Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.
Fernando Pessoa (Ricardo Reis)
2024 - 2025
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.
Fernando Pessoa (Ricardo Reis)
2024 - 2025
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
Uma segunda com sabor a domingo
Com cara de haver tempo para tudo.
Com um sorriso vermelho nos lábios
E uma promessa de entrega nos olhos.
“Vinha dizer que já não estou contigo
Que este amor singular já não é nosso
Vinha dizer adeus, mas já não digo
Vinha dizer adeus, mas já não posso”*
Nestes dias de incertezas e alvoroço
O que diz e sente o teu pensamento?
Fala-me do sentimento de solidão e alento
Dos sentimentos de um amor verdadeiro.
Caminhávamos para a floresta passo apressado
E os pássaros em dezembro e com este frio
Continuavam a cantar para nos aquecer as almas
Para nos comover e quase nos levar até às lágrimas.
Uma certeza no meio da minha imensa gratidão
- Aqui tens o mapa, o trilho do meu coração.
*Da Poetisa Rosa Lobato de Faria
Da angústia que subia pelos pensamentos
pela alma acima e à volta tudo inundava
do mundo que até ontem funcionava
que do nada perdeu a luz, perdeu o brilho
e sem piedade parecia estar a desmoronar-se.
Nesses momentos de grande aflição
de procura de uma mão, de uma voz amiga
nada terá ficado da vida, das palavras
fraternas e solidárias que não disseram
e das mensagens que não trocaram.
Mesmo que se esteja no fim da jornada
a imaginação faz avivar o calor dos olhos
sentir a doçura da pele, o sabor dos corpos
que amanhã pode começar outra aventura.
Um beijo de saudade carregado de nós.
Aimer à perdre la raison
Aimer à n’en savoir que dire. Louis Aragon
Que vão dizer quando nós já cá não estivermos
o que vão pensar de nós e do amor que vivemos?
Eram dias e semanas, meses à espera de um só dia
e eu cultivava rosas e dálias que depois te oferecia.
Passeávamos pela praia guardados pelo nevoeiro
falávamos da lua nova como quem come um gelado.
Olhos nos olhos gostávamos de interpretar o mar.
- Parece que se esqueceram do mais importante -
este mar nunca descansa, não é defeito, é feitio.
Pequenos e mornos, seguros e cálidos, os seus dedos
inquietos, lisos e suaves, aventureiros e
atrevidos
descobriam e tocavam, acariciavam
e avivavam o rosto
o pescoço, o peito e os mamilos, as pernas e as coxas
e mais em cima e mais dentro, as coisinhas mais húmidas.
Nós não podemos negar quem fomos
o que juntos fizemos, como nos amamos.
Sabemos chegou a hora que a partir de agora
o caminho faz-se dia a dia, mágoa a mágoa.
Faz-se lágrima a lágrima, passo a passo
um para um lado e o outro para o outro.
Não podemos negar as nossas vidas
apagar o nosso amor nem o nosso passado
pois é tudo o que fica do nosso património.
Estou certo que as cinzas da fogueira
da nossa paixão ardente e verdadeira
por muito tempo ainda vão ficar mornas.
Vão ficar quentes, vão continuar nossas
como foram no passeio do primeiro dia
no fogo da primeira tarde, da primeira noite.
Há muitos anos atrás o inverno estava ameno.
Decidiram perder-se por Lisboa, pelo Rossio.
Felizes e anónimos pareciam dois adolescentes.
O amor é assim, rejuvenesce e contradiz a idade.
No segundo dia compraram dois cartuchos de castanhas
assadas que acompanharam com copinhos de ginjinha
bebida à porta, em frente de "A Ginjinha" da nossa
história
no Largo de S. Domingos onde se beijaram sem vergonha.
Soube tão bem a degustação alfacinha ao cair da tarde
que regressaram a casa a pé e até se esqueceram
que cúmplices no largo tinham combinado pelo olhar
uma celebração até lhes dar a fome para uma ceia tardia.
A ginjinha fez tanto sono que a festa foi adiada
para o despertar, para a manhã do dia seguinte.
Nenhuma ginjinha era tão saborosa e tão excitante
como o licor da doce ginjinha da moça madura.
Bons momentos que recordam com emoção.
Hoje nada é como foi, as castanhas assadas
ou em pleno inverno os beijos quentes de verão.
Eram tempos de provar as deliciosas ginjinhas.
Pode parecer uma ideia semeada à pressa
para acalmar a alma e afastar os remorsos
que não se importa com a má sorte dos outros
que dá pouca atenção à pobreza dos pobres
a esse inferno diário de estar na rua a pedir.
Não vai o machado e descansam as costas.
Eu estava a pensar no heroísmo dos ucranianos
que quase quatro anos depois da brutal invasão
pela Rússia continuam a resistir sem capitulação
a defender a sua soberania e os seus direitos.
Com tantos idiotas úteis foi o que me ocorreu.
Sim, ver a corrida da neta de 5-6 anos e do avô
para apanhar o autocarro que os esperava
de porta aberta com um sorriso e a saudação
do motorista do bairro que já os conhecia
foi a melhor cena que hoje podia ter visto.
Meus amigos, esta só pode ser uma boa semana.
Quando se chega à idade da reforma
faz-se um novo balanço da vida vivida
olha-se mais para trás, para o que foi feito
e menos para o presente que parece fugir
para o que está por começar e concluir.
Estamos em dezembro, penso e escrevo
é último mês do ano, não o último da vida
sem resignação, com ideias e com esperança.
Lúcido sem arrependimentos nem amarguras
pronto para abrir a janela, a porta que me
leva
para o quintal, para o jardim das lembranças.
Uma longa introdução para chegar onde queria.
Há uma canção francesa com mais de
meio século
para a qual desde criança guardei como um desejo
de inventar a tradução que falasse do meu coração.
O que valeria a vida sem os sonhos e a melancolia?
São tempos de dar ao chinelo, sem isso
não temos sopa e algum conduto na mesa
muitos não sabem o que é ter tão pouco.
Ouvi tantas vezes à minha avó, à tia Olinda.
E agora? Está melhor, mas não para todos.
Vivemos tempos de pressas, de dar ao tamanco
à sandália de cortiça, de andar à chinelada
dar ao pedal enquanto nas pernas houver força.
Pasteleira para pastar, para andar mais devagar
a pisar ovos, em lento pastelar, a fazer tempo
bem na vida a fazer que faz, correr para quê?
Pôr tudo em pratos limpos para poder descansar.
Acabar por dormir sentado ou ficar firme de pé
a dormir deitado, inquieto de olho meio aberto
como um cão, com um precioso tesouro ao lado
e para poder rimar, beber uma boa xícara de café.
Sabedoria tinha mais num só dedo
do que acumulado o saber bafiento
das pontas do cabelo à ponta dos pés
à narrativa do calmeirão macambúzio.
Raramente sabia como se comportar
e pela antecipação tentava impressionar
com frases sonantes de conteúdo vazio
dos que pensam pouco, mas falam muito.
Diz, quem foi que ao ouvido te convenceu
que até já a formiga tem catarro e as pulgas
nascem com asas de minhocas voadoras
são avós de moscas e netas de morcegos.
“Egy kút csak fölülről kap fényt. Az öregség gp a
múltból.
Um poço apenas de cima recebe a luz. A velhice do passado.”
Örkény István. Vozeirão e tu de onde recebes a luz?
Para Ricardo Farrú, Poeta e Irmão do Chile
Lembro-me na universidade das manhãs e tardes bem passadas
das noites dos encontros poéticos com exilados e
amigos
em castelhano e regados a tinto Bikavér, o nosso vinho
magyar.
A importância decisiva dos sapatos, das botas se
inverno
conhecerem o caminho mais direito para casa, para a cama.
Apesar de haver um lá longe e um cá, de muita coisa para
mudar
éramos muito mais livres do que nos dias de hoje
convém escrever.
A vida nunca parou e mudou para melhor, depois com o
tempo
à vez, fomos despindo e vestindo as ilusões e o
seu contrário
ou nem uma coisa nem outra, apenas a experiência da idade.
Meus caros, aqui e agora gostaria de deixar escrito
sem medo nem capitulação do politicamente correto
porra para a ditadura da manada, para a submissão dos
rebanhos
a obediência ao pensamento vigente do que pensam
os outros.
A vergonha nenhuma, que se junta ao nojo e a má-fé do
sofismo.
Talvez seja do algoritmo digital enfurecido do
troglodita
palavra tantas vezes usada pelo nosso amigo
Daniel
ele que nem podia olhar nos olhos porque não havia
porta
que não se abrisse e onde ele com gosto entrava.
Partiu muito cedo, mas ficou para sempre na nossa
memória.
Enquanto eu tiver perguntas e não houver
resposta
continuarei a escrever. Clarice Lispector
2024 – 2025
Para o livro “De mim ficam as Palavras”
“Paga-me um café e conto-te a minha vida”
(Em “Murmúrios do mar”)
De José Tolentino Mendonça, Cardeal e Poeta
Nasci nos meados do século passado
em Amiais de Baixo, lugar de gente orgulhosa
da sua terra que cresceu nas margens da ribeira.
Uma aldeia entre cabeços no Ribatejo profundo.
Ali, durante 3 semanas frequentei a escola primária
e mal sabia quem era quando mudamos para a cidade.
Foi em Santarém que fiz os 7 anos e os 21 em Budapeste
e aos 70 anos se ainda cá estiver por aqui vou continuar.
Membro de uma feliz empresa familiar luso-húngara
sou pai de 3 filhas e 1 filho e avô de 2 netos
e espero que com o tempo venha mais gente nova.
Com sorte nos últimos 37 anos em nome de Portugal
fiz da diplomacia económica a minha profissão.
Jovem, desde 1974 que nunca esqueci ou desertei
as palavras da poesia e não será com esta idade
e os cabelos brancos que vou desistir de escrever
histórias vividas ou inventadas para me entreter.
Acabou-se a inspiração? Parece que não
apenas mudou de terra, mudou de posição
sentou-se no banco à beira da estrada
olhou ao longe e regressou ao coração.
De bicicleta pelos atalhos da imaginação.
Ali sol da vida era o nome
de um antigo barco de pesca
relíquia recuperada ao passado
a descansar na praia da Nazaré
nas areias que me são tão familiares.
Era uma linda recordação do tempo
em que me escrevia todos os dias
como quem escreve no seu diário
dos seus sonhos e dos seus desejos
mas o passado não faz parte do futuro.
O presente agora é tão breve e tão curto
não lembra a flor que se abria de um olhar
o nevoeiro desaparecer e a vida recomeçar
para ver o dia nascer e o sol subir no céu.
Para o mar acalmar e o barco voltar ao mar.
Dizem que as saudades do vento
se perderam nos atalhos escuros
nas algibeiras rotas onde guardava
a tristeza que se espalhava pelo chão.
Que nada ficou para lembrança
desses dias e meses tão intensos
da antiga fascinação e juras eternas
da alegria sem amarras nem fronteiras.
Eram memórias de outros tempos
com as geografias ternas de outros ventos
com pôr de sol e fins de tarde prolongados
- Um casario que trouxesse de volta a paixão.
Noites que não se poderão repetir ou igualar
a não ser que o vento regresse e volte a soprar.
O tempo passou muito depressa
Passeou-se em passo de corrida.
Pelo contrário o tempo não ata nem desata
Como a lesma, não passa, há tempo de sobra.
O tempo tem tempo que dá para dar e vender
Porque o tempo passa o tempo a pisar ovos
Aqui para nós é tempo de o tempo esquecer.
Aproveita enquanto podes e tens tempo
Não tenhas pena do tempo que não viveste
Do tempo vivido, mas em parte desperdiçado.
Pensa se é pouco o tempo que ainda te resta
Se é suficiente e antes de ires desta para pior
Desfruta o tempo e escolhe a melhor companhia.
Tens razão nunca o tempo foi tão raro e tão caro
É urgente libertar e democratizar o tempo.
Envolve-te com o tempo e verás como é bom
Casa-te com ele e terão uns bonitos tempinhos.
Com o tempo o tempo arde até queimar os sonhos
avança e faz dos sonhos a vida, traz os sonhos de volta.
Se para ti é importante vai ao médico, passa pela
farmácia
com cremes e cirurgias disfarça as partes
gastas do tempo
mas nada como dar um bom pontapé no traseiro do tempo.
Vá lá, ganha coragem e troca as voltas ao
tempo
espera por ele à porta do cemitério com uma vela acesa
chama-o pelo nome e oferece-lhe um copo de vinho
bebam juntos à minha saúde na taberna mais próxima.
Atenção, recusa negócios suspeitos com o tempo
seja para antecipar ou para atrasar a partida.
Cuida do tempo de modo que o grande universo
não te caia em cima, não te parta a cabeça.
Aparece em casa e almoça connosco
para o finalizar temos fruta bíblica
umas romãs com muito boa pinta.
Vem de autocarro para poderes beber
a água da torneira que te apetecer.
Introdução tristonha e algo resignada
de quem anda no mundo de olhos abertos
alguém de carne e osso que como muitos outros
já olha mais para trás do que para diante.
Entre tanta gente na paragem do autocarro
um velhote de bengala caminhava inseguro.
Uma velhinha com o carrinho das compras
sem ajuda com dificuldade subia o elétrico.
Os tempos mudaram e a vida também
eu estou aqui para assumir essa realidade
e para a trazer para as minhas palavras
para o meu mundo, o mundo de muitos.
Também para mim a vida que se aproxima.
O mundo em que vive grande parte dos nossos
na solidão com os filhos espalhados e sobrecarregados
o tempo é o artigo mais dispendioso para os idosos.
- Metidos à pressa num lar da terceira idade
da terceira temporada: nascer, viver e morrer.
Duas lágrimas de orvalho / Caíram nas minhas mãos
Quando te afaguei o rosto / Pobre de mim pouco valho
Para te acudir na desgraça / Para te valer no desgosto.
Que podem ou que devem fazer os amantes
Quando chega ao fim a sua viagem a dois?
Rasgar uma a uma as palavras que inventaram
Fazer arder todos os sonhos que partilharam
Amaldiçoar o bom tempo que passaram juntos?
A história começa no degrau à saída da porta
A vida não pára na rua onde estava a sua casa
No canto das aves, nas árvores da sua memória.
Não se pode só assim oferecer a outro alguém.
O que viveram juntos é deles e de mais ninguém.
Para que a vida não tenha pressa em se esquecer de nós
Deixo-te as chaves do meu apartamento e o meu cão
O meu lugar cativo no teatro e as minhas botas de
competição
Guarda como se fossem os teus, os restos do meu coração.
*Fado de João Linhares Barbosa e Pedro Rodrigues
famoso pela voz do imenso fadista Carlos do Carmo.
Põe o microfone na boca
e o dedo no nariz
a palhinha no travesseiro
e os olhos na perdiz.
Se não te sentes bem da azia
bebe uma água das pedras
mais um chá de erva cidreira
e antes de adormeceres
faz uma boa caminhada
por entre a fila das panelas.
Não penses que estou a brincar
mas os mortos que eu conheço
e que são uns grandes armários
aos sábados passeiam barulhentos
pelas avenidas em grandes grupos.
Gente que gosta de dar nas vistas
mais resmungões que os meus amigos
- Malta de pé ligeiro e coração ao alto.
Percebe-se porque preferimos os vivos.
Olha, vai ver se chove, meu capitão.
Dorme dorme velho boi manso.
Há tanta calma no supermercado.
Só lá vamos com nova insurreição.
Padre e sacristão
Papaia ou enteada
Popular, mas não populista
Pintassilgo feito grande pavão.
Mais a puta que os pariu
As mães são umas santas
Não têm culpa nenhuma
De terem parido merdas destas.
A morte anda por aí, pela rua
À procura, à caça dos caídos
Sabe quais são os mais indefesos
Discriminados desde a nascença.
Quem paga é que escolhe a música
Dizia o barrigudo com ar de gozão
Gordo o regente da orquestra do país
Sorria cínico com o seu ar de aldrabão.
Padre e sacristão, merdas ou patos bravos
Vivos a cheirar a morte, foda-se que são tantos.
Nenhum tirano se escapa ao chamamento divino
Ir para o inferno é apenas uma questão de tempo.
Em novembro a meio da manhã
não se via nem uma nesga do céu
um vaga-lume, as luzes de um avião.
Será o sinal do próximo infortúnio
a mensagem das trevas e da escuridão?
Hitler foi a eleições, ganhou e de seguida
proibiu todos os outros partidos políticos.
Se Stálin tivesse ido a eleições multipartidárias
ganhava de caras com maioria absoluta.
Querem-nos convencer que o gajo se eleito
pelos portugueses será um missionário legítimo.
É tempo de dizer chega a esse filho da truta!
Ou está na hora de rasurar a alma, fechar a boca
de esconder os olhos e partir para bem longe?
O estado em que as coisas estão
Para o Meu Velho Amigo e Antigo Colega Manuel Alexandre, Viena
Não haja dúvidas que com o estado em que as coisas estão
O melhor é usar a cabeça como se estivesse no congelador
talvez assim tenhamos hipóteses de não sermos
submetidos
nem sermos esmagados pelo cilindro impiedoso e facínora
dos fantasmas antigos com as roupas de gala da mentira.
Quando as rotundas livres dos nossos dias
estão a ser bloqueadas pelo passado criminoso
com discursos e narrativas cada vez mais perigosas
é normal andarmos com as dúvidas e as angústias
sobre o futuro dos nossos filhos e dos nossos netos.
Se ajuda, arranja um canivete suíço e fura-lhe os pneus
espalha tachas e pregos pelas estradas de acesso
e pelas ruas da cidade da nossa última esperança
em perigo de ser ocupada pelos inimigos da liberdade.
Os abutres e as hienas esperam pacientes pelo
autoflagelo
pelo definhar da elitista democracia em passo
apressado
para o abismo, por vulnerável e
corrupta, ingénua e indefesa.
- O melhor regime político criado pela inteligência humana.
Pergunto, quem foi o espertalhão que disse
que as manhãs mais frias não ajudam a viver
e o azarado outubro não dá para aprender?
Quem foi o pastor profeta-mor que afirmou
que as derrotas dolorosas não ajudam a crescer?
Fica a saber vigarista bem-falante da aldrabice
O nosso tempo não foi ontem nem é amanhã.
O nosso tempo é hoje para ser vivido aqui e agora.
Não vamos permitir a vossa marcha sobre Lisboa.
O vosso passeio anunciado até às varandas do poder
Olha que ainda há muito para caminhar até lá chegar.
Ó suas folhas da faia estão muito enganadas!
Múmias do mais rasca, perfumadas e mascaradas
de jovens, eles de gravata e elas de blusas apertadas
esqueceram-se que o primeiro milho é para os pardais?
Sexta de manhã e o sol brilha simpático
mas em dia bastante frio para o outono.
Eu estou sentado no elétrico de costas
à direção para a frente é que é o caminho.
Permito-me atalhar, fazer um desvio
ao itinerário principal do meu pensamento.
Não há cores com esta variedade e intensidade
um tal colorido como nesta estação do ano.
É porque o Bom Deus tinha e tem bom gosto
e com a sua bondade e empatia quer partilhar
e tornar acessível a todos a beleza natural
a deslumbrante natureza que Ele próprio criou.
Neste meu divagar lembrei-me de Dostoievski
figura maior da literatura russa e mundial.
“Se Deus não existisse, tudo seria permitido".
Francamente, quem sou eu para contradizer.
Não é preciso estar muito bem informado
para dizer, tanto mal que foi e continua a ser feito
em nome de Deus, tanta atrocidade e tanto crime
que nem o pior diabo tinha, tem talento para tanto.
O riacho do bosque não corria
estava transformado, parecia ser
um manto, um tapete dourado e roxo
amarelo ou avermelhado do outono
que volta todos anos, cada ano
para nos mimar e nos deslumbrar.
O pensamento levou-me para longe
talvez ela já não se lembre onde e como
por acaso sem saber nem se conhecerem
pela primeira vez passearam lado a lado.
Foi na concorrida zona pedestre
que começa junto ao velho paredão
e segue pela marginal que antecede
as areias húmidas do meu coração.
Entre guerras, invasões e bombardeamentos
num mês de junho que merecia muito mais
o primeiro período de férias tinha acabado.
Era segundo as previsões, sem uma brisa
o começo da semana mais quente do ano
com as máximas muito acima dos trinta.
Apesar disso deixei o carro e a gravata em casa
fui de transportes públicos até ao escritório
e poder ler o semanário sobrevivente da oposição.
Esperei na paragem e entrei pela porta da frente
era uma senhora e como costume disse bom dia
sentei-me em frente lugar que dá uma boa visão.
Chamou-me a atenção a sua cuidadosa condução
e mais ainda as suas mãos esguias e elegantes
- As unhas pintadas da motorista do autocarro.
Se fosse noutros tempos não lhe teria apenas dito
obrigado
pela agradável viagem e profissionalismo que demonstrou.
- Teria perguntado se aceitava um café depois do trabalho.
Para a Marta
Itinerários, Pensamentos e Palavras Soltas.
Recolhidas e escritas durante e depois de O Caminho.
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
Perante o desafio da minha filha Marta, até ao Porto
fomos de avião, ela de Amesterdão e eu de Budapeste
e continuamos de autocarro até Valença do Minho.
Depois, durante seis dias foi a pé e de mochila às costas
grande parte do tempo à chuva até à Praça do Obradoiro
à Catedral de Santiago, fim do Caminho Central Português.
Sem saber vimo-nos no Mercado Medieval de Valença
que decorria na Fortaleza onde estava o nosso alojamento.
- O bem que comemos naquele real e abençoado mercado.
Feliz coincidência, o tema era a Peregrinação do Rei D. Manuel I
a Santiago de Compostela em 1502. Segundo as crónicas
acompanhado por uma grande comitiva de peregrinos-poetas.
Li que dois séculos antes, em 1325, Isabel de Aragão
- Sobrinha da Rainha Santa “Szent Erzsébet” da Hungria -
a nossa Rainha Santa Isabel, padroeira de Portugal
e dos pobres, também fez o Caminho até Santiago.
Deixamos Valença do Minho e iniciamos a nossa peregrinação
O Porriño, Redondela, Pontevedra, Caldas de Rei, Padrón e Santiago.
Gostamos muito da passagem por Tui, depois de atravessarmos
a velha ponte sobre o rio Minho, antiga fronteira entre Portugal
e o Reino de Espanha antes do actual Espaço Schengen.
A O Porriño chegámos sábado à tarde e muito esfomeados
como viria a acontecer em todos os dias seguintes.
O Porriño estava em festa e era ainda maior o contraste
entre a elegância dos locais e os peregrinos malvestidos.
Agora que já sei como acabou esta aventura única
como se fosse a antecipação da chegada anunciada
a um velho cais ao qual antes de morrer teria de voltar.
Como aprendi em jovem vale mais tarde do que nunca.
O passado é meu, o futuro para viver um dia de cada vez.
Pontevedra. Belíssima cidade
com a Basílica de Santa Maria Maior
Igreja barroca da Virgem Peregrina
Colégio da Companhia de Jesus
ou o Convento de San Francisco...
Sentia-se um ambiente nosso, familiar, latino
e depois de tanto palmilhar, soube muito bem
em pleno centro histórico sentar numa esplanada
pedir um café Delta, uma cerveja Estrella Galicia
conversar, olhar a vida e deixar passar o tempo...
As badaladas do sino da torre da igreja vizinha
pareciam tão distantes que se tu estivesses aqui
irias sentir como eu sinto saudade dos velhos amantes
cantados por Brel e que eu sempre quis reescrever.
Padrón. “Os pementos de Padrón, uns pican e outros non”
dito popular galego que aprendi na preparação da romaria.
Aqui nasceu Camilo José Cela, viveu e morreu Rosalía de Castro
Mãe da língua e literatura galega. Autora de “Cantares
Galegos."
Além dos pimentos comemos o melhor polvo desta viagem
num restaurante dos 2 que àquela hora tinham a cozinha aberta.
Na rádio ouvia-se não é contigo que vou cozer pão esta noite
passear à beira-rio, colher uma flor, dançar na festa da vila
mas como é resiliente o coração percorre um longo deserto
e na sombra do oásis e nos seus braços, o longe se faz perto.
Há mais de vinte quilómetros que chovia como na rua
sem dó nem piedade de nós que apesar dos ponchos
éramos todos caminhantes encharcados até aos ossos.
Quando ao longe ouvimos a música de um piano
e parecia ser uma peça musical muito conhecida.
Era “O Pianista do Camiño” que numa passagem
para os caminhantes, por debaixo da autoestrada
tocava “Mariage d’amour”, de Paul de Senneville
um grande sucesso mundial por Richard Clayderman.
Comentário a condizer e do fundo do coração
Jeitosa, o nosso também é um casamento de amor
Flor bela e resistente de toda a minha vida.
Chegámos a Santiago de Compostela no dia 11 de setembro
a meio da tarde e com muita chuva. Festejamos o feito.
Lorca: “Chove em Santiago…
Soma e cinza do teu mar
Santiago, lonxe do sol.
Ãgoa da mañán anterga
trema no meu corazón.”
Ficamos alojados no icónico Albergue Seminário Menor
na ala onde não era dormir em beliche, em sala para muita gente
era o luxo de um quarto individual onde cabia um divã e uma mesa.
Sentia-me como um frade, uma freira em clausura. Silêncio e oração.
Somente no dia seguinte fomos à Missa do Peregrino
celebrada no Altar-mor da Catedral. Gostei muito da homilia
e da mensagem de humildade, humanismo e tolerância transmitida.
Foi anunciado que nesse dia tinham chegado 3.500 peregrinos.
À chuva e ao sol, com céu encoberto ou nevoeiro
estamos todos, todos a remar no mesmo barco
na mesma alma, no trilho do mesmo caminho.
Recordo a Taberna a Fuego Lento, encontrada pela fome e cansaço
e onde pedi chouriço assado em álcool. Um grande sucesso!
A Tenda da Rosa em Teo que nos permitiu comer e abrigar da chuva.
“Em cada gota de água há uma história de vida“, li numa fonte pública.
Por aqui bebem e servem o vinho tinto gelado em taças de barro.
Nestes dias vimos muitos gatos, sobretudo todos brancos ou pretos
casas com muitas parreiras de uva e a Marta sempre que podia
tirava uma esgalha e dividia comigo. Tão doces, tão saborosas.
O último café foi no aeroporto de Santiago Rosalía de Castro. Bonito!
Com a minha primeira experiência do Caminho
e com as leituras que fiz, houve um conjunto de ideias
de pensamentos e palavras que mexeram comigo
de forma mais insistente do que é costume.
- Compaixão. Esperança. Essência. Contemplação
Verdade. Serenidade. Tolerância. Peregrinos. Peregrinação.
Os sentimentos nobres da alma ajudam a dormir melhor.
É tempo de ser autêntico, de não esquecer a verdade
a quem sempre te quis e te ama. Não sei se venho do avesso
se muito ou pouco mudado, sei que não venho o mesmo.
Finisterra. Será que é aqui, sentado neste penhasco negro
que o meu coração acaba, que o meu coração começa?
Caminhar e deixar o pecado em Santiago
como cordeiro de Deus e homem do povo.
Do incenso, sair dali purificado por dentro
e por fora, limpo como uma pomba branca
como um melro negro firme como o granito.
Confissão. Por muito que custe fazer andar para trás
o filme da nossa história, não faz nenhum sentido
nem com recurso ao marketing mais barato, sair de Santiago
para o mundo com a dignidade e a consciência empacotadas.
Destacar a nobreza plebeia da alma
quando em voz baixa diz o que pensa
não se esconde nem tem medo de ser sincera.
Durante muito tempo foi minha opinião
que se necessário, saber usar no momento certo
uma meia-verdade ou uma meia mentira
era melhor que a verdade, uma mentira piedosa.
Finalmente já sei que não há nada
como dizer a verdade tal com ela é
ser também coerente com o verbo.
Não pregar água e continuar a beber vinho.
Não se ama quando se quer ou quando apetece
mas quando se encontra a pessoa que se precisa.
Não a deixe partir por falta de comparência
por não a valorizar devidamente como merece.
Na parede duma casa antiga estava escrito:
- "Olha, aqui não há solidão, não te sintas só."
No Caminho para Santiago até as bruxas más
mudam e se transformam em fadas madrinhas.
Há muito tempo que não sentia
a beleza e a imensidão do silêncio
a profundidade paciente do pensamento
como senti durante os dias do Caminho.
Um certo dia escreveu, mas já se esqueceu do que disse
- É sempre uma verdadeira aventura ler o que publicas.
Há viagens que nunca se fariam se não fossem as leituras.
Se não fosse o desejo de estar contigo, de estar presente.
Agora que aqui estive quero deixar escrito
que valeu a pena ter vindo ter feito este esforço
ter aceitado o convite da minha filha Marta.
Sabe-se que o pescador São Tiago (Santiago Maior)
foi um dos três primeiros apóstolos de Cristo
Foi decapitado, o seu corpo veio de Jaffa numa barcaça
de pedra até Compostela. Campo das Estrelas.
É o Padroeiro da Galiza, Espanha... Protector de muita gente
- Camionistas, chapeleiros, tanoeiros, alquimistas
farmacêuticos, veterinários… dos cavaleiros
dos peregrinos, das peregrinações e dos caminhos.
Por momentos sem palavras em sonhos breves e curtos
das noites bem dormidas do cansaço de tanto caminhar
vi-me de volta ao passado que sensato me indicava o futuro.
O trilho certo do resto do tempo que me falta viver.
Confesso que não foi no Caminho ou em Santiago que senti o clique
foi nas 3 horas no aeroporto de Barcelona em trânsito para Budapeste.
- As luzes e as estrelas da iluminação na minha alma caminhante.
Santiago de Compostela, Barcelona e Budapeste, setembro de 2025
Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.
Fernando Pessoa (Ricardo Reis)
2024 - 2025
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
“Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração”
(Em “A casa onde às vezes regresso”)
José Tolentino Mendonça, Cardeal e Poeta
Em tempo de juntar o sumo ao sabor das palavras
a laranjeira abria os braços e fechava as janelas
na cidade portuária com as famosas marginais
naquela primeira tarde de todas as nossas festas.
Com o que se apreendia na varanda frente ao mar
fosse ou não fosse entre as sombras das laranjeiras
plantadas na continuação das longas avenidas
aquela era a hora certa para se começar a labutar.
O que se sabia não dava para enganar a inspiração
nem para escorregar na pedra húmida do passeio
mas para sentir nos dedos o perfume do vestido novo.
- Madura, a laranja doce só se descascava à mão.
Quem tem mãos de café bebido morno
sem açúcar à mesa depois do almoço
ou já frio por causa das palavras cruzadas.
Quem tem mãos de chá bem quente
bebido aos poucos com a vizinha
enquanto põem as novidades em dia.
Quem tem dedos de fio de crochê
e arte da malha cada vez mais na moda
pode esperar com a migração para o tricô.
Quem tem mãos de plantar rosas
é de não se deixar picar pelos espinhos
desistir nos subúrbios do primeiro encontro.
Quem tem dedos de erva suave
de doce acariciar a cabeça do seu homem
não deixa a conversa das promessas a meio.
Quem tem mãos de água de lavar alface
em água corrente juntamente com os tomates
para o aperitivo da noite nos festejos da paixão.
Quem tem dedos de desabotoar a camisa
de não se ficar apenas pelas folhas verdes
e descer até ter a massaroca bem segura.
Tem de se proteger na primavera e no verão
para não ter as mãos todas esgadanhadas
por tanto tempo de volta das ervas daninhas.
Na rua dela ninguém dizia como ela
como se falar com gosto e convicção
fosse a bandeira que pendurava à janela
Que deixava mostrar alguns seus segredos
enquanto afinava o refrão da nova canção
e decorava as palavras para os festejos
Tinha uma graça única ao encurtar a roupa
esticar e estender a mais íntima na cadeira
deixar para a imaginação a cor da sua coisa
Loisas e buracos de coelhos sentada no sofá
mais parecia estar deitada de perna aberta
jurava que as maçãs do peito sabiam a maracujá
Mostrava quase tudo sem mostrar quase nada
aos que passavam em frente do seu prédio
e olhavam para dentro da alcatifa autoestrada
Olhavam com esperança de ser agora ou nunca
ter a aplicação de usar primeiro e pagar depois
passar as férias da vida na via verde da cama.
Foi à farmácia do seu bairro pedir um gel
talvez uma pomada para aliviar o ardor
que sentia no peixinho vermelho do seu mar
na recolha matinal das rendinhas da pesca.
Eu tenho um creme, uma boa pomada
ideal para esse mal e que vai ajudar
para esse bem que é tão bom ter
disse-lhe segura de si a farmacêutica.
Essa perturbação costuma aparecer
quando a actividade é muita e persistente
quando se tem um esposo como deve ser
guarda-o, rematou com um sorriso brincalhão.
Vejam lá, o sonso sortudo do meu marido
a ficar com a fama, os louros do meu falcão
pensou sorrindo, morrendo já de saudades.
Cala-te boca, comichão, aguenta-te coração!
No assento traseiro do Mini Morris não havia lugar
e não funcionava a regra inclusiva do cheira bem
de haver sempre lugar para mais uma colega
se usasse rexina e curtinha mini-saia à maneira.
Ousadias que as avós de hoje sorriem ao lembrar.
Parece que ainda agora há por aí muita avó
para quem a porta afinada da rua não se fechou
e se pode convidar para dançar e adultos namorar.
Muito se dançava e apertava nas festas de garagem
e até se alinhavaram casamentos para a vida inteira.
Sentia-se a pressa de viver para antecipar o futuro.
Vai num pé e vem no outro que ela está à tua espera.
Com os pêlos perfeitos bordados a preto e branco
com a calcinha prendada já sentada na calçada.
Ambas portuguesas ambas de qualidade superior.
Moderna mas clássica com um sotaque encantador.
De arte antiga daquela que deixa e fica na memória.
Das descobertas das coisas boas desse grande amor.
Se fosse cenoura seria como uma berinjela
de berbequim na mão de volta da donzela
seria beterraba ou pepino para salada
um quilo de berbigão afogado na panela
para condimentar a vida do soldado sentinela.
Dizia cosmopolita, amassado de tanto calor
- São couves ou nabiças de Lisboa
talvez grelos e grelinhos de Bruxelas
calções e blusas curtas de Varsóvia.
A ver o sol e levar com a chuva em cima.
Na Hungria quando faz sol e chove ao mesmo tempo
diz-se que o diabo está a dar porrada na mulher.
Não, a nenhuma, nem mesmo a mulher do diabo!
Diabo sê por uma vez um bom gajo
aproveita para tomares banho com a chuva
e a boleia do sol para secares depressa.
Corre para a cozinha e faz tu o almoço
vais ver como vais gostar e arranja tempo
para a melhor sobremesa da tua cara-metade.
Nestes momentos de olhar para trás
é bom não esquecer o grande carvalho
que bruta a tempestade de raiz arrancou
e por muito pouco não nos atingiu
Nem a janela que a corrente de ar
e que o vento forte mandou abaixo
com os vidros feitas lâminas da morte
a cair com estrondo a um nada de nós
Ou quando com as filhas lá atrás
o carro derrapou no gelo que fina
a neve disfarçava e tombou na berma
e nenhum de nós sofreu um arranhão
Que sem uma manifestação de gratidão
e de termos passado uma parte da vida
a arriscar a sorte e a esticar o destino
a nossa boa estrela nunca nos abandonou.
O dia acordou farrusco nos seus olhos
anunciava tempestade ou muita chuva.
A noite deitou-se em luz e solidão
adivinhava o adeus final da madrugada?
Monótono o tempo passava vagaroso
lá em casa já todos tinham partido.
De manhã não havia quem fosse preciso
despertar para não se atrasar no trabalho.
A vida tinha-se tornado quase vazia
não tinha de esperar ninguém à porta
ou o tocar do telefone sobre a mesinha
a avisar do atraso e da hora da chegada.
Resignada e em paz pedia a Deus
que quando, fosse rápido e sem demoras
não deixasse más recordações aos seus
e se lembrassem das tantas horas boas.
Pai vem por mim antes que a doença
faça de mim quem eu não sou!
- Filha, irmã, esposa e mãe de 4 crianças. Viveu 48 anos.
Agora que os familiares e tantos amigos
Em triste silêncio e emoção mal contida
Com as condolências de uma rosa branca
A depuseram nas jarras e no tapete da igreja
Junto à sua fotografia repleta de vida
- Tão bem, tão feliz e juvenil que ela estava!
- Agora que tanta gente, tantos amigos
Se juntaram no templo da minha vida
Para se lembrarem e me despedirem
Na casa de Deus que devota frequentei
Como se fosse a minha segunda casa
Onde me preparei para a vida e para a morte.
Deixem-me que seja eu a organizar pela última vez
Recordando os versos tão bem declamados:
- Não me procurem que eu não estou aí
Não chorem por mim que eu não morri.
- Ali está o mar e aqui está o meu barco
Que me há-de navegar ao reino de Deus.
Última mensagem de mãe em sofrimento profundo:
- Quero terminar dizendo do fundo do coração
Que eu seja a última mãe a sepultar a sua filha
Que mais nenhuma mãe ou pai tenha de passar
Pelo que a nossa família passou nos últimos meses.
Bom Deus cuida e toma conta da nossa Bea.
Gioconda Belli: "Nunca pensé que Daniel Ortega
sería un peor tirano que Somoza"
Não basta ser aos vinte anos revolucionário
e aos quarenta ou sessenta ser o contrário.
Não passa de um anticomunismo primário
dirão os comunistas, é um reles reacionário.
Nós vamos caminhar com Marx e o leninismo
não vamos perder nem um minuto contigo
apenas esfregar-te na tromba a bandeira da vitória
e pôr-te no teu lugar, no caixote do lixo da história.
É assim que oferecem de borla e cantando
a alma militante aos novos camaradas Stalin
sejam eles Ortega, Maduro, Xi, Kim Jong ou Putin.
A putina que os pariu, estou-me borrifando.
O quanto eu solidário e à distância
vivi a revolução sandinista!
Nicarágua
Daqui das margens do Tejo
com as ondas-curtas da esperança
vislumbro em segredo Esteli
povoação guerrilheira cercada
pelas forças leais ao governo
muitos seios de linho
muitos sexos de ferro a arder.
À distância tudo indica
ser possível que o massacre
da razão seja sinónimo de futuro.
Quando Esteli cair
as formigas da sublevação
serão sepultadas colectivamente
provavelmente numa mina abandonada...
Escrito em outubro de 1978 (Excerto)
Talleres de poesía da Nicarágua
A Nicarágua a Revolução Sandinista
fez parte do meu itinerário romântico-
-libertário de um mundo melhor para todos.
Doce ilusão. Sei muito bem. Pura ilusão.
No “Ciclo das Palavras” com 82 textos
vários foram dedicados à Nicarágua
ao Comandante Zero Eden Pastora
à Comandante Dois Dora María Téllez
ao poeta e sacerdote católico Ernesto Cardenal
à cidade de Esteli e a outros momentos
dos avanços e recuos no cerco libertário a Somoza.
Os três há muito que optaram pela dissidência activa
por coerência e em ruptura com o sandinismo oficial...
Um excerto. Escrito em outubro - novembro de 2007
Eu mudei muito desde 1978-1979, mas o camarada
Daniel Ortega com a sua tirania mudou muito mais.
Sinto um nojo profundo por este tirano, por
este ditador.
Excertos poéticos e diálogo poético
com Nina G. Poetisa luso-francesa
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
Dá-me tempo, mais umas semanas
de paciência para que eu sem pressas
de manhã à noite te possa mostrar
e com o meu olhar fazer-te acreditar
que tenho este mundo e o outro
para te receber e nos abrigar do vento.
Mundo que inventei entre pão e migalhas
entre beijos nossos e muitas palavras.
Permite-me que traga para a mesa
as melhores lembranças do futuro
enquanto levemente te acaricio o rosto
e tu seduzes com o teu perfume de rosa.
"Deixa-me ser um poema
serei casa e palácio, água e pão
serei o mistério de vida
que se deleita na tua mão."
Se me deixares pegar-te pelo braço
serei vinha e pomar de laranjeiras
serei horta e plantação de oliveiras
e do teu regresso farei nosso o abraço.
Ao desfolhar as notas e apontamentos
que tinha guardado para o presente incerto
encontrou um excerto que lhe fez lembrar
dias menos inquietantes, mais afirmativos.
"Foi em travessa
de porcelana portuguesa
que ao seu homem toda nua
se ofereceu no tampo da mesa."
Sim, na conversa desenvolta e fluída
lábia era coisa que não lhe faltava
e quando em condimentado aconchego
tinha sempre troco no bolso do mamilo.
Ninguém lhe acompanhava o passo pela praça
quando jeitosa e segura de si afirmava com graça
- Bebo leite magro porque tenho o sangue gordo
dizia com um sorriso bonito, um sorriso maroto.
Não te esqueças de mim
quando a distância for muita
e a esperança for pouca
do amor se cultivar no jardim.
Não te esqueças de mim
quando os dias são noites escuras
as manhãs já não tropeçam em nós
e nas madrugadas não te chamar jasmim.
"Não te esqueças de mim
quando no copo do teu vinho tinto
vires desenhar um outro sorriso.
Teu labirinto, teu absinto."
Lembra-te de mim, nunca te esqueças
mesmo de improviso, mesmo só por instinto
o teu melhor vinho são das uvas do meu corpo.
Para ti é infinita a areia fina do meu sorriso.
Nessa época havia uma canção
que mal se ouvia na rádio
talvez por excesso de erotismo
numa terra de costas para o mundo.
Talvez por sermos muito pudicos
num país desde sempre adiado
ou os brandos costumes elogiados
de um pequeno povo tão resignado.
A letra dizia “Tu que fazes
do meu coração a tua morada
dos meus seios o teu passeio
dos meus olhos o teu jardim
Que fazes da minha boca teu pão
da minha água teu vinho,
do meu prazer uma canção.”
Parece que comprometia a alma da nação.
Foi quase excomungada
por uma padralhada que só via pecado
onde o amor era assim cantado
onde quase nua a paixão se sentia
e o prazer dos amantes se mostrava.
Não era preciso ser muito perspicaz
para ver que aquela amizade
era do melhor que havia por ali.
As surpresas ainda vinham a caminho
e já os adjectivos se iam esgotando
com a sua pertinência e encantamento.
Escrevia em verso e com rimas gostosas
que ficavam, não passavam despercebidas.
Experiente sabia destacar-se como poucas.
“Madura, dizem de ti
como se estar madura
não fosse sinónimo de doçura.”
Apetecia saltar as regras da discrição
apetecia comentar e perguntar-lhe a sorrir
qual era a parte mais doce da sua fruta.
Perguntar com quem estava a sonhar
e imaginar a resposta mais adocicada
- A sonhar como seria viver contigo.
Dá-me um minuto de atenção
mesmo que esse minuto se faça horas e dias
tu já tenhas há muito desligado o telefone
e eu continue a falar sem parar nem respirar.
Há muito tempo que te queria dizer
que esta nossa linda aventura
tão pouco comum, tão fora de caixa
não pode acabar sem o último adeus
sem um último encontro de despedida.
Sei muito bem, não preciso que repitas
que tudo tem um princípio e um fim
como há tempos que a ribeira vai cheia
e outros que está seca sem pinga de água.
Não é por isso que o pintassilgo deixa de
cantar.
Quero que saibas de uma vez por todas
faminta e despida de qualquer tola autoestima
"sem ti não há sol que me aqueça
nem pão que me apeteça".
"Se queres Amor que te esqueça
devolve-me o amor que te dei.
Eu só te posso esquecer
se esquecer que te amei."
Anda vem para a roda dançar
manda a tristeza para bem longe
sente o rodopio ali à volta da fonte
e não te importes se não sou o teu par.
Sente de perto os odores fortes da festa
os calores que colam a pele ao vestido
e os alertas tímidos do coração adormecido.
Adeus velha paixão e depois começa outra.
Não te esqueças que a vida é um sopro
e quando damos por ela já está de saída
não desperdices os momentos de alegria
e faz do novo romance uma ousada fantasia.
Leitor que nunca me vais ler
sabes é em ti que estou a pensar
é para ti que estou a escrever.
Escrevo sabendo quão ingrato
é o papel do autoproclamado
escritor anónimo e desconhecido.
Como já antes escrevi não é por não ser lido
nem saberem de mim que vou desertar
as palavras com que me levanto e caminho.
Hoje com um jovial e acrescido optimismo
gostaria de afirmar que não conheço
ninguém que seja feliz sozinho.
Não estou a dizer que não há pessoas
que estão sozinhas e são felizes
mas eu não conheci nem as conheço.
Procura em cada dia a felicidade
o carinho que faz bem e faz viver
a ternura que não tem tempo nem idade.
A felicidade é como uma boa cola
cola tudo o que há de melhor entre nós
cola os sentimentos com a alegria da festa.
Procura o amor feliz, o amor verdadeiro
aquele do milagre que quanto mais se dá
mais há para dar no armazém do coração.
"Já fui alameda
praça, largo, avenida.
Já fui caminho, vereda
e hoje se sou beco sem saída
em mim tenho ainda abertas
todas as portas para a vida"
Quem foi que inventou
que a paixão faz crescer asas
e se verdade ensina a voar e sonhar?
Quem foi que escreveu
que grata a resiliência das almas
alimenta a perfeição das palavras?
Quem foi que espalhou ao vento
que o amor quando chega
fica em nós até ao nosso último dia?
"Meu amor como te dizer
que as saudades de ti
faz-me pouco a pouco morrer."
São excertos e migalhas
de um passado que se foi
que saiu de casa de mochila às costas.
- Partiu com a ideia de não voltar.
Excertos e Migalhas (2025)
Para o livro “De mim ficam as Palavras”
Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.
Fernando Pessoa (Ricardo Reis)
2024 - 2025
Que queres de um campo de urtigas?
Searas de trigo, vinhas e cachos de uvas?
Pão e vinho? Em que mundo vives?
Quando amanhã de vez nos faltar a água
mata a sede com as ervas secas do velho rio.
Os mais clássicos lavam as meias à mão
os outros mais modernos lavam-nas ao pé.
Os mais agressivos preferem a pontapé
eu fico com elas calçadas como inspiração.
Aprendi recentemente um conceito novo
sobre a corrupção vertical e horizontal.
Sentada e nua jurava por toda a sua roupa
ser apenas transparente, ser arte erótica.
Se nas montanhas não apanhastes chuva
desce até ao vale e colhe malmequeres
junta os pedaços de sol com carinho
e da planície do coração oferece o raminho
a quem apaixonada, ansiosa te espera.
Os outros não sabiam e eles não queriam
que se soubesse e fosse motivo de conversa.
Antes do primeiro encontro já se conheciam
como se tivessem dez verões de namoro.
Como se vivessem juntos há muito anos.
Persistente a paixão abriu todas as portas
carinhosamente documentada e comprovada.
A doçura avulso das suas palavras amargas
foi detalhadamente divulgada e promovida.
A festa que anunciava foi então apresentada
comunicada pelos olhos lindos da remetente
apreciada e valorizada pelo seu destinatário.
Foi como sempre precisa, criativa e inventiva
como um espelho que à luz reflecte e ilumina.
Simplíssimo tributo a Jorge Mario Bergoglio
mais conhecido por Francisco, Papa do povo.
"O tu o nadie" escreveu Jorge a Amalia
quando tinha apenas 12 anos e acrescentou
"Si no me caso con vos, me hago cura".
Foi certamente um puro sentimento
uma linda história de amor de criança
uma paixão precoce e antes do tempo.
De um menino que tinha olhos para ver
e coração aberto para sentir e imaginar.
Um lindo amor que não se concretizou
Infantil, não se fez adolescente ou adulto.
Em contrapartida para nem tudo se perder
sessenta e tal anos depois tivemos um “porteño"
morador do humilde bairro das Flores
e desde sempre fervoroso do seu San Lorenzo.
Argentino, o primeiro papa latino-americano
da história milenar da sagrada igreja católica.
Tivemos e pudemos admirar, aplaudir e gostar
mesmo os não crentes e ateistas como eu.
Obrigado Francisco, Papa vindo do "fim do mundo".
Desfiladeiro desfolhado da garganta profunda
Desfile descartável de vaidade saloia e antiquada
Para dizer que gajo importante me coube ser
Ter vindo ao mundo para ser gente e convencer.
Podia continuar com prosa que ninguém vai ler
Lembrar que vim até aqui de burro a motor japonês
Que me mandei pintar do avesso para me refazer
Com as paredes de um sol de abril talvez português.
Dizer que é em Bled com esta paisagem maravilhosa
Mais de postal ilustrado do que invenção da alma
Que os pensamentos sobre o mundo me veem à cabeça
Me perturbam, mas não me tiram da vida aqui tão cerca.
Apesar de morar há muito num dos países vizinhos,
ontem foi a primeira que o encontrei e apreciei
caminhei pela obra-prima do senhor escultor Radovna
rio que com o seu metódico trabalho de anos e anos
esculpiu magistral o desfiladeiro Vintgar e lhe deu fama.
Comecei a escrever este apontamento
algures no trilho da Cascata Mostnica
e o rio de montanha com o mesmo nome
onde o elefante que se perdeu veio matar a sede
no caudal das águas que alimentam o Lago Bohinj.
Uma deliciosa queda de água quase anónima
logo no início e no final de uma difícil subida.
Chama-se ponte do diabo porque para um precipício
com aquela altura e perigo não havia mais ninguém
com tomates para a construir que não fosse o diabo.
Matreiro e velhaco impôs uma condição
a alma do primeiro a atravessar a ponte
seria sua propriedade para a eternidade.
O bispo da terra decidiu contornar o assunto.
O sacrificado foi um cão enganado por um osso.
Se fosse agora seria o bonito caía a ponte e a
Trindade
os amigos dos animais não deixariam a coisa pela lenda.
Para amenizar o conflito fala do que vistes
- As pedras não crescem nas árvores
mas as árvores crescem nas pedras.
No caminho de Savica é proibido pescar
desaconselhável desejar peixe frito
fotografar e partilhar avisos de zona
- Pela gargalhada aqui há gato
porque nesta terra zona escreve-se cona.
Não me levam a mal, mas por vezes é bom recordar
- Em Mostnica e Savica o eco barulhento das águas
fazia-me lembrar o mar da Nazaré a labregar.