terça-feira, 8 de agosto de 2023


Dois vocábulos de sedução

 
Dois cafés servidos em chávenas bem aquecidas? 
Dois vocábulos de sedução disfarçados com trigo? 
Duas peças de fruta madura acabadas de colher? 
Dois sinónimos de vulcão a fingir-se adormecido? 
 
Para descobrir esses dois montinhos de encantar 
nem que para isso tenha de voltar ao secundário
tenha de voltar a aprender a calar antes de falar
escolher no diário as frases certas para te chamar.
 
Há tantos que gostariam de estar no meu lugar
por perto, sorridentes e prontos para a ajudar
que da rua enviei uma mensagem ao pai do verão
- Não tem de correr, ter pressa, pode-se atrasar.

O umbigo era apenas um pequeno ponto de carvão
uma miragem húmida no longo caudal do desejo
da queda de água que nos trazia o pão aquecido
- A mesa abundante nas margens da nossa paixão.



Começar o dia 

Amanheceu a minha vida no teu rosto. A. Ramos Rosa
 
Começar o dia com mel e com iogurte natural 
antes de se vestir e se arranjar para ir à praça.
Continuar a tarde com azeitonas e vinho tinto
e encerrar a noite comendo a fruta da sua cesta.
 
Depois da finura poética dos detalhes da jornada
a fantasia das palavras que decifram os seus olhos.
A escadaria que nos quer levar à colina encantada
como se um manto guardador de corpos e desejos.
 
Eu continuo nos meus pensamentos e ritual 
que com os anos ainda ganham mais sentido.
Sabes, é tão bom amar e poder pensar em ti.
A alegria de viajar a vida contigo não tem igual.



Ruas da primavera
 
Primeira versão 
Em frente as árvores vestem-se e florescem
as flores renascem, acordam e perfumam 
os pássaros despertam-nos em concerto. 
Cantam-nos a primavera logo manhã cedo.
 
Segunda versão  
Com motivos de manhãs, de frutos e flores
de lua em lua vão tecendo o tapete da noite
 
Olham-se na lembrança sabendo que não estão 
que a memória os faz sonhar, iludir a distância. 
- O seu olhar coloria a falésia ao fim da tarde. 
 
Bordam pacientes a sombra com a luz da ilusão
o mar intenso do luar espalhado pela cama aberta. 
Rematam com fio de lã a madrugada da inquietação. 
Luz, sombra e encanto vindas das ruas da primavera. 



Cinza contigo
 
Gostava de saber dos teus segredos.   
Partir do nada e imaginar uma história   
com o olhar intenso dos teus olhos   
onde fica sempre um pouco de mim  
da pele fina e lisa dos meus dedos.
 
Percorrer as praias do teu ventre
com o tempo que o amor pede.  
Descobrir devagar uma a uma   
todas as conchas do teu dorso  
as baías húmidas do teu corpo. 
 
Navegar a meio da noite sem farol   
para aí me perder nas tuas ondas  
nas areias douradas da tua praia   
por entre as tuas rochas molhadas   
onde as minhas mãos escorregam.   
 
Para devagar os olhos das tuas mãos 
passarem nos sítios que já conhecem    
e que me fazem tremer e estremecer.
No teu vulcão que eu sempre vi e senti   
quero ser lava, quero ser cinza contigo. 



Pelos caminhos de Platão 
 
Em silêncio, sentados na esplanada 
da estação à beira-mar guardada
selavam a sua última promessa.
 
Milagre como o do pão e do vinho 
se multiplicavam pelas vielas da fome 
e pela sede arenosa dos convidados. 
 
Em março ou em setembro da gratidão
e pelos caminhos - enquanto há vida
há esperança - de que falava Platão
na sua ceia de lindos sonhos construída. 
 
Através da janela aberta do meu coração
da imagem desenhada no espelho da saudade
tu eras o rio, o desfiladeiro mais fundo da paixão.
- O livro do nosso caminhar, da nossa liberdade. 



Terra da Ousadia
 
Pomba linda voando em linha curva pela terra da ousadia
Sem medo de ser raptada ou comida pela ave de rapina.
Tudo fazia para pousar na oliveira antiga da minha alma
Onde a maresia se demorava com os cabelos da poesia.
 
Deixar uma parte oculta para incentivar a imaginação
Com a sua sombra ao sol nascente a rua era toda dela. 
Se do feitiço fosse insecto não seria besouro ou gafanhoto
Elegante e graciosa seria joaninha, cigarra ou borboleta.
 
Pérola rara e valiosa que gostaria de receber como dádiva
Anunciar a descoberta da terra distante, a chegada ao porto
Com a traineira do vento na embarcação próxima do tempo.
Quem levará as minhas mãos até ti? A carta da minha franquia?  



A navegar o verbo amar

A noite chegava à hora certa ao telhado da casa
e trazia com ela as melhores promessas da rua.
Dizia, esquece o teu orgulho e o amor próprio
até que a terra me leve aqui estarei à tua espera.
 
Gostaria que soubesses de mim não de uma leitura
que esse escrito é de uma época em que era outra.
Vivia na fascinação do dia dos nossos encontros
e de quanto eu recebia com as aulas que me dava.
 
Por esse amor passou voluntária e apaixonada
de invejada influenciadora a súbdita do seu soberano.
A alma terá sempre segredos que a fazem mais bela
como a razão que não é a enciclopédia do coração.
 
Com ele aprendi quase tudo o que sei hoje
a viver cada momento e o meu corpo aceitar.
Escolheu o navio e foi comigo que se fez ao mar
começou a navegar e a conjugar o verbo amar. 



Peça da minha argila

Primeira versão 
Naqueles tempos de festa e fogo sem fim 
naquelas tardes ardentes de alimentar a paixão 
as bocas gulosas devoravam-se em carmim
e nem as migalhas do amor caiam no chão. 
 
Segunda versão 
Oleiro das palavras com as mãos e o pensamento
no barro original da erosão das rochas e das chuvas
o meu sonho é acomodar-me a ti, moldar-te a mim
como o barro se sabe acomodar à margem do rio.
  
Porque tu és o barro mais valioso da minha vida 
a peça de arte mais trabalhada da minha argila.
Enquanto isso dizia ao ouvido para nada se perder
- Contigo sinto-me renascer, cada dia mais mulher. 



Pedaço de cetim 

Primeira versão 
Entradas, terraços e pernas enfeitadas
as mãos, a descoberta das descobertas  
ou adormecida a deusa do mar azul
que lá encontrei levado pelo vento sul.

No milagre de mais uma tarde infinita
em cama e corpo e alma conquistada
um beijo de mel na água do chuveiro
antes do café sem açúcar e da despedida
até à próxima peregrinação ao santuário.
 
Segunda versão 
Praças seriam sublimes nos caminhos eternos
que alimentavam a poesia e saciavam o alecrim. 
Desejos que se moldavam no silêncio de barro
e afirmavam sentir que esse sorriso era para mim
no meigo convite do caudal liso do seu corpo.
 
As guloseimas servidas no memorável festim
dessa intensa fogueira sem princípio nem fim.
Tempo de memorizar as palavras do último beijo
mármore terno e fino, tecido de seda macio
ao qual deu nome de meu pedaço de cetim. 



Muito pão duro para amargar
 
Ainda há pela frente muita padaria para entrar 
muita farinha para amassar com fermento de padeiro 
há ainda muito sal para comeres com pão enxuto 
para um dia sonhares a esperança de lá chegar.

Tens ainda muita terra para correr e para vaguear
muita serra para subir e muito rio para atravessar 
muito esforço por fazer caro amigo para um dia 
te considerar ao nível do anterior que lá chegou. 
 
Admiração e deferência vestidas de amor e paixão 
ainda agora depois do dia fatal do tudo e do nada 
pudesse ele entrar pela sua porta ou pela sua janela 
professor primeiro para com a sua sombra a guardar.
 
Ainda tens muito pão que nem o diabo amassou 
muito pão duro para comer e por gosto amargar. 
é tempo perdido quereres mostrar o teu valor 
- Ao seu emérito patamar nunca vais lá chegar.

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