Para o livro "De mim ficam as Palavras"
Diz Rita, minha amada
na nossa Terra Santa
porque é o mundo
connosco tão injusto
tão duro com o nosso Amor?
Não somos Romeu nem Julieta
Páris e Helena, Tristão e Isolda
- nem a triste tristeza do isolamento.
Não somos Lara e Jivago na Rússia
nem Ilse ou Rick em Casablanca.
Somos tão só Tamar e Mahmoud
uma judia e um palestino sem nome.
Dois jovens que se conheceram
se apaixonaram irremediavelmente
e se deram perdidamente um ao outro.
Porque não podemos nós fazer
das pedras e do pó dos caminhos
campos de oliveiras, pomares de laranjeiras
e do barro construir e erguer a nossa casa
cuidar do nosso jardim e da nossa horta?
Minha israelita de mel insubmissa
que o nosso Amor nunca acabe
e eu possa viver contigo a vida inteira
criar filhos e depois ver os netos crescer.
Rita não te esqueças - o sonho nunca morre!
Tamara, doce doçura como a vitória impossível
a renúncia anunciada e a conquista temporária
eterna só no sonho mais improvável e mais
ingénuo.
- Castanha de caju e amêndoas recheadas para
despistar.
Para disfarçar a dor da melancolia triste
a tristeza que inunda e sufoca a alma
a hospedaria da monotonia mais ausente.
- Dizer adeus à inocência perdida.
Abram os olhos e olhem ao vosso redor
não é a abundância do leite, mel e frutos
a terra prometida por deus que vos espera.
- É tempo de acordar de vez minha flor.
"Entre a Rita e os meus olhos, uma espingarda"
Ele o Poeta, voz da resistência palestina, destacado
militante da OLP.
Ela alistou-se nas forças armadas de Israel, depois membro
da Mossad.
O abismo entre os dois jovens amantes não parou de
crescer.
O seu Amor não conseguiu sobreviver à realidade das suas
vidas.
Um dia os seus olhos afastaram-se e não se voltaram a ver.
Hostil a nossa cidade não nos recebeu de volta
e nos subúrbios não encontramos onde pernoitar
onde pudéssemos festejar-nos pela última
vez.
Eu poder dizer adeus aos teus olhos de mel
ao teu corpo e à tua alma de minha gata felina.
Ali não havia mais do que apatia.
O silêncio pesado da casa vazia
tinha tomado o sofá-cama da alegria
ignorando a pureza do nosso amor.
Custa escrever, mas nem a nossa buganvília
esperou por nós e secou antes da nossa melodia.
"Ah Rita! O que terá afastado os meus olhos dos teus."
Quand tu prépares ton petit-déjeuner, pense aux
autres.
(N'oublie
pas le grain aux colombes.)
Quand tu mènes tes guerres, pense aux autres.
(N'oublie pas ceux qui réclament la paix.)
Pensava no tempo ainda tão morno e tão cálido.
Vestia-se das minhas palavras e dos meus beijos
corria o fecho da saia comprida de linho.
Escondia os seus olhos de melaço profundo
por detrás das negras pestanas da noite.
Os lábios pintados com o seu sorriso agridoce
Entrevia um amanhã que era definitivo
um passado sem nós para não recordar.
Sem o nosso amor, sem a nossa alegria.
Sem nenhuma das nossas promessas.
Valeria a pena recomeçar a viver
tentar recriar o nosso mundo sonhado
feito de dedos lisos e de mãos abertas
de braços meigos e abraços apertados.
Feitos da nossa biografia perdida.
Quand tu comptes les étoiles pour dormir, pense aux autres.
(Certains n'ont pas le loisir de rêver.)
"Pense aux autres". Traduit de l’arabe (Palestine)
par Elias Sanbar
Descobri a poesia de Mahmoud Darwich
- sobretudo a poesia militante e de combate -
através de traduções para francês
nos fins dos anos oitenta do século passado.
Mais tarde com o filme-documentário
Write down,
I am an arab (2014)
conheci a vida do poeta e a história de amor
com a jovem judia Rita (Tamar Ben-Ami).
Este filme comoveu-me por acreditar
que o amor e a paz, a ilusão das palavras
podem ser mais fortes do que a guerra.
Essa comoção aumentou com a nossa visita
de sete dias a Israel, Palestina, Terra Santa.
Durante esses dias fiquei a saber que a paz
e o entendimento ali nunca serão alcançados
não haja ilusões. Não tenhamos ilusões.
Não quero nem podia morrer sem deixar escrito
sem duas ou três pinceladas do que senti e sinto.
Amor e paz - Ilusão das palavras
Budapeste, 28-30 de março
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta
continuarei a escrever. Clarice Lispector
Um cálice de aguardente para te trazer de volta
para me ajudar a guardar-te nos meus braços
para haver lenha quando as noites frias acabarem
e da distância as manhãs fechadas abrirem os olhos.
Recordar-te como te escondias feminina
como se no prédio fosses a nova inquilina
- Como quem corajosa subias ousada a colina.
Recordar-te como desaparecias na neblina
e os teus olhos de gata eram a lamparina
- Feita luz aparecias nua por detrás da cortina.
Um cálice de aguardente para te trazer de volta
tu que dizias que eu era o sal e a tua gasolina
para me ajudar a guardar-te nos meus braços
resina do meu pinhal sabor da doçura mais fina.
Por um prato de lentilhas
vende o pai e vende a mãe
vende o avô e vende a avó.
Vende o cão e vende o sapo.
Por um prato de lentilhas
vende os cornos e a alma
vende a ilusão da mentira
vende a própria mulher.
Hipoteca a vida da filha
prometida e pré-vendida
ainda antes de nascer
ainda antes de a fazer.
Aqui é um hábito muito antigo
que por significar abundância
é comum no primeiro dia do ano
comer-se um prato de lentilhas.
Abre os olhos carroça que a mula vai apressada
e para lá chegar eu tenho tempo de sobra.
Não tanto como Gaudi, o arquitecto de Barcelona
mas tempo suficiente para parar e para almoçar
com todos os vagares que a pança merece.
A conversa é sempre a mesma sempre condimentada
a puxar para o meio, abaixo do peito acima do ventre
se não falta nada para dar ao dente e sentar à mesa.
Se local novo olhar à volta ver que comem os outros
pedir para começar meia garrafa, um copo de vinho
tinto
um café e um digestivo para ajudar a digestão.
Para ajudar a constatar que as nossas barrigas
são o melhor estímulo para a satisfação ou
insatisfação
dos homens e das mulheres de ontem de hoje de sempre.
Por ser um bom exemplo disso não me vou esconder.
Uma taça de gelado italiano para gente gulosa
com bom gosto porque não há gelado melhor.
Uma taça de champanhe francês para gente boa
com paladar desenvolvido e dinheiro para gastar.
Uma taça de salada de fruta para amigos da horta
que trocam um doce de ovos pela natureza-viva
que sabem da importância da saúde e da comida.
Sabem se agora se cuidam, amanhã tem mais vida.
Sabem do grande irmão e outros filhos da puta
as rascas teorias da conspiração teórica e prática
do regresso sufocante orwelliano da mão-morta.
Mão a menos maçaneta vai bater a outra porta.
Uma caneca de cerveja alemã com salsichas
as linguiças de Nuremberg com couves roxas
e repetir a caneca, há coisas piores na vida.
Nem falar do incansável pedinte em mim
a pedinchar e a juntar bases de cerveja.
Lembras-te do sítio da primeira cerveja que bebeste comigo?
Não era bebida que estivesses habituada, valeu-me com
cerejas
da simpatia com que nos atendiam, como se metiam contigo.
Tínhamos vindo de uma festa para continuamos a
celebração.
As voltas que o mundo deu, as canecas que eu já bebi.
Como poderei eu esquecer os seus brincos fantasia
cerejas ou ginjas aos pares a caírem sobre os ombros
a realçar o seu pescoço alto que convidava a beijar.
2024 – 2025…
Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.
Fernando Pessoa (Ricardo Reis)
(Para continuar)
As últimas semanas serviram para se soltar
libertar-se da teia onde se tinha deixado enfiar.
Estava na varanda a fumar um cigarro e a pensar
não tinha de estar a olhar para o sentido das
palavras
para as segundas leituras das metáforas mais rudes
para as afirmações que pudessem cair mal ou magoar.
Pensar devia ser uma grande tontice, escrevê-lo ainda
mais
mas pela primeira vez na vida sentia-se nada discípulo
quer dizer não ter de estar a olhar para os efeitos
colaterais
das suas ideias, das suas dúvidas e das suas palavras.
Palavras escritas em papel, no telemóvel ou no computador.
Palavras, dúvidas ou distâncias que no final podem parar no lixo.
A imaginação tem coutos que não chegam
nem aos tornozelos maltratados do irmão.
- Com os ventos do contra clero tão fortes
quando coitados os bispos já não pensavam
no coito, no repolho repolhinho por comer.
Não podiam acoitar-se por dá aquela palha
com a freira mais tenrinha do convento
para isso até servia a macia do palheiro
não fosse o diabo tecê-las, acabar no degredo.
Como é costume o mundo mudou para pior
com essa gentalha logo a pensar que é gente.
Põem-se a inventar e a agitar os agitadores
de coutadas e das noitadas mal dormidas.
Esquecem-se que não faziam mais que andar
em grupo à procura dos ninhos de gambozinos.
Coito ou couto tão diferentes como o dia da noite
se não houver noites brancas e roxas madrugadas.
Para passar no exame de língua
pago a peso de ouro, de rara platina
andou semanas a estudar e praticar
o condicional do verbo bem fazer
ou fazer com muito prazer.
Passou com nota máxima e distinção
com uma resposta que até o professor
considerou ser um exemplo a seguir.
Sabia que se tivesses os olhos abertos
e olhasses para mim irias guardar na memória
o momento em que os meus lábios se fecharam.
Mais tarde quando visses uma fotografia desse dia
irias-te lembrar e também pensarias que ninguém
a não ser nós sabia o que a minha boca fazia.
Talvez soubesse,
mas parece que não sabia
que não devia arriscar
não devia dar um passo
maior do que a perna.
Mas queria tanto
dar um salto à canguru
que o máximo que conseguiu
foi dar um salto de caranguejo.
Para sua grande tristeza
nunca mais se voltaram a encontrar.
Meu Amor estou no aeroporto, acabei de chegar
não te disse nada porque quis fazer uma surpresa.
Sabia muito bem que não podia faltar, estar longe
estar ausente neste momento tão especial para ti.
Manda-me a morada para eu dizer ao taxista.
Acordou. Tinha adormecido no avião e teve pena
de acordar, do sonho não continuar, não se
realizar.
No dia seguinte acalentou a derradeira esperança
que na cidade da paixão o sonho fosse a
realidade.
Conclusão de quem anda há muitos anos por
aqui
e vê o que muitos outros não veem ou não querem ver.
- Não há cego maior do que aquele que o amor não deixa
ver
cego pela cegueira irracional e profunda da ilusão intelectual.
Estava a refazer o seu jogo de cintura
para de vez lhe chamar a atenção
e aos poucos ia perdendo a compostura
com ofertas de vida e asas de paixão.
Estava a rebentar pelas costuras
Com as costas e o resto à mostra
Com as coxas abertas à lua nova
prontas para encurtar as lonjuras.
Com ela e com os mistérios do amor
aconteceu esse encantamento único
cada vez que a via mais linda a achava
mais fascinante que no encontro anterior.
Para lá de todos os êxitos e alegrias
de fora e de longe não se via
o que sentia no mais fundo de si.
Mas um dia depois de muito caminhar
bastou um olhar para de vez mudar
a alma intacta do seu coração mais puro
que se fez maior para sonhar e descansar.
Como se fosse uma história de encantar
para à noite ser vivida e bem contada
encontrou quem sempre procurou
porque não perdeu a esperança que existia.
Por estar há muito tempo à sua espera
nem que fosse apenas para um toque de dedos
Um encontro, um dia que valesse a vida inteira.
Era o tempo das cigarras e das cerejas
tempo das bocas se colarem uma à outra
com a cola do néctar em flor das cerejeiras.
- As bocas se colarem sedentas e esfomeadas.
Tempo de deixar as línguas dançarem
ao som da música sensual dos desejos.
Tempo dos lábios amantes se degustarem
ao som da música doce do prazer e do licor.
O canto cigarra sedutor do acasalamento
com os lábios sedosos e o sabor do beijo
e com as almas abraçadas ao sentimento.
- O fascínio de tudo o que é o nosso amor.
Como novidade e prova de amor dizia
que devido ao seu gradual afastamento
após troca de mensagens tinham estado
à conversa ao telefone bastante tempo.
Conversa que entrou pela noite dentro.
Que teve na ponta da língua a vontade
de lhe falar do seu novo romance
mas que lhe tinha faltado a coragem
e ainda tinha pena de terem acabado.
- Queria guardar algo desse passado.
Tinha pensado em mudar de vida
ficar apenas com um novelo de fio
mas com este balde de água fria
ora toma, lá se foram os remorsos
pelo muito de errado que fazia.
Com ousadia e bom gosto não se importava de se mostrar
de exibicionista exibir-se e realçando o melhor que
tinha.
Com olhos de leigo digo, via-se que era muito e do melhor.
Segundo os livros não devia ser nenhuma Teresa de
Calcutá.
Por vezes surpreendia e excitava pela sua transparência
em sentido próprio e figurado, pela sua autenticidade.
Era tão natural e tão apelativa dos sentidos que os homens
a seguiam como se fossem abelhas de volta do mel mais doce.
As amigas gostariam de ser como ela, tinham-lhe
inveja.
Também eu teria muita dor de cotovelo se fosse sua amiga.
- Que bom seria ser seu amigo e conhecê-la mais de perto
para sem desafinar poder-lhe cantar a cancão do bandido.
2024… 2025….
Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta
continuarei a escrever. Clarice Lispector
(vão continuar)
Estavam sentados no eléctrico e de forma discreta
tocavam e trocavam de joelhos, de mãos e respiração
tão discretamente que tinha de estar atento.
Não me fazer notado e observar com atenção para captar
apreender toda a íntima magia daqueles momentos
um local público sem grandes pressas, em movimento.
De janelas escancaradas trocavam de olhos e sorrisos
despiam e vestiam a alma a rebentar de felicidade
não escondiam, mostravam tudo o que lhes ia no coração.
Tive pena que saíram antes de mim e não os pude seguir
ver como caminhavam, abraçados ou de mãos dadas
beijando-se junto ao castanheiro bravo
com tempo e com vagar ou correndo
para casa dele ou dela sem tempo de esperar.
No dia de hoje o tempo já fez muitas caras
mas nenhuma é a tua, o teu rosto e o teu sorriso
o rosto lindo que Deus te deu e a vida aperfeiçoou.
Assim começava a carta que tinha encontrado no chão
tinha apanhado o envelope e aberto sem ter autorização.
Li atento e fiquei a saber da intensidade dessa paixão
Pensei que aquela carta perdida podia ter sido escrita
por qualquer um de nós, qualquer um que sente
qualquer um que sonha, qualquer um que ama e é amado.
Será que hoje ainda se escrevem cartas de amor?
Será que não passa de conversa de idoso cansado?
- Todas as vidas se escreveram cartas e mensagens
poemas e metáforas de ternura e encantamento.
São tempos de dar ao chinelo
sem isso não temos sopa
e algum conduto na mesa
ouvia dizer à minha avó, à tia Olinda
já lá vão sessenta anos.
E agora? Está melhor, mas não para todos.
Vivemos tempos de dar ao tamanco
à sandália de cortiça, andar à chinelada.
Sapato novo e chinelo velho
sapato lindo e chinelo feio
rimar apenas para desconversar.
e dar ao pedal enquanto há força.
Pasteleira para pastar, para andar devagar
a pisar ovos, a pastelar, a fazer tempo
a fazer que faz, a correr para quê?
Pôr tudo em pratos limpos na pastelaria.
Acabar por dormir sentado e de pé
a dormir deitado, inquieto de olho aberto
deitado com um verdadeiro tesouro ao lado.
E é eléctrico, imagine-se se fosse a combustão
muito fogo iria acender, apagar e de novo atiçar
incendiar o restolho, fazer arder e repetir a dose.
Diz-se que foram metros e metros de coisa dentro
e nunca declinou mais um uma boleia, uma viagem.
Hoje como ontem, como depois de amanhã
não se deve meter o bedelho onde não se é chamado.
Confundir alhos com bugalhos e sarilhos com saralhos
carvalhos e churrascos na churrasqueira de sempre.
Corno, mas manso, dos mansos com classe e filantropia
- Um coração do tamanho do mundo à venda na mercearia.
Nesta casa não há nada que se coma?
Ou que se possa beber
para enganar o estômago?
Ajudar a despertar?
Não é preciso olhar muito para ver
uma bicicleta parada no meio da sala.
Estar aqui a entreter, a pedalar
para não perder o equilíbrio
para não tombar.
Com um olho no burro
e outro na barriga à mostra
e de repente acabar por cair
com pontaria em cima dela.
Dizia: a bicicleta que ele usava era eu.
Tângera é uma laranja mais pequena
e ancora é uma tangerina maior
explicava com ar de quem sabe
por ter laranjeiras no pomar da família.
Ir à loja do bairro ou ao supermercado
era como encontrar-se com o amante
com grande arcaboiço e grande espingarda.
- Com ele sexo era mesmo para recordar.
Criticado por ter mais olhos que barriga
porque cada gaveta tinha fruta diferente
e na frutaria as prateleiras estavam vazias.
Era o caso de a procura ser maior que a oferta.
Marroquina clementina ou laranja de sangue
a doce acidez do prazer pago a prestações
de rendas pretas rendinhas vermelhas fetiche.
Com a utilização da melhor das tradições.
Não é o pão nosso de cada dia
nem dia ou noite de cada pão.
Acredita, se fores optimista
o café sabe-te muito melhor.
A blusa fica mais cremosa e mais pão
se não usar detergente, mas sabão.
Os montinhos ficam mais redondinhos
e os moranguinhos mais pontiagudos.
Quem entra no hipermercado sabe ao que vai
mas quem entra na estação não sabe quando sai.
É o que acontece quando tens um país
com autoestradas a mais e ferrovias a menos.
Em que homem ou mulher pensei?
De que país estarei eu a falar?
Dou um rebuçado a quem adivinhar
e dois a quem não se enganar.
Se o dia promete pouco, não te rales
Se o dia está a dar, deixa-o andar
Se o dia precisa de ti, faz um biscate
Se o dia não ata nem desata, dorme.
Se tens o carro avariado, vai a pé
Se a política te irrita, desliga a televisão
Se já não mandas nada, calça as pantufas
Se o teu clube te põe triste, muda de mulher.
Se a gata não mia, dá-lhe uma corneta
Se a porta não abre, entra pela janela
Se te esqueceste de beijar, aprende línguas
Se não tens emprego, vai para o estrangeiro.
Quando a loucura dos autocratas com as suas
maiorias
tomar conta do mundo e arredores e já não houver
humor
ou ironia que nos valha e nos entretenha, logo se
vê!
Clito, o negro no campo inclusivo da batalha
na promoção e arte de combater com mestria
deixava magia, razão do texto desta geografia
deixava no ar o fascínio de conquista da poesia.
Pelo grito e pelo aroma da cor, o teu clito é de ouro
mas o dela vale mais porque vem das terras raras.
Olhem o meu é negro, feito de plástico reciclado
e foi comprado em promoção na loja das bugigangas.
Clito, o Negro (375 a.C. - 328 a.C.) foi um destacado
militar do exército de Alexandre, o Grande e salvou a vida deste na grande
Batalha do Grânico (334 a.C). Seis anos mais tarde, durante um banquete em
Samarcanda e após violenta discussão, Clito foi morto pelo amigo e venerado
Alexandre (Wikipédia)
Se a memória não me deixa ficar mal
quando criança conhecia uma Teodora
era uma colega na escola primária
e coitada da menina era gozada por todos
- Olha, olha a Teodora, tanto ri como chora.
Era uma menina muito envergonhada
com sardas e cabelo comprido claro
e provavelmente tornou-se uma bela moça.
Estudou direito, fez-se doutora, advogada.
A outra, Teodora de Constantinopla
também conhecida como Teodora do bordel
foi actriz e dançarina, prostituta e comediante.
Imperatriz e esposa do imperador Justino.
Tinha talento, era formosa e inteligente
com bom senso para ela nada era urgente
mas não chegou para convencer muita gente.
Que o digam as leituras dos escritos que ficaram
da época.
Se não tivesse visitado Istambul e ter-me preparado para a
visita
teria perdido alguns detalhes que a tornaram muito mais
rica.
Digam lá se a curiosidade e o saber ocupam lugar?
2024… 2025…
"Perguntei-lhe qual era o nome do gato e ele
respondeu-me que os gatos
não têm nome porque não são cristãos como os cães" Umberto
Eco
Caro Mestre, não leve a mal a intromissão
mas do pouco que Deus me acrescentou
sei que não é por aí que o gato vai às filhoses.
Estão em grande harmonia e não há jantar sem cão.
A não ser que da arranhadela o santo ficou uma fera
e nem a intervenção de Pedro apaziguou a discussão.
Ainda por cima a internet esteve todo o dia de baixa
e não passou a mensagem do gato a pedir perdão.
Boa eucaristia senhor prior e bom jantar de
celebração.
Batize lá o gato no domingo e esqueça a ofensa.
Vai ser um bom cristão vai caçar os ratos na igreja.
O vinho não vai sumir da sacristia. Tenha um bom serão.
“O amor é mais sábio do que a sabedoria” Umberto Eco
Cada história de amor nasce para não morrer
não é preciso ser sábio para inventar uma melhor.
O amor é feito de paciência e arte da transpiração
é feito da sabedoria dos que nasceram para viver.
Cada história de amor ou sua fulminante negação
tem a sua própria época e prioridades a condizer.
Quando as tuas já são outras eu aceito dar o
lugar.
Amigo não atrasa amigo se não contar para a equação.
Cada história de amor custa mais decorar do que despir
e custa mais vestir do que deixar a cama arrefecer
mas por muitos esforços que faça não vou conseguir
despir-me da pele que Deus escolheu para comigo trazer.
Esta frase aprendi há pouco de uns estrangeiros
- Antes de criticares põem-te nos meus sapatos.
Eu não posso, não consigo ser quem não sou
- Ouço a minha voz e sei que por aí eu não vou.
"Deus está morto, a arte deixou de existir, a
história
chegou ao fim e eu próprio não me sinto bem" Umberto
Eco
Contra a gripe, a febre e a constipação
contra o mau olhado da desilusão
não duvide não perca mais tempo.
Abra uma garrafa de vinho tinto.
Beba copo a copo com moderação
e não se esqueça desta afirmação.
Não um vinho qualquer meio martelado
um vinho alentejano bem encorpado
como promoção do melhor medicamento.
Como tributo à terra, à gente e à produção.
Beba copo a copo com devoção
e não se esqueça desta opinião.
Caro leitor que nunca me vai ler
até pode não acreditar no que digo
mas há muitos anos que não tomo
comprimidos para as dores de cabeça.
Em primeiro lugar porque não me dói
e se for o caso muito raro do contrário
para começar bebo meio copo de vinho.
Beba com devoção e beba com o coração.
"O que é a vida senão a sombra de um sonho
fugaz?" Umberto Eco
A minha vida? Eu sempre fui uma boa boca
e me contentei com o que vinha para a mesa.
Se a refeição fosse farta como acontecia contigo
aproveitava o repasto e tirava a barriga de misérias.
Se não fosse o caso, era paciente e não me queixava.
Os milagres das entradas das nossas sobremesas
de tão divinos e tão humanos, eram o paraíso na terra
eram momentos de amor que nos tornavam imortais.
Eram milagres, não feitos por Deus, mas por nós.
Lembras-te quando foi?
Foi numa terça-feira
a nossa primeira festa
a nossa primeira cama.
O nosso primeiro poema
o primeiro dia da nossa vida.
Foi numa terça-feira de março.
"O diabo não é o príncipe da matéria, o diabo é a
arrogância do espírito,
a fé sem sorriso, a verdade nunca tocada pela dúvida" Umberto
Eco
Quando a cegueira colectiva da maioria já for credo e
religião obrigatória
não se respeitar a opinião da agora minoria que pode ser
apenas temporária.
Quando a maioria dos eleitores acreditarem num futuro fácil
e barato
levados pelas respostas do populismo sabe tudo e discurso
simplificado.
Acredita que não estás sozinho que estás bem
acompanhado
que são muitos que pensam como tu, não te sintas abandonado.
Muitos que sabem pela história que contra a indigna
submissão
temos ao alcance da mão e da alma a nossa infinita insubmissão.
Temos de enfrentar o diabo mentiroso de uma mentira maior.
Temos de derrubar o falso profeta de um infame deus menor.
"Fomos suficientemente inteligentes para
transformar
uma lista de roupa suja em poesia" Umberto Eco
Bom dia. Com o tempo e a observar como faziam os mais
velhos
- mãe estava longe e a vida era aqui - descobri que era mais
prático
lavar a roupa ao fim do dia, todos os dias no lavatório
da sala de banho.
e punha-a pendurada a secar no radiador do quarto da
residência.
Na manhã seguinte estava enxuta. Eram mais complicadas
as camisas
- felizmente na época usava sobretudo t-shirts - e pior as
calças
que tinham de ser passadas a ferro, mas como eram de
ganga
se não fossem centrifugadas e ficassem bem esticadas
mesmo sem ferro de engomar, estavam prontas a serem usadas.
Foram sete semestres na residência estudantil da
universidade.
Tantas recordações. Tantas histórias. Tão pouca roupa suja
para lavar.
Tanta roupa lavada para amarrotar, cheirar e amar. Tanta
poesia.
Abençoada juventude. Obrigado Ráday kollégium. Obrigado
Budapeste.
"As redes sociais dão a legiões de idiotas o direito de
falar, quando antes só falavam num bar depois de um copo de vinho, sem
prejudicar a comunidade... mas agora têm o mesmo direito de falar como um
Prémio Nobel. É a invasão dos idiotas.” Umberto Eco
Estamos cercados por muita raiva de cão
muito presente por ser apanhado do chão.
Estamos perdidos com tanta merda seca
tanta camisa de vénus suja e esburacada.
Tanta trampa, rabo de gente em tampo de sanita
para quê tanto lavatório se nem as mãos lavam.
Não lhes chames ralo, sifão nem venerável válvula
ou vibrador vibração que dá gozo à vulnerável vulva.
Quando estava a falar parecia que estava a dormir
e a dormir parecia que estava a tossir e a vomitar
a ressonar grosso como uma osga ou uma lagartixa.
Um safado a comer salsicha de barba, bigode e barbicha.
Que seria se fossem para o diabo que vos carregue
e deixassem o Nobel e o futuro para quem o merece.
Budapeste, 2025
Pedro Assis Coimbra
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
Não há amor que
resista a vinte e quatro horas de filosofia
Camilo Castelo Branco
E foi assim que
envelheci a pensar em ti.
Envelheci em
silêncio e a reduzir a lonjura
a
distância da cidade portuária mais próxima
tão próxima que
não cabia no meu pensamento.
Assim como quem
não acredita no destino
inquieto sem
dar conta das mudanças do vento
com o mais velho
e mais escuro caudal do tempo
fui aguadeiro camaleão
a desaguar no rio da vida.
Era tarde para sair
e mudar de embarcação
e cedo para aproveitar
a substância da baixa-mar.
Assim como um
estivador abraçado ao seu cais
sem grandes
pressas envelheci a pensar em ti.
Sem estar vacinado
cresci a sonhar contigo
como se fosses
uma madrugada madrinha
ou uma bela
mulher que sai à rua para se mostrar
querer-nos
convencer que é ela a nossa liberdade.
Cresci contigo
porque nasci no tempo da lua cheia
quando a manhã
se atrasava e o sonho era gratuito.
Não sabia como
te beijar, mas coragem não me faltava
sentia que um
amor como o nosso teria de dar certo.
Sem hesitar avancei
e ainda hoje sigo em frente contigo
pelas avenidas
que nos ajudam a chegar ao nosso abrigo.
Partilhando as
ideias e os sonhos, escutando os outros
porque sabemos
que a liberdade tem valor se for de todos.
Foi por ti que
sonhei viajar sozinho
Foi por ti que
saí do meu país
Foi por ti que
me fiz ao caminho
Só por ti é que
fui árvore e fui raiz.
Foi por ti que
viajei longe para te trazer até mim
Com violinos
nas asas e guitarras em cada mão.
No dia da
chegada organizar um grande festim
Onde juntasse
num só o teu e o meu coração.
Foi por ti que
sonhei e foi por ti que viajei
Para casar
contigo perante a praça e a lei.
Foi para te
esquecer que sai de casa a correr
foi para não te
lembrar que sai para espairecer
cai em mim e
pensei o que vai ser de mim sem ti
voltei a casa a
correr com medo de te perder.
Ainda lá
estavas em roupão em frente do monitor
preparei à
pressa um café, mas como me esqueci
e não aqueci as
chávenas como costumas fazer
levei na
bandeja para ser bebido antes de arrefecer.
Foi por me
lembrar o quanto eu gosto de ti
e que possa de
novo sentar-me na poltrona
foi para te
recordar o quanto eu gostei de ti
é que a culpa
morre casada, viúva ou solteirona.
Emagreci a
sonhar contigo
Engordei a
olhar-te de longe
Emagreci ao
ver-te de perto
Infeliz por não
saber o teu nome.
Emagreci porque
estraguei tudo
Emagreci por me
armar em esperto
Engordei porque
ao abrir a boca fechada
Porra sem
querer dei cabo do resto.
Deixei de comer
ao sentir-te tão perto
Deixei de beber
ao ver-te ao meu lado
Deixei má sorte
de o fazer por descuido
Por um erro
criança de folha de cálculo.
Emagreci porque
esqueci o seu nome
Será que ela se
chamava Clarisse
Quem disse que
a formiga tem catarro
Meter-me onde
nunca fui chamado.
Engordei porque
era um esforçado comilão
Engordei porque
era um rapaz brincalhão
Porque brinquei
muito contigo à apanhada
Às escondidas e
também à cabra-cega.
Emagreci por
não ter vergonha na cara
Engordei porque
nada me vem à cabeça
Emagreci porque
esqueci o que queria rimar.
Por
não ter um buraco onde me possa enfiar.
A descer as
escadas deslizei a correr pelo corrimão
A descer as
escadas faltou pouco para um grande trambolhão
A subir as
escadas tropecei e bati com o nariz nos degraus
Dá muito
trabalho subir escadas sem bater com ele no chão.
A subir as
escadas tive uma vertigem do pior em grau superior
como se nunca
tivesse visto uma moça bonita à porta do alçapão
foi um
trambolho trampolim da atração tramada pelo trambolhão
o que me valeu
foram os dois paus que tinha trazido do Equador.
A descer as
escadas esqueci-me que podia ter apanhado o avião
não caia nem
tropeçava e bastava-me agarrar-me ao corrimão
a descer as
escadas evitei a distração do tombo da nação.
A subir as escadas não tropecei, mas levei um empurrão.
Disserta sem descanso filosofia trinta e seis horas por dia
disserta sem
desconto cortesia e outros textos da ventania.
Enquanto pões a
máquina de lavar roupa a trabalhar
não te esqueças
da vibração que ela sente por te amar.
Do ranger das
dobradiças da fechadura a precisar de óleo
E da chave que
de não ser usada está cheia de ferrugem
Se a erva está
murcha a sacanice faz muito bem à pele
à penugem sagrada
no espaço vadio da vadiagem.
Disserta sem
desconto as tuas aulas de filosofia
Disserta sem
descanso, noite e dia e a bom preço
mas
não sejas cara de pau, faz-te às vezes de malandro
moleiro a vender o teu pão à freguesa mais madrugadora.
Budapeste, 2025
Para o livro
“De mim ficam as Palavras”
Sob o meu coração
e na profundidade da minha cintura
está a crescer uma rosa vermelha
Forough Farrokhzad (1934 - 1967)
Ele esteve cá hoje?
Sim, tu sabes que sim.
Fizeram amor? Sim.
Fizemos como sempre fazemos.
Olhou-a nos olhos e o convite era tão forte.
- Anda, é a nossa vez, vamos lá para cima.
Nesses momentos era outro, transformava-se.
Nada se comparava àquela introdução.
Amaram-se sofregamente, gulosamente
como se depois não houvesse amanhã.
Chegou a dizer que nada o excitava mais
do que imaginar que sua amada mulher
ia para a cama, deitava-se mais vezes
com o seu melhor amigo do que com ele.
Era bom ter com quem partilhar o prazer.
As noites frias eram fogo, fogueiras a arder.
Havia anos em que o meu amante
fazia de carro mil e oitocentos quilómetros.
- Conduzia à vez com o meu marido -
para vir matar as saudades que tinha de mim.
Vinha porque sabia que seria bem recebido
como um dos melhores amigos de toda a família
ao jantar seria o primeiro a ser servido.
Sabia que eu também estava à sua espera.
O amor se verdadeiro é entrega.
Ele fazia todos aqueles quilómetros
para passar comigo duas ou três noites
e fazer do nosso verão um rio de paixão.
Depois despedia-se com o coração cheio
voltava feliz contando os dias que faltavam
para o meu regresso e o nosso reencontro.
Para o mundo que era o nosso a três partilhado.
Para continuar os estudos deixei a aldeia e fui para a
cidade
para um quarto alugado com uma prima da minha idade.
Vivia pertinho do liceu e de uns velhos amigos dos meus
pais
de quem, em toda a minha meninice, apenas ouvi dizer bem
do prestígio, ele advogado e ela médica, um exemplo a
seguir.
As poucas vezes que os vi guardei a imagem de um par
perfeito
de um casal muito bonito e alegre, de gente culta e simples.
Como criança pensei "quando for grande quero ser como
eles".
Várias vezes me convidaram a lanchar em casa deles
e depois para ir estudar e fazer os trabalhos de casa
porque lá estava mais sossegada e concentrada.
Estudava primeiro na cozinha e depois na biblioteca.
Foi ali que os meus jovens pensamentos voaram, sentia-me atraída
pelos seus cabelos grisalhos, o sorriso aberto, a sua voz
melodiosa.
O sentimento crescia em mim, em demasia para a tenra idade
e apesar de não ter ideia nem noção do que poderia vir
a seguir
na minha fértil imaginação via que os meus sonhos eram apreciados.
Estava escrito, as coisas aconteceram como tinham de
acontecer.
No divã, entre livros, deixei de ser menina e tornei-me uma mulher.
Apesar dos seus remorsos, ali ou no meu quarto continuamos
a fazer.
Foi com ele e as nossas tardes, que depois da dor descobri o
prazer.
Por falta de cuidado, como quase sempre acontece, fomos
apanhados
e para evitar males maiores eu tive de mudar de terra, mudar
de ares
mas o escândalo foi elegantemente abafado. Foi por isso que
eu emigrei.
Nos primeiros meses da minha emigração o meu trabalho
foi tomar conta de uma menina pequenina enquanto os
pais
trabalhavam, saíam ou estavam em casa, mas sem tempo
para se ocuparem com a filha. Eram os dois arquitectos
e viviam numa das melhores zonas dos subúrbios da
capital.
Eu era uma miúda acabada de chegar, uma moça ingénua
mas estava cheia de vontade de me integrar e de aprender
a ser moderna, eu que vinha de um meio
tão pequeno
e tão atrasado em relação àquela
cidade tão cosmopolita.
Sentia-me deslocada e insegura, mas nunca tive jeito
para baixar a cabeça, esconder os olhos e talvez
por isso
o senhor arquitecto começou a olhar-me com mais
atenção
e com os cuidados devidos, os olhos foram conversando.
O meu quarto era no rés do chão ao lado da sala do duche
e numa manhã enganou-se na porta e entrou no meu quarto.
Fechou-a atrás de si, pôs o dedo na boca e sorriu-me
cúmplice
como quem diz, não digas nada, não faço mal, não tenhas
medo.
Aproximou-se da minha cama e começou a acariciar-me
a beijar-me o cabelo, a boca, a descer pela minha pele
com os dedos, com as mãos e eu sem saber o que fazer.
Estava toda arrepiada e excitada, gostava, mas tinha medo
com um sentimento estranho do que estava a acontecer comigo.
Nem me perguntou se podia, mas recebi-o com um suspiro
contido.
Fez-me sinal que não podia gritar ou gemer em voz alta
para não acordar a esposa, haver confusão e ficar
zangada.
E foi assim durante semanas. Eram poucas as manhãs
que em silêncio não viesse tomar o duche ao meu quarto.
Com o que sei hoje estou convencida que a mulher
sabia
o incentivava a continuar e talvez desejasse
participar
- Teria sido aquilo que os franceses chamam ménage à trois
mas acabou por não dar esse passo, não me quiseram
assustar.
Nesse verão depois do regresso das férias mudei de trabalho.
Estava à experiência a trabalhar num
restaurante da periferia
e como estava no país há pouco tempo ainda não sabia
que aos domingos era menor a frequência dos
autocarros.
Pelo próximo tinha de esperar mais de uma hora e pensei
que o melhor seria pôr-me à boleia, talvez tivesse
sorte.
Ao fim de um tempo parou um carro,
um senhor de certa idade
que me perguntou para onde é que eu queria ir, o meu
destino.
Depois de ouvir disse que me levava, mas antes
tinha de parar na casa
que estava a renovar, mas que não me preocupasse, chegava a
tempo.
Não me quero fazer de coitadinha ou para mim tanto faz
mas a verdade é que acabamos com ele em cima de mim
numa sala com as paredes pintadas e as janelas
acabadas
com as nossas roupas amarrotadas a servirem de colchão.
Já mais limpos e arranjados levou-me ao trabalho
e quando acabei o meu turno ele estava à minha espera.
Nos dias, meses seguintes continuamos a encontrar-nos
a viver a vida, a levar-me a locais onde nunca imaginei
entrar.
Ele era um homem charmoso com muitos amigos importantes
como pude constatar, com hábitos especiais e surpreendentes
a forma como conviviam entre si, elas e eles e quem os
tivesse a ver
- Clubes muito discretos e reservados onde tudo podia
acontecer.
Com a minha inexperiência podia ter caído fundo no
poço
na tentação do deslumbramento, da ilusão do mundo fácil
mas foi ele que depois de me mostrar como seu novo troféu
me protegeu, não me deixou submergir, não me deixou afundar.
No fim, para me legalizar até se ofereceu para
casar comigo.
Estou-lhe grata, mas ainda hoje sinto que fui abusada por
ele.
Os versos e os reversos da minha vida e outras histórias por contar.
Professor de matemática de liceu era um pouco mais novo que
eu
e foi o homem mais bem-posto e mais bonito com quem estive.
Na gaveta das minhas memórias, o começo da nossa
história
foi dos momentos mais ardentes e apaixonantes da minha vida.
Estava a atender um cliente e senti que fora alguém me observava
olhei de forma discreta para ver quem era, mas ele já tinha
entrado.
Como nesse dia estava sozinha, esperou a vez de ser
atendido.
- Desculpe, mas eu não quero comprar nada, entrei para lhe
dizer
já me esqueci quando vi uma senhora tão formosa e tão
elegante.
Só por si valeu a pena ter parado nesta pequena e delicada
cidade.
A paixão não foi longa, mas aquele belo-homem bem cheiroso
na estratégia triunfante da sedução era um verdadeiro
campeão.
Quando a magia passou, custou aceitar o fim do romance da
loja
mas não havia volta a dar e fui em frente, fui eu que tomei
a decisão
de acabar e não aparecer no nosso discreto hotel à saída da
cidade.
Fiquei num parque de estacionamento a fazer tempo de ir para
casa.
Ainda me telefonou a perguntar e a pedir explicações
mas ao saber a razão ficou tão ferido na sua autoestima
que nem amigos ficamos. Nunca mais soube nada dele.
Com a minha melhor amiga, ela divorciada e livre e eu
casada
e com filhos, em vários anos no verão passamos uns dias
juntas.
Apenas as duas como se eu fosse solteira e sem prole como
ela.
Uma vez no país vizinho o nosso alojamento era uma cama de
casal.
Durante a noite de forma espontânea como fazia com o meu
marido
encostei-me e ela tímida acariciou-me o peito e os seios, a
barriga
beijou-me suavemente o pescoço como se soubesse que era o
mimo
das ternuras que eu mais adorava e excitava. A maravilha
aconteceu.
Nesse dia, nas manhãs e noites que vieram. Umas férias de
loucura.
Nos anos seguintes continuamos as escapadinhas, a paixão secreta
de duas amigas apaixonadas, mas eu continuei a preferir
homens
e a nossa linda aventura acabou. A amizade também. Não
resistiu.
Demorei muito tempo a esquecê-la e anda hoje
penso nela.
A mais ousada das minhas histórias de amor
a mais bonita foi com um jovem universitário
quase quinze anos mais novo do que eu.
Começou com o seu lindo olhar fixo em mim
e como durou tanto tempo, quando findou
com o que sabia, parecia ter a minha idade.
O jogo de o seduzir de permitir os seus avanços
de desmontar e saltar as barreiras físicas e morais
dos preconceitos da idade e porque conhecia a família
de o termos feito à frente de todos sem ninguém notar
e com a arte mais discreta que se possa imaginar.
Ali, em que todos sabiam de todos e tudo se sabia
foi o maior desafio-paixão que me aconteceu na
vida.
Foi o jogo mais maravilhoso que jogadora joguei
as melhores jogadas de sedução, de sexo e desejo.
A banda filarmónica a tocar, as pessoas a dançar
a algazarra das crianças e da juventude e nós ali
perto
perdidos e achados na festa, no esplendor do prazer.
Por muitos anos que viva nunca me vou esquecer
nem nunca deixarei de estar grata ao meu marido
que entrava connosco e subia para o outro quarto
cedia a sua cama e entregava a esposa à paixão
à energia inesgotável do seu jovem amante.
Ainda hoje me escreve "Lembras-te
de vez em quando, ainda te lembras de mim?"
Tonto, como te poderia eu esquecer!
Estava depois dos cinquenta e sentia-me bem, achava-me
bonita
não tinha pressa de ser idosa antes de tempo quando solidária
a vida me ofereceu mais uma prenda, uma nova
oportunidade.
Deu-me a conhecer um homem com um H grande.
Era mais velho uns bons anos, mas com uma
pedalada...
- Se fosse ciclismo seria o portador do maillot jaune
du Tour.
Os nossos encontros eram como se fossem cronometrados
tínhamos três horas à disposição até o meu marido
voltar.
Três que me sabiam a trinta e resgatavam todos os meus sonhos
que me sabiam a pouco tal a intensidade, o ritmo do seu
pedalar.
Se aprendi tanto com ele na cama, que dizer da sua sabedoria?
- Abriu-me a cabeça como ninguém antes dele tinha
feito.
Como ele me transmitiu conhecimento, cultura e
filosofia!
Eu tinha a nítida sensação de que ele sabia tudo e de
tudo.
O meu mestre na cama, na cultura e no meu conhecimento.
Numa das nossas tardes de amor por uns ciúmes
infundados
decidiu castigar-me, deixou-me pendurada e não apareceu.
Eu estava à sua espera com a minha lingerie mais ousada
de mulher que sabe o que quer, que o iria excitar ainda
mais.
Sem o meu mestre a casa ficou vazia em tarde vestida de
solidão.
Devido ao meu orgulho ferido não nos voltamos a
encontrar.
Ficaram as saudades e o seu lugar reservado no meu
coração.
Se um dia de surpresa bater à minha porta vou deixá-lo
entrar.
Há muito que sou uma mulher casada com um homem maravilhoso
- O meu ombro perfeito, meu defensor primeiro,
o meu porto de abrigo.
- Motor do meu elevador social, país de acolhimento,
meu melhor amigo.
Meigo e cuidadoso, ternurento e tolerante, é o meu
eterno apaixonado.
Durante dez anos tive uma vida partilhada: à tarde
era do meu amante
de noite e madrugada era do meu marido. Para
mim foi natural viver assim.
Muito pouca gente soube desse filme da minha vida e se
souberam
Foi porque lhes disse ou eram vizinhos e todos os dias viam
o carro ali parado.
Recordo como se fosse hoje, a primeira vez com os dois
em casa
à hora de deitar. Estava na cama e o meu marido
disse-me
- Não queres ir para cima ter com ele?
- Gostaria, mas tu não te importas?
- Sabes bem que não, que para mim o que conta é a tua
felicidade.
Foi talvez a noite mais intensa que passei com ele, o meu amante.
O amor a três acabou há muito tempo, mas a amizade ficou
e ainda hoje
Foi amor à primeira vista, ao primeiro, segundo e terceiro
olhar.
A história de amor e da paixão pelo homem da minha
vida
conta-se num episódio uma frase que está presente na
minha alma
como se ele tivesse dito esta manhã depois do
nosso primeiro beijo.
Eram as primeiras semanas, na época que quem namorou
nunca esquece
quando o amor pede cada momento, todos os
momentos, todos os dias
mas ele pelo seu trabalho teve de se ausentar durante quase
duas semanas.
Quando regressou segurando-me as mãos e olhando-me
como só ele sabe
disse-me: Meu Deus já me tinha esquecido como és bela,
deslumbrante!
Ainda hoje fico comovida e vêem-me as lágrimas aos
olhos.
Serei a sua namorada e mulher, a sua amante e amiga.
A sua companheira até ao último dia, última hora
da minha vida.
Budapeste, 2024-2025
Para o livro “De mim ficam as Palavras”
Queira Deus que não seja o que se sente vir.
Foi pior, o horror metódico e sanguinário: o Holocausto
Carta a Radnóti Miklós
(1909 - 1944)
Sabes, Poeta, o meu neto, com a mãe e o meu genro
- O irmãozinho vem a caminho - vivem numa rua
que cruza com a rua que leva o teu nome - Radnóti Miklós
em Lipótváros, no bairro que foi sempre o teu, o bairro
XIII.
Assim, sempre que os vamos visitar ou levá-lo a passear
passamos pela tua rua e vemos a tua estátua discreta.
Miklós - Glatter entes de ser Radnóti -, estive a ver as
tuas fotografias
fiquei com a ideia de que eras um rapaz bonito, um homem
elegante
um Poeta conhecido, de renome, com P grande. Lias
regularmente
a tua poesia na rádio. Não admira que muitas miúdas, as
mulheres
tivessem um fraquinho por ti. Sabes que eras um homem com
sorte?
Fanni a tua Musa-Namorada de sempre era paciente e
compreensiva
- Sim, eu sei que começaram a namorar eram ainda quase
crianças -
e mesmo cheia de ciúmes, das zangas, perdoava as tuas
aventuras,
com a jovem alemã klementine ou com a fogosa Judit, a tua
pintora.
Arckép
Huszonkét éves vagyok. Így
nézhetett ki ősszel Krisztus is
ennyi idősen; még nem volt
szakálla, szőke volt és lányok
álmodtak véle éjjelenként!
1930. október 11.
Retrato
Tenho vinte e dois anos. Assim
devia ser a aparência de Cristo no outono
nessa idade; ainda não tinha
barba, era louro e as raparigas
sonhavam com ele à noite!
11 de outubro de 1930.
Caro Poeta, já estamos no primeiro quarto do século vinte e
um.
Agora é comum falar sobre a importância da baixa pegada
carbónica
de desenhar a estratégia sustentável para o futuro da
humanidade
da comunicação imediata das redes sociais, das novas
liberdades
e dos velhos discursos do ódio recauchutado, sempre
mobilizadores.
A cegueira dos custos não imputados ao populismo assassino.
De custos, direi que para ti era em primeiro lugar a vida, a
sobrevivência
que te custava caminhar, estar de pé, estar sentado, estar
deitado.
Que morrer só depois de sonhar e de voar, de cair e de novo
se levantar.
De escrever a última agonia antes da última bala, o último
postal ilustrado.
Poeta, 4 postais para te ilustrar e iluminar, para te
recordar e eternizar.
Negyedik Razglednica
Mellézuhantam, átfordult a teste
s feszes volt már, mint húr, ha pattan.
Tarkólövés. - Így végzed hát te is, -
súgtam magamnak, - csak feküdj nyugodtan.
Halált
virágzik most a türelem. -
Der springt
noch auf, - hangzott fölöttem.
Sárral
kevert vér száradt fülemen.
Szentkirályszabadja, 1944. október 31.
Quarto postal ilustrado
Eu caí ao seu lado, o seu corpo virou-se
e já estava esticado, como a corda quando se parte.
Um tiro na nuca. - Assim acabas tu também, -
Sussurrei para mim próprio, - fica calmo e quieto.
A paciência floresce agora na morte. -
Der springt noch auf*, - ouviu-se por cima de mim.
Sangue misturado com lama secou nas minhas orelhas.
*Ele continua a saltar
Szentkirályszabadja, 31 de outubro de 1944
Acorda meu amigo, a Fanni está à tua espera, jovem, bela e
apaixonada
como nos dias especiais, com um bolo de requeijão e um
körtepálinka
com um exemplar do teu Bori notesz, símbolo maior do pior
pesadelo.
Para te dar a novidade que em Budapeste há um teatro com o
teu nome
que nenhum judeu é perseguido, nem os católicos convertidos
como tu.
Há futuro mesmo quando a escuridão parece ser mais forte que
o clamor do amor!
Budapeste, 1 de março de 2025