segunda-feira, 31 de março de 2025

Amor e paz - Ilusão das palavras

 

Para o livro "De mim ficam as Palavras"


Tamar e Mahmoud

 

Diz Rita, minha amada 

na nossa Terra Santa 

porque é o mundo 

connosco tão injusto 

tão duro com o nosso Amor? 

 

Não somos Romeu nem Julieta 

Páris e Helena, Tristão e Isolda 

- nem a triste tristeza do isolamento.

Não somos Lara e Jivago na Rússia 

nem Ilse ou Rick em Casablanca.

 

Somos tão só Tamar e Mahmoud

uma judia e um palestino sem nome.

Dois jovens que se conheceram  

se apaixonaram irremediavelmente 

e se deram perdidamente um ao outro.

 

Porque não podemos nós fazer 

das pedras e do pó dos caminhos 

campos de oliveiras, pomares de laranjeiras 

e do barro construir e erguer a nossa casa 

cuidar do nosso jardim e da nossa horta?

 

Minha israelita de mel insubmissa 

que o nosso Amor nunca acabe 

e eu possa viver contigo a vida inteira 

criar filhos e depois ver os netos crescer.

Rita não te esqueças - o sonho nunca morre! 


Tamara

 

Tamara, doce doçura como a vitória impossível 

a renúncia anunciada e a conquista temporária 

eterna só no sonho mais improvável e mais ingénuo. 

- Castanha de caju e amêndoas recheadas para despistar. 

 

Para disfarçar a dor da melancolia triste

a tristeza que inunda e sufoca a alma

a hospedaria da monotonia mais ausente.

- Dizer adeus à inocência perdida.

 

Abram os olhos e olhem ao vosso redor

não é a abundância do leite, mel e frutos 

a terra prometida por deus que vos espera.

- É tempo de acordar de vez minha flor.


Rita e a espingarda


"Entre a Rita e os meus olhos, uma espingarda"

 

Ele o Poeta, voz da resistência palestina, destacado militante da OLP.

Ela alistou-se nas forças armadas de Israel, depois membro da Mossad.

O abismo entre os dois jovens amantes não parou de crescer. 

O seu Amor não conseguiu sobreviver à realidade das suas vidas. 

Um dia os seus olhos afastaram-se e não se voltaram a ver.

 

Hostil a nossa cidade não nos recebeu de volta 

e nos subúrbios não encontramos onde pernoitar

onde pudéssemos festejar-nos pela última vez. 

Eu poder dizer adeus aos teus olhos de mel 

ao teu corpo e à tua alma de minha gata felina.

 

Ali não havia mais do que apatia. 

O silêncio pesado da casa vazia

tinha tomado o sofá-cama da alegria 

ignorando a pureza do nosso amor.

 

Custa escrever, mas nem a nossa buganvília 

esperou por nós e secou antes da nossa melodia.

"Ah Rita! O que terá afastado os meus olhos dos teus." 

Pense aux autres (Pensa nos outros)

 

Quand tu prépares ton petit-déjeuner, pense aux autres. 

(N'oublie pas le grain aux colombes.) 

 

Quand tu mènes tes guerres, pense aux autres. 

(N'oublie pas ceux qui réclament la paix.)

 

Pensava no tempo ainda tão morno e tão cálido. 

Vestia-se das minhas palavras e dos meus beijos

corria o fecho da saia comprida de linho.

 

Escondia os seus olhos de melaço profundo

por detrás das negras pestanas da noite.

Os lábios pintados com o seu sorriso agridoce

 

Entrevia um amanhã que era definitivo 

um passado sem nós para não recordar.

Sem o nosso amor, sem a nossa alegria. 

Sem nenhuma das nossas promessas.

 

Valeria a pena recomeçar a viver

tentar recriar o nosso mundo sonhado

feito de dedos lisos e de mãos abertas 

de braços meigos e abraços apertados. 

Feitos da nossa biografia perdida.


Quand tu comptes les étoiles pour dormir, pense aux autres. 

(Certains n'ont pas le loisir de rêver.) 

"Pense aux autres". Traduit de l’arabe (Palestine) par Elias Sanbar


Ilusão das palavras

 

Descobri a poesia de Mahmoud Darwich 

- sobretudo a poesia militante e de combate -

através de traduções para francês

nos fins dos anos oitenta do século passado.

 

Mais tarde com o filme-documentário 

Write down, I am an arab (2014)

conheci a vida do poeta e a história de amor 

com a jovem judia Rita (Tamar Ben-Ami).

 

Este filme comoveu-me por acreditar 

que o amor e a paz, a ilusão das palavras 

podem ser mais fortes do que a guerra.

Essa comoção aumentou com a nossa visita 

de sete dias a Israel, Palestina, Terra Santa. 

 

Durante esses dias fiquei a saber que a paz 

e o entendimento ali nunca serão alcançados

não haja ilusões. Não tenhamos ilusões. 

Não quero nem podia morrer sem deixar escrito

sem duas ou três pinceladas do que senti e sinto.

 

Amor e paz - Ilusão das palavras

Budapeste, 28-30 de março 

 

Para o livro "De mim ficam as Palavras"


quinta-feira, 27 de março de 2025

Palavras do eléctrico ou o eléctrico das Palavras / 2

 

Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta

continuarei a escrever. Clarice Lispector



Para o livro "De mim ficam as Palavras"



Um cálice de aguardente

 

Um cálice de aguardente para te trazer de volta 

para me ajudar a guardar-te nos meus braços 

para haver lenha quando as noites frias acabarem 

e da distância as manhãs fechadas abrirem os olhos.

 

Recordar-te como te escondias feminina

como se no prédio fosses a nova inquilina

- Como quem corajosa subias ousada a colina.

 

Recordar-te como desaparecias na neblina

e os teus olhos de gata eram a lamparina

- Feita luz aparecias nua por detrás da cortina.

 

Um cálice de aguardente para te trazer de volta 

tu que dizias que eu era o sal e a tua gasolina

para me ajudar a guardar-te nos meus braços 

resina do meu pinhal sabor da doçura mais fina.


Um prato de lentilhas


Por um prato de lentilhas 

vende o pai e vende a mãe 

vende o avô e vende a avó. 

Vende o cão e vende o sapo.

 

Por um prato de lentilhas 

vende os cornos e a alma

vende a ilusão da mentira 

vende a própria mulher.

 

Hipoteca a vida da filha 

prometida e pré-vendida

ainda antes de nascer 

ainda antes de a fazer.

 

Aqui é um hábito muito antigo 

que por significar abundância 

é comum no primeiro dia do ano  

comer-se um prato de lentilhas. 

Um copo de vinho


Abre os olhos carroça que a mula vai apressada 

e para lá chegar eu tenho tempo de sobra.

Não tanto como Gaudi, o arquitecto de Barcelona 

mas tempo suficiente para parar e para almoçar 

com todos os vagares que a pança merece.

 

A conversa é sempre a mesma sempre condimentada 

a puxar para o meio, abaixo do peito acima do ventre

se não falta nada para dar ao dente e sentar à mesa.

 

Se local novo olhar à volta ver que comem os outros 

pedir para começar meia garrafa, um copo de vinho tinto 

um café e um digestivo para ajudar a digestão.

 

Para ajudar a constatar que as nossas barrigas

são o melhor estímulo para a satisfação ou insatisfação 

dos homens e das mulheres de ontem de hoje de sempre.

Por ser um bom exemplo disso não me vou esconder. 

Uma taça de gelado


Uma taça de gelado italiano para gente gulosa 

com bom gosto porque não há gelado melhor. 

Uma taça de champanhe francês para gente boa

com paladar desenvolvido e dinheiro para gastar. 

 

Uma taça de salada de fruta para amigos da horta 

que trocam um doce de ovos pela natureza-viva

que sabem da importância da saúde e da comida. 

Sabem se agora se cuidam, amanhã tem mais vida.

 

Sabem do grande irmão e outros filhos da puta

as rascas teorias da conspiração teórica e prática

do regresso sufocante orwelliano da mão-morta. 

Mão a menos maçaneta vai bater a outra porta. 

Uma caneca de cerveja


Uma caneca de cerveja alemã com salsichas

as linguiças de Nuremberg com couves roxas  

e repetir a caneca, há coisas piores na vida.

Nem falar do incansável pedinte em mim

a pedinchar e a juntar bases de cerveja.

 

Lembras-te do sítio da primeira cerveja que bebeste comigo?

Não era bebida que estivesses habituada, valeu-me com cerejas

da simpatia com que nos atendiam, como se metiam contigo.

Tínhamos vindo de uma festa para continuamos a celebração. 

 

As voltas que o mundo deu, as canecas que eu já bebi.

Como poderei eu esquecer os seus brincos fantasia

cerejas ou ginjas aos pares a caírem sobre os ombros 

a realçar o seu pescoço alto que convidava a beijar.

 

2024 – 2025…


quarta-feira, 26 de março de 2025

Palavras avulso e a granel


Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.

Fernando Pessoa (Ricardo Reis) 


(Para continuar)

Palavras ou distâncias

 

As últimas semanas serviram para se soltar

libertar-se da teia onde se tinha deixado enfiar.

 

Estava na varanda a fumar um cigarro e a pensar 

não tinha de estar a olhar para o sentido das palavras 

para as segundas leituras das metáforas mais rudes

para as afirmações que pudessem cair mal ou magoar.

 

Pensar devia ser uma grande tontice, escrevê-lo ainda mais 

mas pela primeira vez na vida sentia-se nada discípulo 

quer dizer não ter de estar a olhar para os efeitos colaterais 

das suas ideias, das suas dúvidas e das suas palavras.

 

Palavras escritas em papel, no telemóvel ou no computador.

Palavras, dúvidas ou distâncias que no final podem parar no lixo. 

Repolhinho

 

A imaginação tem coutos que não chegam 

nem aos tornozelos maltratados do irmão.

- Com os ventos do contra clero tão fortes 

quando coitados os bispos já não pensavam 

no coito, no repolho repolhinho por comer.

 

Não podiam acoitar-se por dá aquela palha

com a freira mais tenrinha do convento 

para isso até servia a macia do palheiro 

não fosse o diabo tecê-las, acabar no degredo.

 

Como é costume o mundo mudou para pior

com essa gentalha logo a pensar que é gente.

Põem-se a inventar e a agitar os agitadores 

de coutadas e das noitadas mal dormidas.

 

Esquecem-se que não faziam mais que andar 

em grupo à procura dos ninhos de gambozinos.

Coito ou couto tão diferentes como o dia da noite 

se não houver noites brancas e roxas madrugadas. 

Condicional

 

Para passar no exame de língua

pago a peso de ouro, de rara platina

andou semanas a estudar e praticar

o condicional do verbo bem fazer

ou fazer com muito prazer.

 

Passou com nota máxima e distinção  

com uma resposta que até o professor 

considerou ser um exemplo a seguir. 

 

Sabia que se tivesses os olhos abertos

e olhasses para mim irias guardar na memória

o momento em que os meus lábios se fecharam.

 

Mais tarde quando visses uma fotografia desse dia

irias-te lembrar e também pensarias que ninguém

a não ser nós sabia o que a minha boca fazia. 

Talvez soubesse

 

Talvez soubesse, 

mas parece que não sabia 

que não devia arriscar 

não devia dar um passo 

maior do que a perna. 

 

Mas queria tanto 

dar um salto à canguru 

que o máximo que conseguiu 

foi dar um salto de caranguejo.

 

Para sua grande tristeza 

nunca mais se voltaram a encontrar. 

Cegueira

 

Meu Amor estou no aeroporto, acabei de chegar 

não te disse nada porque quis fazer uma surpresa. 

Sabia muito bem que não podia faltar, estar longe 

estar ausente neste momento tão especial para ti. 

Manda-me a morada para eu dizer ao taxista.

 

Acordou. Tinha adormecido no avião e teve pena 

de acordar, do sonho não continuar, não se realizar.  

No dia seguinte acalentou a derradeira esperança 

que na cidade da paixão o sonho fosse a realidade. 

 

Conclusão de quem anda há muitos anos por aqui 

e vê o que muitos outros não veem ou não querem ver. 

- Não há cego maior do que aquele que o amor não deixa ver 

cego pela cegueira irracional e profunda da ilusão intelectual.

Encurtar lonjuras


Estava a refazer o seu jogo de cintura

para de vez lhe chamar a atenção 

e aos poucos ia perdendo a compostura 

com ofertas de vida e asas de paixão.

 

Estava a rebentar pelas costuras

Com as costas e o resto à mostra 

Com as coxas abertas à lua nova

prontas para encurtar as lonjuras. 

 

Com ela e com os mistérios do amor

aconteceu esse encantamento único 

cada vez que a via mais linda a achava

mais fascinante que no encontro anterior. 

A vida inteira

 

Para lá de todos os êxitos e alegrias 

de fora e de longe não se via 

o que sentia no mais fundo de si.

 

Mas um dia depois de muito caminhar 

bastou um olhar para de vez mudar  

a alma intacta do seu coração mais puro 

que se fez maior para sonhar e descansar.

 

Como se fosse uma história de encantar

para à noite ser vivida e bem contada

encontrou quem sempre procurou 

porque não perdeu a esperança que existia.

 

Por estar há muito tempo à sua espera 

nem que fosse apenas para um toque de dedos 

Um encontro, um dia que valesse a vida inteira.

Tempo das cigarras

 

Era o tempo das cigarras e das cerejas 

tempo das bocas se colarem uma à outra 

com a cola do néctar em flor das cerejeiras. 

- As bocas se colarem sedentas e esfomeadas.

 

Tempo de deixar as línguas dançarem 

ao som da música sensual dos desejos.

Tempo dos lábios amantes se degustarem

ao som da música doce do prazer e do licor.

 

O canto cigarra sedutor do acasalamento 

com os lábios sedosos e o sabor do beijo

e com as almas abraçadas ao sentimento.

- O fascínio de tudo o que é o nosso amor.

Remorsos


Como novidade e prova de amor dizia 

que devido ao seu gradual afastamento  

após troca de mensagens tinham estado 

à conversa ao telefone bastante tempo. 

Conversa que entrou pela noite dentro.

 

Que teve na ponta da língua a vontade 

de lhe falar do seu novo romance 

mas que lhe tinha faltado a coragem 

e ainda tinha pena de terem acabado.

- Queria guardar algo desse passado.

 

Tinha pensado em mudar de vida

ficar apenas com um novelo de fio

mas com este balde de água fria 

ora toma, lá se foram os remorsos 

pelo muito de errado que fazia.  


Exibicionista


Com ousadia e bom gosto não se importava de se mostrar 

de exibicionista exibir-se e realçando o melhor que tinha. 

Com olhos de leigo digo, via-se que era muito e do melhor.

Segundo os livros não devia ser nenhuma Teresa de Calcutá. 

 

Por vezes surpreendia e excitava pela sua transparência

em sentido próprio e figurado, pela sua autenticidade. 

Era tão natural e tão apelativa dos sentidos que os homens

a seguiam como se fossem abelhas de volta do mel mais doce.

 

As amigas gostariam de ser como ela, tinham-lhe inveja. 

Também eu teria muita dor de cotovelo se fosse sua amiga.

- Que bom seria ser seu amigo e conhecê-la mais de perto

para sem desafinar poder-lhe cantar a cancão do bandido.

 

2024… 2025…. 

Palavras do eléctrico ou o eléctrico das Palavras

 

Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta

continuarei a escrever. Clarice Lispector


(vão continuar)

Sentados no eléctrico

 

Estavam sentados no eléctrico e de forma discreta

tocavam e trocavam de joelhos, de mãos e respiração 

tão discretamente que tinha de estar atento.

 

Não me fazer notado e observar com atenção para captar 

apreender toda a íntima magia daqueles momentos 

um local público sem grandes pressas, em movimento.

 

De janelas escancaradas trocavam de olhos e sorrisos 

despiam e vestiam a alma a rebentar de felicidade

não escondiam, mostravam tudo o que lhes ia no coração.

 

Tive pena que saíram antes de mim e não os pude seguir 

ver como caminhavam, abraçados ou de mãos dadas 

beijando-se junto ao castanheiro bravo

com tempo e com vagar ou correndo 

para casa dele ou dela sem tempo de esperar.


Encontrado no chão

 

No dia de hoje o tempo já fez muitas caras 

mas nenhuma é a tua, o teu rosto e o teu sorriso

o rosto lindo que Deus te deu e a vida aperfeiçoou.

 

Assim começava a carta que tinha encontrado no chão 

tinha apanhado o envelope e aberto sem ter autorização.

Li atento e fiquei a saber da intensidade dessa paixão

 

Pensei que aquela carta perdida podia ter sido escrita 

por qualquer um de nós, qualquer um que sente

qualquer um que sonha, qualquer um que ama e é amado.

 

Será que hoje ainda se escrevem cartas de amor?

Será que não passa de conversa de idoso cansado?

- Todas as vidas se escreveram cartas e mensagens

poemas e metáforas de ternura e encantamento.

 


Dar ao chinelo


São tempos de dar ao chinelo 

sem isso não temos sopa 

e algum conduto na mesa 

ouvia dizer à minha avó, à tia Olinda 

já lá vão sessenta anos. 

 

E agora? Está melhor, mas não para todos.

Vivemos tempos de dar ao tamanco 

à sandália de cortiça, andar à chinelada.

 

Sapato novo e chinelo velho

sapato lindo e chinelo feio

rimar apenas para desconversar.

e dar ao pedal enquanto há força.

 

Pasteleira para pastar, para andar devagar 

a pisar ovos, a pastelar, a fazer tempo 

a fazer que faz, a correr para quê?

Pôr tudo em pratos limpos na pastelaria.

 

Acabar por dormir sentado e de pé 

a dormir deitado, inquieto de olho aberto 

deitado com um verdadeiro tesouro ao lado.

  

Combustão


E é eléctrico, imagine-se se fosse a combustão 

muito fogo iria acender, apagar e de novo atiçar  

incendiar o restolho, fazer arder e repetir a dose.

 

Diz-se que foram metros e metros de coisa dentro 

e nunca declinou mais um uma boleia, uma viagem. 

Hoje como ontem, como depois de amanhã 

não se deve meter o bedelho onde não se é chamado. 

 

Confundir alhos com bugalhos e sarilhos com saralhos 

carvalhos e churrascos na churrasqueira de sempre. 

Corno, mas manso, dos mansos com classe e filantropia 

- Um coração do tamanho do mundo à venda na mercearia. 

  

Nesta casa

 

Nesta casa não há nada que se coma? 

Ou que se possa beber 

para enganar o estômago? 

Ajudar a despertar?

 

Não é preciso olhar muito para ver

uma bicicleta parada no meio da sala.

Estar aqui a entreter, a pedalar 

para não perder o equilíbrio 

para não tombar. 

 

Com um olho no burro 

e outro na barriga à mostra 

e de repente acabar por cair  

com pontaria em cima dela.

Dizia: a bicicleta que ele usava era eu. 


Tângera pequena


Tângera é uma laranja mais pequena 

e ancora é uma tangerina maior 

explicava com ar de quem sabe 

por ter laranjeiras no pomar da família.

 

Ir à loja do bairro ou ao supermercado 

era como encontrar-se com o amante 

com grande arcaboiço e grande espingarda.  

- Com ele sexo era mesmo para recordar.

 

Criticado por ter mais olhos que barriga 

porque cada gaveta tinha fruta diferente 

e na frutaria as prateleiras estavam vazias.

Era o caso de a procura ser maior que a oferta. 

 

Marroquina clementina ou laranja de sangue 

a doce acidez do prazer pago a prestações 

de rendas pretas rendinhas vermelhas fetiche. 

Com a utilização da melhor das tradições. 

Ferrovia a menos

 

Não é o pão nosso de cada dia 

nem dia ou noite de cada pão.

Acredita, se fores optimista

o café sabe-te muito melhor.

 

A blusa fica mais cremosa e mais pão 

se não usar detergente, mas sabão.

Os montinhos ficam mais redondinhos

e os moranguinhos mais pontiagudos.

 

Quem entra no hipermercado sabe ao que vai

mas quem entra na estação não sabe quando sai.

É o que acontece quando tens um país 

com autoestradas a mais e ferrovias a menos.

 

Em que homem ou mulher pensei?

De que país estarei eu a falar? 

Dou um rebuçado a quem adivinhar 

e dois a quem não se enganar.

Logo se vê

 

Se o dia promete pouco, não te rales

Se o dia está a dar, deixa-o andar

Se o dia precisa de ti, faz um biscate

Se o dia não ata nem desata, dorme. 

Se tens o carro avariado, vai a pé 

Se a política te irrita, desliga a televisão 

Se já não mandas nada, calça as pantufas 

Se o teu clube te põe triste, muda de mulher. 

 

Se a gata não mia, dá-lhe uma corneta 

Se a porta não abre, entra pela janela 

Se te esqueceste de beijar, aprende línguas

Se não tens emprego, vai para o estrangeiro. 

Quando a loucura dos autocratas com as suas maiorias  

tomar conta do mundo e arredores e já não houver humor 

ou ironia que nos valha e nos entretenha, logo se vê! 

Clito, o Negro


Clito, o negro no campo inclusivo da batalha

na promoção e arte de combater com mestria

deixava magia, razão do texto desta geografia

deixava no ar o fascínio de conquista da poesia. 

 

Pelo grito e pelo aroma da cor, o teu clito é de ouro

mas o dela vale mais porque vem das terras raras.

Olhem o meu é negro, feito de plástico reciclado

e foi comprado em promoção na loja das bugigangas.

 

Clito, o Negro (375 a.C. - 328 a.C.) foi um destacado militar do exército de Alexandre, o Grande e salvou a vida deste na grande Batalha do Grânico (334 a.C). Seis anos mais tarde, durante um banquete em Samarcanda e após violenta discussão, Clito foi morto pelo amigo e venerado Alexandre (Wikipédia)


Teodora de Constantinopla


Se a memória não me deixa ficar mal

quando criança conhecia uma Teodora

era uma colega na escola primária

e coitada da menina era gozada por todos  

- Olha, olha a Teodora, tanto ri como chora.

 

Era uma menina muito envergonhada 

com sardas e cabelo comprido claro

e provavelmente tornou-se uma bela moça.

Estudou direito, fez-se doutora, advogada.  

 

A outra, Teodora de Constantinopla

também conhecida como Teodora do bordel

foi actriz e dançarina, prostituta e comediante.

Imperatriz e esposa do imperador Justino.

 

Tinha talento, era formosa e inteligente 

com bom senso para ela nada era urgente

mas não chegou para convencer muita gente.

 

Que o digam as leituras dos escritos que ficaram da época.

Se não tivesse visitado Istambul e ter-me preparado para a visita

teria perdido alguns detalhes que a tornaram muito mais rica.

Digam lá se a curiosidade e o saber ocupam lugar?

 

2024… 2025…


segunda-feira, 24 de março de 2025

Eco das Palavras

ou a ousadia tonta de me associar a Umberto Eco

Gato

 

"Perguntei-lhe qual era o nome do gato e ele respondeu-me que os gatos

não têm nome porque não são cristãos como os cães" Umberto Eco

 

Caro Mestre, não leve a mal a intromissão 

mas do pouco que Deus me acrescentou 

sei que não é por aí que o gato vai às filhoses.

Estão em grande harmonia e não há jantar sem cão.

 

A não ser que da arranhadela o santo ficou uma fera

e nem a intervenção de Pedro apaziguou a discussão.

Ainda por cima a internet esteve todo o dia de baixa 

e não passou a mensagem do gato a pedir perdão.

 

Boa eucaristia senhor prior e bom jantar de celebração. 

Batize lá o gato no domingo e esqueça a ofensa.

Vai ser um bom cristão vai caçar os ratos na igreja.

O vinho não vai sumir da sacristia. Tenha um bom serão.

 

Sabedoria

 

“O amor é mais sábio do que a sabedoria” Umberto Eco

 

Cada história de amor nasce para não morrer 

não é preciso ser sábio para inventar uma melhor.

O amor é feito de paciência e arte da transpiração 

é feito da sabedoria dos que nasceram para viver.

 

Cada história de amor ou sua fulminante negação 

tem a sua própria época e prioridades a condizer.

Quando as tuas já são outras eu aceito dar o lugar. 

Amigo não atrasa amigo se não contar para a equação.

 

Cada história de amor custa mais decorar do que despir 

e custa mais vestir do que deixar a cama arrefecer 

mas por muitos esforços que faça não vou conseguir 

despir-me da pele que Deus escolheu para comigo trazer.

 

Esta frase aprendi há pouco de uns estrangeiros 

- Antes de criticares põem-te nos meus sapatos.

Eu não posso, não consigo ser quem não sou 

- Ouço a minha voz e sei que por aí eu não vou.

Deus

 

"Deus está morto, a arte deixou de existir, a história 

chegou ao fim e eu próprio não me sinto bem" Umberto Eco

 

Contra a gripe, a febre e a constipação 

contra o mau olhado da desilusão 

não duvide não perca mais tempo. 

Abra uma garrafa de vinho tinto.

 

Beba copo a copo com moderação 

e não se esqueça desta afirmação. 

 

Não um vinho qualquer meio martelado 

um vinho alentejano bem encorpado

como promoção do melhor medicamento. 

Como tributo à terra, à gente e à produção.

 

Beba copo a copo com devoção 

e não se esqueça desta opinião.

 

Caro leitor que nunca me vai ler

até pode não acreditar no que digo 

mas há muitos anos que não tomo 

comprimidos para as dores de cabeça.

 

Em primeiro lugar porque não me dói 

e se for o caso muito raro do contrário 

para começar bebo meio copo de vinho.

Beba com devoção e beba com o coração.

 

Vida

 

"O que é a vida senão a sombra de um sonho fugaz?"  Umberto Eco

 

A minha vida? Eu sempre fui uma boa boca 

e me contentei com o que vinha para a mesa. 

Se a refeição fosse farta como acontecia contigo

aproveitava o repasto e tirava a barriga de misérias.

Se não fosse o caso, era paciente e não me queixava. 

 

Os milagres das entradas das nossas sobremesas 

de tão divinos e tão humanos, eram o paraíso na terra 

eram momentos de amor que nos tornavam imortais.

Eram milagres, não feitos por Deus, mas por nós.

 

Lembras-te quando foi?

Foi numa terça-feira 

a nossa primeira festa 

a nossa primeira cama.

 

O nosso primeiro poema 

o primeiro dia da nossa vida. 

Foi numa terça-feira de março. 

Diabo


"O diabo não é o príncipe da matéria, o diabo é a arrogância do espírito, 

a fé sem sorriso, a verdade nunca tocada pela dúvida" Umberto Eco

 

Quando a cegueira colectiva da maioria já for credo e religião obrigatória 

não se respeitar a opinião da agora minoria que pode ser apenas temporária. 

Quando a maioria dos eleitores acreditarem num futuro fácil e barato 

levados pelas respostas do populismo sabe tudo e discurso simplificado.

 

Acredita que não estás sozinho que estás bem acompanhado 

que são muitos que pensam como tu, não te sintas abandonado.

Muitos que sabem pela história que contra a indigna submissão 

temos ao alcance da mão e da alma a nossa infinita insubmissão.

 

Temos de enfrentar o diabo mentiroso de uma mentira maior.

Temos de derrubar o falso profeta de um infame deus menor.

  

Poesia

 

"Fomos suficientemente inteligentes para transformar 

uma lista de roupa suja em poesia" Umberto Eco

 

Bom dia. Com o tempo e a observar como faziam os mais velhos 

- mãe estava longe e a vida era aqui - descobri que era mais prático 

lavar a roupa ao fim do dia, todos os dias no lavatório da sala de banho.

 Lavava a roupa com sabão - chegou a ser azul que trouxe de Portugal -  

e punha-a pendurada a secar no radiador do quarto da residência.


Na manhã seguinte estava enxuta. Eram mais complicadas as camisas

- felizmente na época usava sobretudo t-shirts - e pior as calças 

que tinham de ser passadas a ferro, mas como eram de ganga 

se não fossem centrifugadas e ficassem bem esticadas 

mesmo sem ferro de engomar, estavam prontas a serem usadas.

 

Foram sete semestres na residência estudantil da universidade.

Tantas recordações. Tantas histórias. Tão pouca roupa suja para lavar. 

Tanta roupa lavada para amarrotar, cheirar e amar. Tanta poesia. 

Abençoada juventude. Obrigado Ráday kollégium. Obrigado Budapeste.

Nobel

 

"As redes sociais dão a legiões de idiotas o direito de falar, quando antes só falavam num bar depois de um copo de vinho, sem prejudicar a comunidade... mas agora têm o mesmo direito de falar como um Prémio Nobel. É a invasão dos idiotas.” Umberto Eco

 

Estamos cercados por muita raiva de cão  

muito presente por ser apanhado do chão. 

Estamos perdidos com tanta merda seca

tanta camisa de vénus suja e esburacada.

 

Tanta trampa, rabo de gente em tampo de sanita

para quê tanto lavatório se nem as mãos lavam.

Não lhes chames ralo, sifão nem venerável válvula 

ou vibrador vibração que dá gozo à vulnerável vulva.

 

Quando estava a falar parecia que estava a dormir 

e a dormir parecia que estava a tossir e a vomitar

a ressonar grosso como uma osga ou uma lagartixa.

Um safado a comer salsicha de barba, bigode e barbicha.

 

Que seria se fossem para o diabo que vos carregue

e deixassem o Nobel e o futuro para quem o merece.

 

Budapeste, 2025

Pedro Assis Coimbra

Para o livro "De mim ficam as Palavras"

sexta-feira, 21 de março de 2025

Tempo de espairecer e envelhecer

 

Não há amor que resista a vinte e quatro horas de filosofia
Camilo Castelo Branco 


Envelheci a pensar em ti

 

E foi assim que envelheci a pensar em ti. 

Envelheci em silêncio e a reduzir a lonjura

a distância da cidade portuária mais próxima

tão próxima que não cabia no meu pensamento. 

 

Assim como quem não acredita no destino 

inquieto sem dar conta das mudanças do vento  

com o mais velho e mais escuro caudal do tempo 

fui aguadeiro camaleão a desaguar no rio da vida. 

 

Era tarde para sair e mudar de embarcação 

e cedo para aproveitar a substância da baixa-mar. 

Assim como um estivador abraçado ao seu cais 

sem grandes pressas envelheci a pensar em ti.


Cresci contigo

 

Sem estar vacinado cresci a sonhar contigo 

como se fosses uma madrugada madrinha

ou uma bela mulher que sai à rua para se mostrar 

querer-nos convencer que é ela a nossa liberdade. 

 

Cresci contigo porque nasci no tempo da lua cheia 

quando a manhã se atrasava e o sonho era gratuito. 

Não sabia como te beijar, mas coragem não me faltava 

sentia que um amor como o nosso teria de dar certo. 

 

Sem hesitar avancei e ainda hoje sigo em frente contigo 

pelas avenidas que nos ajudam a chegar ao nosso abrigo. 

Partilhando as ideias e os sonhos, escutando os outros

porque sabemos que a liberdade tem valor se for de todos.


Foi por ti que sonhei

 

Foi por ti que sonhei viajar sozinho 

Foi por ti que saí do meu país 

Foi por ti que me fiz ao caminho 

Só por ti é que fui árvore e fui raiz.

 

Foi por ti que viajei longe para te trazer até mim

Com violinos nas asas e guitarras em cada mão. 

No dia da chegada organizar um grande festim

Onde juntasse num só o teu e o meu coração.

 

Foi por ti que sonhei e foi por ti que viajei 

Para casar contigo perante a praça e a lei.


Para te esquecer

 

Foi para te esquecer que sai de casa a correr

foi para não te lembrar que sai para espairecer 

cai em mim e pensei o que vai ser de mim sem ti 

voltei a casa a correr com medo de te perder.

 

Ainda lá estavas em roupão em frente do monitor 

preparei à pressa um café, mas como me esqueci 

e não aqueci as chávenas como costumas fazer

levei na bandeja para ser bebido antes de arrefecer.

 

Foi por me lembrar o quanto eu gosto de ti 

e que possa de novo sentar-me na poltrona 

foi para te recordar o quanto eu gostei de ti

é que a culpa morre casada, viúva ou solteirona.

 

Emagreci a sonhar contigo



Emagreci a sonhar contigo 

Engordei a olhar-te de longe 

Emagreci ao ver-te de perto 

Infeliz por não saber o teu nome.

 

Emagreci porque estraguei tudo 

Emagreci por me armar em esperto 

Engordei porque ao abrir a boca fechada

Porra sem querer dei cabo do resto.

 

Deixei de comer ao sentir-te tão perto 

Deixei de beber ao ver-te ao meu lado 

Deixei má sorte de o fazer por descuido 

Por um erro criança de folha de cálculo.

 

Emagreci porque esqueci o seu nome 

Será que ela se chamava Clarisse 

Quem disse que a formiga tem catarro 

Meter-me onde nunca fui chamado.

 

Engordei porque era um esforçado comilão 

Engordei porque era um rapaz brincalhão 

Porque brinquei muito contigo à apanhada

Às escondidas e também à cabra-cega.

 

Emagreci por não ter vergonha na cara

Engordei porque nada me vem à cabeça 

Emagreci porque esqueci o que queria rimar. 

Por não ter um buraco onde me possa enfiar.


A descer as escadas


A descer as escadas deslizei a correr pelo corrimão 

A descer as escadas faltou pouco para um grande trambolhão 

A subir as escadas tropecei e bati com o nariz nos degraus 

Dá muito trabalho subir escadas sem bater com ele no chão. 

 

A subir as escadas tive uma vertigem do pior em grau superior 

como se nunca tivesse visto uma moça bonita à porta do alçapão 

foi um trambolho trampolim da atração tramada pelo trambolhão 

o que me valeu foram os dois paus que tinha trazido do Equador. 

 

A descer as escadas esqueci-me que podia ter apanhado o avião 

não caia nem tropeçava e bastava-me agarrar-me ao corrimão 

a descer as escadas evitei a distração do tombo da nação.

A subir as escadas não tropecei, mas levei um empurrão. 

Disserta filosofia

 

Disserta sem descanso filosofia trinta e seis horas por dia

disserta sem desconto cortesia e outros textos da ventania.

Enquanto pões a máquina de lavar roupa a trabalhar 

não te esqueças da vibração que ela sente por te amar.

 

Do ranger das dobradiças da fechadura a precisar de óleo 

E da chave que de não ser usada está cheia de ferrugem 

Se a erva está murcha a sacanice faz muito bem à pele  

à penugem sagrada no espaço vadio da vadiagem.

 

Disserta sem desconto as tuas aulas de filosofia

Disserta sem descanso, noite e dia e a bom preço 

mas não sejas cara de pau, faz-te às vezes de malandro

moleiro a vender o teu pão à freguesa mais madrugadora.

 

Budapeste, 2025

 

Para o livro “De mim ficam as Palavras”

quinta-feira, 20 de março de 2025

Versos da vida e outras histórias


Sob o meu coração

e na profundidade da minha cintura

está a crescer uma rosa vermelha 

Forough Farrokhzad (1934 - 1967)

Introdução

 

Ele esteve cá hoje? 

Sim, tu sabes que sim. 

Fizeram amor? Sim. 

Fizemos como sempre fazemos.  

 

Olhou-a nos olhos e o convite era tão forte.  

- Anda, é a nossa vez, vamos lá para cima. 

Nesses momentos era outro, transformava-se.

 

Nada se comparava àquela introdução. 

Amaram-se sofregamente, gulosamente 

como se depois não houvesse amanhã.  

 

Chegou a dizer que nada o excitava mais 

do que imaginar que sua amada mulher

ia para a cama, deitava-se mais vezes  

com o seu melhor amigo do que com ele. 

 

Era bom ter com quem partilhar o prazer.

As noites frias eram fogo, fogueiras a arder.


Estava à sua espera


Havia anos em que o meu amante 

fazia de carro mil e oitocentos quilómetros.  

- Conduzia à vez com o meu marido - 

para vir matar as saudades que tinha de mim.

 

Vinha porque sabia que seria bem recebido 

como um dos melhores amigos de toda a família

ao jantar seria o primeiro a ser servido.

Sabia que eu também estava à sua espera.

 

O amor se verdadeiro é entrega. 

Ele fazia todos aqueles quilómetros

para passar comigo duas ou três noites 

e fazer do nosso verão um rio de paixão. 

 

Depois despedia-se com o coração cheio

voltava feliz contando os dias que faltavam 

para o meu regresso e o nosso reencontro. 

Para o mundo que era o nosso a três partilhado. 

A primeira vez

 

Para continuar os estudos deixei a aldeia e fui para a cidade 

para um quarto alugado com uma prima da minha idade. 

Vivia pertinho do liceu e de uns velhos amigos dos meus pais 

de quem, em toda a minha meninice, apenas ouvi dizer bem

do prestígio, ele advogado e ela médica, um exemplo a seguir.

 

As poucas vezes que os vi guardei a imagem de um par perfeito

de um casal muito bonito e alegre, de gente culta e simples. 

Como criança pensei "quando for grande quero ser como eles".

 

Várias vezes me convidaram a lanchar em casa deles

e depois para ir estudar e fazer os trabalhos de casa 

porque lá estava mais sossegada e concentrada. 

Estudava primeiro na cozinha e depois na biblioteca.  

 

Foi ali que os meus jovens pensamentos voaram, sentia-me atraída

pelos seus cabelos grisalhos, o sorriso aberto, a sua voz melodiosa. 

O sentimento crescia em mim, em demasia para a tenra idade

e apesar de não ter ideia nem noção do que poderia vir a seguir

na minha fértil imaginação via que os meus sonhos eram apreciados.

 

Estava escrito, as coisas aconteceram como tinham de acontecer.

No divã, entre livros, deixei de ser menina e tornei-me uma mulher. 

Apesar dos seus remorsos, ali ou no meu quarto continuamos a fazer.

Foi com ele e as nossas tardes, que depois da dor descobri o prazer.

 

Por falta de cuidado, como quase sempre acontece, fomos apanhados

e para evitar males maiores eu tive de mudar de terra, mudar de ares

mas o escândalo foi elegantemente abafado. Foi por isso que eu emigrei.


Esconder os olhos

 

Nos primeiros meses da minha emigração o meu trabalho 

foi tomar conta de uma menina pequenina enquanto os pais 

trabalhavam, saíam ou estavam em casa, mas sem tempo 

para se ocuparem com a filha. Eram os dois arquitectos 

e viviam numa das melhores zonas dos subúrbios da capital.

 

Eu era uma miúda acabada de chegar, uma moça ingénua

mas estava cheia de vontade de me integrar e de aprender  

a ser moderna, eu que vinha de um meio tão pequeno 

e tão atrasado em relação àquela cidade tão cosmopolita.

 

Sentia-me deslocada e insegura, mas nunca tive jeito 

para baixar a cabeça, esconder os olhos e talvez por isso 

o senhor arquitecto começou a olhar-me com mais atenção

e com os cuidados devidos, os olhos foram conversando.

 

O meu quarto era no rés do chão ao lado da sala do duche

e numa manhã enganou-se na porta e entrou no meu quarto.

Fechou-a atrás de si, pôs o dedo na boca e sorriu-me cúmplice 

como quem diz, não digas nada, não faço mal, não tenhas medo.

 

Aproximou-se da minha cama e começou a acariciar-me 

a beijar-me o cabelo, a boca, a descer pela minha pele 

com os dedos, com as mãos e eu sem saber o que fazer.

 

Estava toda arrepiada e excitada, gostava, mas tinha medo 

com um sentimento estranho do que estava a acontecer comigo. 

Nem me perguntou se podia, mas recebi-o com um suspiro contido. 

 

Fez-me sinal que não podia gritar ou gemer em voz alta

para não acordar a esposa, haver confusão e ficar zangada.

E foi assim durante semanas. Eram poucas as manhãs  

que em silêncio não viesse tomar o duche ao meu quarto.

 

Com o que sei hoje estou convencida que a mulher sabia  

o incentivava a continuar e talvez desejasse participar 

- Teria sido aquilo que os franceses chamam ménage à trois

mas acabou por não dar esse passo, não me quiseram assustar. 

Nesse verão depois do regresso das férias mudei de trabalho.


À boleia


Estava à experiência a trabalhar num restaurante da periferia

e como estava no país há pouco tempo ainda não sabia 

que aos domingos era menor a frequência dos autocarros. 

Pelo próximo tinha de esperar mais de uma hora e pensei

que o melhor seria pôr-me à boleia, talvez tivesse sorte. 

 

Ao fim de um tempo parou um carro, um senhor de certa idade 

que me perguntou para onde é que eu queria ir, o meu destino.

Depois de ouvir disse que me levava, mas antes tinha de parar na casa

que estava a renovar, mas que não me preocupasse, chegava a tempo.

 

Não me quero fazer de coitadinha ou para mim tanto faz 

mas a verdade é que acabamos com ele em cima de mim 

numa sala com as paredes pintadas e as janelas acabadas 

com as nossas roupas amarrotadas a servirem de colchão.

 

Já mais limpos e arranjados levou-me ao trabalho

e quando acabei o meu turno ele estava à minha espera.

Nos dias, meses seguintes continuamos a encontrar-nos

a viver a vida, a levar-me a locais onde nunca imaginei entrar.

 

Ele era um homem charmoso com muitos amigos importantes

como pude constatar, com hábitos especiais e surpreendentes

a forma como conviviam entre si, elas e eles e quem os tivesse a ver

- Clubes muito discretos e reservados onde tudo podia acontecer.

 

Com a minha inexperiência podia ter caído fundo no poço  

na tentação do deslumbramento, da ilusão do mundo fácil

mas foi ele que depois de me mostrar como seu novo troféu

me protegeu, não me deixou submergir, não me deixou afundar.   

 

No fim, para me legalizar até se ofereceu para casar comigo.

Estou-lhe grata, mas ainda hoje sinto que fui abusada por ele.  

Os versos e os reversos da minha vida e outras histórias por contar.  

Professor de matemática

 

Professor de matemática de liceu era um pouco mais novo que eu 

e foi o homem mais bem-posto e mais bonito com quem estive.

Na gaveta das minhas memórias, o começo da nossa história 

foi dos momentos mais ardentes e apaixonantes da minha vida.


Estava a atender um cliente e senti que fora alguém me observava

olhei de forma discreta para ver quem era, mas ele já tinha entrado.

Como nesse dia estava sozinha, esperou a vez de ser atendido.

 

- Desculpe, mas eu não quero comprar nada, entrei para lhe dizer

já me esqueci quando vi uma senhora tão formosa e tão elegante. 

Só por si valeu a pena ter parado nesta pequena e delicada cidade.

A paixão não foi longa, mas aquele belo-homem bem cheiroso

na estratégia triunfante da sedução era um verdadeiro campeão.

 

Quando a magia passou, custou aceitar o fim do romance da loja

mas não havia volta a dar e fui em frente, fui eu que tomei a decisão

de acabar e não aparecer no nosso discreto hotel à saída da cidade.

Fiquei num parque de estacionamento a fazer tempo de ir para casa.

 

Ainda me telefonou a perguntar e a pedir explicações

mas ao saber a razão ficou tão ferido na sua autoestima  

que nem amigos ficamos. Nunca mais soube nada dele.


Com a minha amiga

 

Com a minha melhor amiga, ela divorciada e livre e eu casada 

e com filhos, em vários anos no verão passamos uns dias juntas. 

Apenas as duas como se eu fosse solteira e sem prole como ela.


Uma vez no país vizinho o nosso alojamento era uma cama de casal. 

Durante a noite de forma espontânea como fazia com o meu marido 

encostei-me e ela tímida acariciou-me o peito e os seios, a barriga  

beijou-me suavemente o pescoço como se soubesse que era o mimo 

das ternuras que eu mais adorava e excitava. A maravilha aconteceu.

Nesse dia, nas manhãs e noites que vieram. Umas férias de loucura.



Nos anos seguintes continuamos as escapadinhas, a paixão secreta

de duas amigas apaixonadas, mas eu continuei a preferir homens 

e a nossa linda aventura acabou. A amizade também. Não resistiu.

Demorei muito tempo a esquecê-la e anda hoje penso nela. 

Como poderei eu esquecer

 

A mais ousada das minhas histórias de amor 

a mais bonita foi com um jovem universitário 

quase quinze anos mais novo do que eu. 

 

Começou com o seu lindo olhar fixo em mim

e como durou tanto tempo, quando findou 

com o que sabia, parecia ter a minha idade.

 

O jogo de o seduzir de permitir os seus avanços 

de desmontar e saltar as barreiras físicas e morais 

dos preconceitos da idade e porque conhecia a família

de o termos feito à frente de todos sem ninguém notar

e com a arte mais discreta que se possa imaginar.

 

Ali, em que todos sabiam de todos e tudo se sabia

foi o maior desafio-paixão que me aconteceu na vida. 

Foi o jogo mais maravilhoso que jogadora joguei 

as melhores jogadas de sedução, de sexo e desejo.

 

A banda filarmónica a tocar, as pessoas a dançar 

a algazarra das crianças e da juventude e nós ali perto 

perdidos e achados na festa, no esplendor do prazer. 

 

Por muitos anos que viva nunca me vou esquecer

nem nunca deixarei de estar grata ao meu marido 

que entrava connosco e subia para o outro quarto   

cedia a sua cama e entregava a esposa à paixão

à energia inesgotável do seu jovem amante.

 

Ainda hoje me escreve "Lembras-te 

de vez em quando, ainda te lembras de mim?"

Tonto, como te poderia eu esquecer! 


Ficaram as saudades

 

Estava depois dos cinquenta e sentia-me bem, achava-me bonita 

não tinha pressa de ser idosa antes de tempo quando solidária

a vida me ofereceu mais uma prenda, uma nova oportunidade. 

Deu-me a conhecer um homem com um H grande.

 

Era mais velho uns bons anos, mas com uma pedalada... 

- Se fosse ciclismo seria o portador do maillot jaune du Tour.

Os nossos encontros eram como se fossem cronometrados 

tínhamos três horas à disposição até o meu marido voltar. 

Três que me sabiam a trinta e resgatavam todos os meus sonhos 

que me sabiam a pouco tal a intensidade, o ritmo do seu pedalar. 

 

Se aprendi tanto com ele na cama, que dizer da sua sabedoria? 

- Abriu-me a cabeça como ninguém antes dele tinha feito. 

Como ele me transmitiu conhecimento, cultura e filosofia! 

Eu tinha a nítida sensação de que ele sabia tudo e de tudo. 

O meu mestre na cama, na cultura e no meu conhecimento.

 

Numa das nossas tardes de amor por uns ciúmes infundados 

decidiu castigar-me, deixou-me pendurada e não apareceu.

Eu estava à sua espera com a minha lingerie mais ousada

de mulher que sabe o que quer, que o iria excitar ainda mais. 

 

Sem o meu mestre a casa ficou vazia em tarde vestida de solidão.

Devido ao meu orgulho ferido não nos voltamos a encontrar. 

Ficaram as saudades e o seu lugar reservado no meu coração. 

Se um dia de surpresa bater à minha porta vou deixá-lo entrar.


Amor a três acabou

 

Há muito que sou uma mulher casada com um homem maravilhoso

- O meu ombro perfeito, meu defensor primeiro, o meu porto de abrigo. 

- Motor do meu elevador social, país de acolhimento, meu melhor amigo. 

Meigo e cuidadoso, ternurento e tolerante, é o meu eterno apaixonado.

 

Durante dez anos tive uma vida partilhada: à tarde era do meu amante 

de noite e madrugada era do meu marido. Para mim foi natural viver assim.

Muito pouca gente soube desse filme da minha vida e se souberam 

Foi porque lhes disse ou eram vizinhos e todos os dias viam o carro ali parado. 

 

Recordo como se fosse hoje, a primeira vez com os dois em casa 

à hora de deitar. Estava na cama e o meu marido disse-me

- Não queres ir para cima ter com ele?

- Gostaria, mas tu não te importas?

- Sabes bem que não, que para mim o que conta é a tua felicidade.  

 

Foi talvez a noite mais intensa que passei com ele, o meu amante. 

O amor a três acabou há muito tempo, mas a amizade ficou e ainda hoje 

aos domingos sentamo-nos os três no café e pomos a conversa em dia.

Foi amor à primeira vista


Foi amor à primeira vista, ao primeiro, segundo e terceiro olhar.  

A história de amor e da paixão pelo homem da minha vida 

conta-se num episódio uma frase que está presente na minha alma 

como se ele tivesse dito esta manhã depois do nosso primeiro beijo. 

 

Eram as primeiras semanas, na época que quem namorou nunca esquece 

quando o amor pede cada momento, todos os momentos, todos os dias 

mas ele pelo seu trabalho teve de se ausentar durante quase duas semanas.

 

Quando regressou segurando-me as mãos e olhando-me como só ele sabe 

disse-me: Meu Deus já me tinha esquecido como és bela, deslumbrante!

 

Ainda hoje fico comovida e vêem-me as lágrimas aos olhos. 

Serei a sua namorada e mulher, a sua amante e amiga. 

A sua companheira até ao último dia, última hora da minha vida. 

 

Budapeste, 2024-2025

 

Para o livro “De mim ficam as Palavras”


quarta-feira, 19 de março de 2025

Oxalá

 

Queira Deus que não seja o que se sente vir.

Foi pior, o horror metódico e sanguinário: o Holocausto

Carta a Radnóti Miklós (1909 - 1944)

 

Carta a Radnóti Miklós  

(1909 - 1944)

 

Sabes, Poeta, o meu neto, com a mãe e o meu genro

- O irmãozinho vem a caminho - vivem numa rua

que cruza com a rua que leva o teu nome - Radnóti Miklós

em Lipótváros, no bairro que foi sempre o teu, o bairro XIII.

Assim, sempre que os vamos visitar ou levá-lo a passear

passamos pela tua rua e vemos a tua estátua discreta.

 

Miklós - Glatter entes de ser Radnóti -, estive a ver as tuas fotografias

fiquei com a ideia de que eras um rapaz bonito, um homem elegante

um Poeta conhecido, de renome, com P grande. Lias regularmente

a tua poesia na rádio. Não admira que muitas miúdas, as mulheres

tivessem um fraquinho por ti. Sabes que eras um homem com sorte?

 

Fanni a tua Musa-Namorada de sempre era paciente e compreensiva

- Sim, eu sei que começaram a namorar eram ainda quase crianças -

e mesmo cheia de ciúmes, das zangas, perdoava as tuas aventuras,

com a jovem alemã klementine ou com a fogosa Judit, a tua pintora.

 

Arckép

Huszonkét éves vagyok. Így

nézhetett ki ősszel Krisztus is

ennyi idősen; még nem volt

szakálla, szőke volt és lányok

álmodtak véle éjjelenként!

1930. október 11.

 

Retrato

Tenho vinte e dois anos. Assim

devia ser a aparência de Cristo no outono

nessa idade; ainda não tinha

barba, era louro e as raparigas

sonhavam com ele à noite!

11 de outubro de 1930.

 

Caro Poeta, já estamos no primeiro quarto do século vinte e um.

Agora é comum falar sobre a importância da baixa pegada carbónica

de desenhar a estratégia sustentável para o futuro da humanidade

da comunicação imediata das redes sociais, das novas liberdades

e dos velhos discursos do ódio recauchutado, sempre mobilizadores.

A cegueira dos custos não imputados ao populismo assassino.

 

De custos, direi que para ti era em primeiro lugar a vida, a sobrevivência

que te custava caminhar, estar de pé, estar sentado, estar deitado.

Que morrer só depois de sonhar e de voar, de cair e de novo se levantar.

De escrever a última agonia antes da última bala, o último postal ilustrado.

Poeta, 4 postais para te ilustrar e iluminar, para te recordar e eternizar.

 

Negyedik Razglednica

Mellézuhantam, átfordult a teste

s feszes volt már, mint húr, ha pattan.

Tarkólövés. - Így végzed hát te is, -

súgtam magamnak, - csak feküdj nyugodtan.

Halált virágzik most a türelem. -

Der springt noch auf, - hangzott fölöttem.

Sárral kevert vér száradt fülemen.

Szentkirályszabadja, 1944. október 31.

 

Quarto postal ilustrado

Eu caí ao seu lado, o seu corpo virou-se

e já estava esticado, como a corda quando se parte.

Um tiro na nuca. - Assim acabas tu também, -

Sussurrei para mim próprio, - fica calmo e quieto.

A paciência floresce agora na morte. -

Der springt noch auf*, - ouviu-se por cima de mim.

Sangue misturado com lama secou nas minhas orelhas.

*Ele continua a saltar

Szentkirályszabadja, 31 de outubro de 1944

 

Acorda meu amigo, a Fanni está à tua espera, jovem, bela e apaixonada

como nos dias especiais, com um bolo de requeijão e um körtepálinka

com um exemplar do teu Bori notesz, símbolo maior do pior pesadelo.

Para te dar a novidade que em Budapeste há um teatro com o teu nome

que nenhum judeu é perseguido, nem os católicos convertidos como tu.

Há futuro mesmo quando a escuridão parece ser mais forte que o clamor do amor!

 

Budapeste, 1 de março de 2025