando iam a Viana
- Os pecados têm vinte anos
e os remorsos têm oitenta -
O pecado (i)mortal mora na guloseima
e cresce no bom gosto e na certeza
do bem que faz pelo melhor que sabe.
Pelas vidas vividas que nos
traz de volta.
Prefácio
Na manhã desse dia lavei-me e vesti-me
arranjei-me, tratei da pele com mais cuidado
valia a pena, sabia bem por que o fazia.
Talvez tenha deixado a pele sem nenhuma defesa
mas sabia que a tua pele na minha a iria proteger.
Sabia que não seriam os teus beijos ardentes
os teus dedos e os lábios que a iriam maltratar.
Na manhã desse dia saí de cedo de casa
o coração estremecia e quase me saía do peito
estava ansiosa, sentia muito impaciência.
A única certeza que tenho é que vacilava de receio
se seria um sorriso, um abraço, um beijo forçado.
Felizmente perto de ti sempre perdia o medo
e vi abrir-se o céu, vivi a paixão do nosso amor.
Posfácio
Desatentos não se deram conta
que o seu tempo tinha passado
e se foi para não mais voltar.
A última pele parece que secou
e fez-se um deserto sem oásis
sem fonte nem alguma areia molhada.
O coração, a lenha dos corações
esse continuou a arder feito fogo
até se fazer cinza e depois vento.
Recordar a terra húmida da margem do rio.
Mundo que já não é o nosso e depois nada.
Para António Rosas
Esta noite a minha intenção é fazer um breve relance pelo
erotismo
e algumas liberdades da classe operária e dos seus
representantes
no Portugal da primavera marcelista antes do 25 de Abril
libertador.
- Aquele é o padrinho, não é o afilhado famoso dos
selfies
que foi primeiro comentador referência da televisão
e depois S.E. O Presidente da República Portuguesa…
Era o magusto e jeropiga de São Martinho na fábrica de
fiação
e houve quem se tenha acelerado mais do que devia
ultrapassou a barreira do pudor e alguma timidez recalcada.
Depois do almoço voltou-se ao trabalho, mas uma das
operárias
no corredor menos iluminado fez-lhe uma espera
inesperada
- Não gostas? É tudo para ti! Bata no chão blusa aberta sem
soutien.
- Porque se acabava duas três vezes por semana pedia-me fio
eu fazia-lhe sinal para subir ao terceiro andar à sala dos
rolos
onde nos enrolávamos ouvindo as máquinas a trabalhar.
Era ali para os lados do Martim Moniz quando as
fábricas
ainda funcionavam em pleno centro da cidade
- O prazer operário e não apenas ser explorado pelo patrão.
Tenho andado de volta revendo Almada Negreiros
com o Manifesto Anti-Dantas, 1915, e a Taca de chá*.
Recordando: As Banhistas, 1925, A Sesta, 1939,
O Retrato de Fernando Pessoa, 1954 ou o meu favorito
Art Déco, Estudo para uma Decoração de Teatro,1929.
*”Pela manhã vinham os visinhos em bicos dos pés espreitar
por entre os bambús,
e todos viram acocorada a gueisha abanando o morto com um
leque de marfim.”
Preâmbulo: Se Almada visse a pose e a roupa colada ao
corpo
- Uma segunda pele da jovem mulher por baixo da gabardine -
esta tarde na paragem do eléctrico... eu fiquei com a
sensação
que teria escrito rápido e certeiro, dizendo em voz
alta:
Eléctricos do mundo libertem-se! Sejam uns fora de
caixa
saltem dos carris, não aceitem a escravidão fixa dos
horários.
Parem, façam greve para que aprendam, chega de brincadeiras.
Com os condutores dos eléctricos não se brinca nem a
brincar.
Assim tinha tempo podia observar mais uns minutos
sem a ver desaparecer ou ter de se apressar, entrar a
correr
para a continuar a ter aquela visão mais algumas
paragens.
Não estava sozinho naquela observação de admiração.
Segundo preâmbulo: descobri Almada na minha adolescência.
O nosso primeiro encontro foi com o Manifesto
Anti-Dantas
declamado por Mário Viegas. Se fosse hoje, 110 anos
depois
estou convencido que o título seria: Manifesto
Anti-Ventura.
Ultimamente tenho jogado com a ideia-provocação de pensar
- Qual seria a sensata-opinião do wokismo sobre Almada?
Será que seria queimado na fogueira da inquisição wokista?
As pestanas postiças, falsas eram mais compridas
que a mais curta das pontes sueco-dinamarquesas
distante da tal Groenlândia que Trump quer anexar.
Os lábios carnudos, espalhafato a mais de tão inchados
quase caiam da boca e deixavam os dentes à mostra.
Os seios tão esticados que nem quatro mãos chegariam
para os cobrir e esconder, para proteger do mau olhado
que infelizmente do silicone já não havia nada a fazer.
Não teria mais de 20 anos e antes de se industrializar
em exageros e afins deve ter sido uma miúda jeitosa
mas agora está feito um super armazém de plástico.
Feita uma carroçaria que não precisa de bate-chapas
mecânico de amortecedores e assentos para fixar o dito.
Não há tempo para recriar a história sacana da palha
seca
se faz um bom colchão porque se tem de limpar a palha
que tem no rabo, rabo de palha na ponta da navalha.
O primo californiano veio à Hungria visitar a família.
É uma jóia de pessoa
e apesar de ali ter nascido há quase 70 anos e nunca aqui
ter vivido
sente-se húngaro e não esqueceu o idioma que aprendeu com os
pais.
Foi o primeiro, o idioma que se falava em casa, o
inglês aprendeu na rua
com as outras crianças e na escola, onde no
início sentiu algumas dificuldades.
O pai, Andor, órfão criado pelos tios, a convite de um
famoso professor húngaro
de quem era discípulo, em 1939 com 32 anos foi para os
Estados Unidos.
A mãe, Margit foi em 1950, depois de ter passado 5
anos num campo de refugiados
Na Áustria. Falava 8 idiomas e era a tradutora. Tinha vinda
da Jugoslávia
de uma região habitada sobretudo por húngaros e alemães,
perto da fronteira
da cidade universitária de Szeged, a Coimbra da Hungria,
cidade onde nasceu.
O pai era um abastado industrial têxtil, húngaro, mas com
nome alemão.
Com o aproximar do fim da guerra, o avanço dos
partisans de Tito
e do Exército Vermelho, tiveram de fugir, deixando tudo
para trás.
O pai era há muito um entusiasta, grande colecionador de
selos
selos que durante aqueles anos austríacos os ajudaram a
sobreviver.
Na América os húngaros casadoiros eram informados
quando chegava um barco da Europa com jovens húngaras.
Foi assim que Margit e Andor se conheceram e se
casaram
namorando entre Pasadena, Los Angeles e S. Francisco.
Após várias tentativas, nasceu Tibor e o médico disse
- Este bebé precisa da sua mãe, não tente nem mais uma
vez.
Esteve cá este fim-de-semana e é sempre muito bom estar com
ele.
Comove ver como se emociona a falar dos pais, das suas
raízes húngaras.
Está do outro lado do Atlântico e pensa como nós sobre
o mundo
sobre a América de hoje. Estivemos a ouvi-lo com
atenção
a aprender, por isso é primo californiano e não primo
americano.
Neste momento já está na Índia, vai até aos Himalaias.
A última vez que passou por Budapeste
ofereci-lhe um cachecol do Sporting
comprado quando do jogo com o Estoril (5-1).
Com ele enviou uma fotografia do
Kilimanjaro.
Continuação de boa viagem Tibor!
2024 - 2025