terça-feira, 8 de agosto de 2023


Legenda transformou-se em lenda

 
O que deve ser lido para a refeição 
saber melhor com vinho a acompanhar 
digestivos e a digestão sem complicar?
 
Nos tempos distantes que já lá vão 
nos conventos povoados de monges 
nem na hora das refeições se perdia tempo. 
Se hoje fosse assim, seria bom e bonito. 
 
Enquanto o povo todo do convento comia 
o monge que estava de faxina nesse dia
(não passava fome, antes já tinha comido) 
lia em alta voz a história de um mártir ou santo. 
 
As histórias contadas chamavam de legenda 
e com o andar da carruagem lenta do tempo 
a palavra legenda transformou-se em lenda. 
 
Nota importante. Estas lendas ou legendas 
e a minha pobre narrativa, nada têm a ver 
com as Lendas e Narrativas do meu muito 
ilustre conterrâneo Alexandre Herculano.



As Irmãs
 
Mote:
Na noite escura as mãos perdiam-se intactas
na última viagem pela cartografia dos segredos.
Da chuva fria perdiam-se aos poucos sozinhas
como as toutinegras em castelos assombrados.
 
As irmãs ainda estavam na barriga da mãe
quando combinaram nascer na mesma manhã.
Vieram ao mundo separadas por minutos.
Das três a última viveu apenas três dias.
 
Por milagre os pais sobreviveram ao holocausto
puderam levar o nome e a família para o futuro.
Mais um exemplo do triunfo da vida sobre a morte.
 
Aprenderam ao mesmo tempo a falar e a rir
andar e sonhar, a vestirem-se, a estudar e dançar.
Entraram no mesmo dia na escola e no liceu.
 
Era tanta a proximidade da semelhança
viajavam juntas pela vida e pela esperança
tanta agitação misturada com bonança
quando corriam e giravam com a dança.
 
As duas têm conversa que chega para vinte
e dizem o que tem a dizer sem olhar para trás.
Como paprikas picantes são pequenas mas rijas
fortes como a pimenta como se diz na Hungria.

Agora já não é assim a doença não dá tréguas
depois de tantos tratamentos e terapias
sabe melhor do que ninguém o que a espera.
 
Combinaram nascer no mesmo dia de julho
mas nunca perderam um segundo e ainda bem
nunca se sentaram para acertar o dia da partida.
 
Durante muito tempo não as consegui distinguir
o rosto era o mesmo, a voz e as gargalhadas.
As irmãs gêmeas durante vários anos viveram
em casas geminadas com um jardim comum
onde escrevo este texto num domingo de junho.  



Profissões altamente eficientes
 
Hoje, as primeiras palavras são para os deita-gatos 
da rua do antigamente, do tempo em que não havia 
tanta riqueza besuntada por cima da pele dos braços.
 
Aproveita e não percas tempo, deita a gata ensonada 
antes que se faça tarde e não tenhas de interromper 
o que estás a ler, a reinventar e a pensar em escrever.
 
Continua a viagem com os familiares amola-tesouras 
e facas de cozinha para cortar direitinho o toucinho.
Estou a falar quando havia de valorizar o que se tinha 
e de bem consertar para durar mais uma outra vida.
 
Sem esquecer o funileiro à janela com o funil na boca 
- Eu a aldrabar - para chamar a atenção das clientes. 
Aquela hora os homens estavam na terra ou na taberna.
Hoje seriam consideradas profissões altamente eficientes.



Como rimar a palavra cisterna
 
Foi então que num dia de complicação 
com um cano principal de água roto
de um sábado com outra programação 
- Que sorte que não era dentro de casa
que eu redescobri a cisterna de água lá fora 
que apenas tinha de ver duas vezes ao ano.
 
Depois do primeiro choque e segunda aflição
com tanta água a casa passaria a hidro-taberna 
comecei a inventar uma silenciosa canção
- Como e quando rimar a palavra cisterna 
que falasse da razão da minha frustração.
 
Se a água fosse do mar salgada e fraterna
poderia fazer aquacultura de peixe-lanterna  
juntar a migração externa à fecundação interna.
Mandar a negação humana para a lixeira eterna.  



O papagaio falador    

O papagaio falador  
da vizinha lá de cima  
ela própria que o diz  
é um grande inventor 
passa o tempo a inventar.   

Frases curtas à papagaio 
que nem ela própria sabe  
onde ele as foi buscar.  
- João põe aí a mão 
- Maria mostra a melancia 
- Manel enterra o pincel.   

O que vai ele declamar  
ó inventor de grandes penas 
quando ele esteja de regresso  
marinheiro da marinha mercante. 
Quando o vizinho Zé chegar? 



Guiador na mão 

Vinha no carro a divagar, a magicar palavras 
relacionadas com filhos, flores, com frutos 
associando e misturando metáforas e sentimentos 
que viessem do fundo da alma até à flor da pele.  

De tanto querer inventar os próximos passos 
e como estava atento e de guiador na mão 
esqueci metade das ideias que me ocorreram 
das que passaram à frente dos meus olhos.  

Ficou o grainho, pedacinhos do nosso pão
os teus lábios desenhados no guardanapo 
a tua água ardente, musa da minha poesia
- O teu sorriso que pernoita no meu coração.



Feito um palhaço rico

Feito um palhaço triste vestido rico
no jardim, o rei estava como um boi
a olhar o seu palácio a ser ocupado. 
 
O seu jogo do toca-e-foge com a morte 
tinha começado há muito mais tempo 
não era de agora, um novo passatempo. 
 
A dor serve-se fria em pequenas doses
e a solidão oferece-se com as saudades 
e a nossa ausência espalhadas pela rua.

Se de um calhau árido se inventa uma flor
porque não combina paixão com ilegalidade
se na vida o amor rima com clandestinidade?
 
Depois da tempestade é a vez da bonança 
a festa do reencontro, a intransigência do mar.
Contornar o passado e reconquistar a confiança. 

Com musas, moças e moçoilas lindas de museu
sem me armar em intelecto-camaleão de wikipédia. 
Sem ideias, que nova escrita posso eu inventar?



Um woke a mostrar o caminho  

Se acordado vai entender se acordar, se despertar
Um woke acordado vale mais que mil a não dormir
Guardião vigilante da narrativa, da linguagem liberdade 
Orgulho ou insulto woke, comece cedo, mas não exagere
 
Escolheu o teste da romã para pôr a imaginação à prova
Com um woke, dois wokes a mostrar por escrito o caminho.  
Antes de ir ao dentista coma maçã, antes de os lavar
Melhor em tetas ou em top-less que nem é, mas parece.
Tenha cuidado, com eles nunca se sabe qual é o pecado
Acordou ou não? Chega ou precisa de mais um café-texto? 
 
Diga bom dia com farinha de trigo mokambo farinha
O homem da regisconta, aquela máquina e narrativa.  
Detergente lava mais branco a cortina lençol e cortina
Com tudo muito asseado por debaixo da farda, da batina 
Esfrega e limpa na cozinha na sala e fora da cozinha 
Patamar não percebo patavina, da história patavina
 
Para te amar não precisa de saber o texto da missa
Se despertar, se levantar e rezar às cinco da matina
Aprender por si com uma só mão a tocar concertina  
Precisa de uma alma comum, te aceitar insubmissa 



Arranjar seja o que for

Arranja tudo o que quiseres e inventares
mas não arranjes lenha para te queimares.
Arranja coragem e sai do conforto da casa dos pais.
E não arranjes amanhã o que podes arranjar hoje.
 
Com tanta chuva e tanto piso molhado não esqueças 
manda arranjar os travões do carro antes que aconteça. 
Arranja as unhas dos pés e as madeixas das senhoras 
mas nada se compara à classe das sobrancelhas. 
 
Arranja um estafeta que leve o seu coração de nicotina 
e unhas de cigarro, à namorada florista prima afastada 
antes que aceite o ramo de flores da concorrência 
e ela o substitua por outro que nem conterrâneo é.
 
Arranjar seja o que for desde que possa praticar 
a língua que quer aprender para se poder fazer entender 
os colegas de trabalho e a comunicação com os clientes. 
Mas não arranjes amanhã o que podes arranjar hoje.

Sem comentários: