quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Palavras do eléctrico ou o eléctrico das Palavras / 5

 

2024 – 2025

Para o livro “De mim ficam as Palavras”


Conto-te a minha vida

 

“Paga-me um café e conto-te a minha vida”

(Em “Murmúrios do mar”)

 De José Tolentino Mendonça, Cardeal e Poeta

 

Nasci nos meados do século passado 

em Amiais de Baixo, lugar de gente orgulhosa 

da sua terra que cresceu nas margens da ribeira. 

Uma aldeia entre cabeços no Ribatejo profundo.

 

Ali, durante 3 semanas frequentei a escola primária

e mal sabia quem era quando mudamos para a cidade. 

Foi em Santarém que fiz os 7 anos e os 21 em Budapeste

e aos 70 anos se ainda cá estiver por aqui vou continuar.

 

Membro de uma feliz empresa familiar luso-húngara 

sou pai de 3 filhas e 1 filho e avô de 2 netos 

e espero que com o tempo venha mais gente nova. 

Com sorte nos últimos 37 anos em nome de Portugal

fiz da diplomacia económica a minha profissão.

 

Jovem, desde 1974 que nunca esqueci ou desertei

as palavras da poesia e não será com esta idade 

e os cabelos brancos que vou desistir de escrever

histórias vividas ou inventadas para me entreter.

 

Acabou-se a inspiração? Parece que não 

apenas mudou de terra, mudou de posição 

sentou-se no banco à beira da estrada 

olhou ao longe e regressou ao coração.

De bicicleta pelos atalhos da imaginação.


Sol da vida

 

Ali sol da vida era o nome 

de um antigo barco de pesca 

relíquia recuperada ao passado 

a descansar na praia da Nazaré 

nas areias que me são tão familiares.

 

Era uma linda recordação do tempo 

em que me escrevia todos os dias 

como quem escreve no seu diário 

dos seus sonhos e dos seus desejos

mas o passado não faz parte do futuro.

 

O presente agora é tão breve e tão curto 

não lembra a flor que se abria de um olhar 

o nevoeiro desaparecer e a vida recomeçar 

para ver o dia nascer e o sol subir no céu.

Para o mar acalmar e o barco voltar ao mar. 


As saudades do vento

 

Dizem que as saudades do vento

se perderam nos atalhos escuros 

nas algibeiras rotas onde guardava 

a tristeza que se espalhava pelo chão.

 

Que nada ficou para lembrança  

desses dias e meses tão intensos 

da antiga fascinação e juras eternas

da alegria sem amarras nem fronteiras.

 

Eram memórias de outros tempos 

com as geografias ternas de outros ventos 

com pôr de sol e fins de tarde prolongados

- Um casario que trouxesse de volta a paixão.

 

Noites que não se poderão repetir ou igualar  

a não ser que o vento regresse e volte a soprar. 


O primeiro tempo

 

O tempo passou muito depressa 

Passeou-se em passo de corrida.

Pelo contrário o tempo não ata nem desata

Como a lesma, não passa, há tempo de sobra.

 

O tempo tem tempo que dá para dar e vender

Porque o tempo passa o tempo a pisar ovos 

Aqui para nós é tempo de o tempo esquecer.

 

Aproveita enquanto podes e tens tempo 

Não tenhas pena do tempo que não viveste

Do tempo vivido, mas em parte desperdiçado. 

 

Pensa se é pouco o tempo que ainda te resta 

Se é suficiente e antes de ires desta para pior 

Desfruta o tempo e escolhe a melhor companhia. 

 

Tens razão nunca o tempo foi tão raro e tão caro

É urgente libertar e democratizar o tempo. 

Envolve-te com o tempo e verás como é bom 

Casa-te com ele e terão uns bonitos tempinhos.


O tempo segundo


Com o tempo o tempo arde até queimar os sonhos 

avança e faz dos sonhos a vida, traz os sonhos de volta.

Se para ti é importante vai ao médico, passa pela farmácia 

com cremes e cirurgias disfarça as partes gastas do tempo 

mas nada como dar um bom pontapé no traseiro do tempo.

 

Vá lá, ganha coragem e troca as voltas ao tempo 

espera por ele à porta do cemitério com uma vela acesa

chama-o pelo nome e oferece-lhe um copo de vinho 

bebam juntos à minha saúde na taberna mais próxima.

 

Atenção, recusa negócios suspeitos com o tempo 

seja para antecipar ou para atrasar a partida. 

Cuida do tempo de modo que o grande universo 

não te caia em cima, não te parta a cabeça. 

 

Aparece em casa e almoça connosco 

para o finalizar temos fruta bíblica 

umas romãs com muito boa pinta. 

Vem de autocarro para poderes beber 

a água da torneira que te apetecer.

 

Terceira temporada

 

Introdução tristonha e algo resignada 

de quem anda no mundo de olhos abertos

alguém de carne e osso que como muitos outros 

já olha mais para trás do que para diante.

 

Entre tanta gente na paragem do autocarro 

um velhote de bengala caminhava inseguro.

Uma velhinha com o carrinho das compras

sem ajuda com dificuldade subia o elétrico.

 

Os tempos mudaram e a vida também 

eu estou aqui para assumir essa realidade 

e para a trazer para as minhas palavras 

para o meu mundo, o mundo de muitos.

Também para mim a vida que se aproxima.

 

O mundo em que vive grande parte dos nossos 

na solidão com os filhos espalhados e sobrecarregados

o tempo é o artigo mais dispendioso para os idosos.

- Metidos à pressa num lar da terceira idade

da terceira temporada: nascer, viver e morrer.


Duas lágrimas de orvalho*


Duas lágrimas de orvalho / Caíram nas minhas mãos
Quando te afaguei o rosto / Pobre de mim pouco valho
Para te acudir na desgraça / Para te valer no desgosto.

 

Que podem ou que devem fazer os amantes

Quando chega ao fim a sua viagem a dois?

Rasgar uma a uma as palavras que inventaram 

Fazer arder todos os sonhos que partilharam

Amaldiçoar o bom tempo que passaram juntos?

 

A história começa no degrau à saída da porta

A vida não pára na rua onde estava a sua casa 

No canto das aves, nas árvores da sua memória.

Não se pode só assim oferecer a outro alguém. 

O que viveram juntos é deles e de mais ninguém. 

 

Para que a vida não tenha pressa em se esquecer de nós 

Deixo-te as chaves do meu apartamento e o meu cão 

O meu lugar cativo no teatro e as minhas botas de competição 

Guarda como se fossem os teus, os restos do meu coração.

 

*Fado de João Linhares Barbosa e Pedro Rodrigues 

famoso pela voz do imenso fadista Carlos do Carmo.


Uma água das pedras


Põe o microfone na boca 

e o dedo no nariz 

a palhinha no travesseiro 

e os olhos na perdiz.

 

Se não te sentes bem da azia 

bebe uma água das pedras 

mais um chá de erva cidreira 

e antes de adormeceres 

faz uma boa caminhada 

por entre a fila das panelas.

 

Não penses que estou a brincar 

mas os mortos que eu conheço 

e que são uns grandes armários

aos sábados passeiam barulhentos

pelas avenidas em grandes grupos.

 

Gente que gosta de dar nas vistas

mais resmungões que os meus amigos 

- Malta de pé ligeiro e coração ao alto. 

Percebe-se porque preferimos os vivos.

 

Olha, vai ver se chove, meu capitão. 

Dorme dorme velho boi manso.

Há tanta calma no supermercado. 

Só lá vamos com nova insurreição. 


Nenhum tirano se escapa

 

Padre e sacristão 

Papaia ou enteada

Popular, mas não populista 

Pintassilgo feito grande pavão. 

 

Mais a puta que os pariu 

As mães são umas santas 

Não têm culpa nenhuma 

De terem parido merdas destas.

 

A morte anda por aí, pela rua 

À procura, à caça dos caídos 

Sabe quais são os mais indefesos 

Discriminados desde a nascença.  

 

Quem paga é que escolhe a música 

Dizia o barrigudo com ar de gozão 

Gordo o regente da orquestra do país 

Sorria cínico com o seu ar de aldrabão.

 

Padre e sacristão, merdas ou patos bravos

Vivos a cheirar a morte, foda-se que são tantos.

Nenhum tirano se escapa ao chamamento divino 

Ir para o inferno é apenas uma questão de tempo.


Rasurar a alma e partir para longe

 

Em novembro a meio da manhã 

não se via nem uma nesga do céu 

um vaga-lume, as luzes de um avião.

Será o sinal do próximo infortúnio 

a mensagem das trevas e da escuridão? 

 

Hitler foi a eleições, ganhou e de seguida

proibiu todos os outros partidos políticos.

Se Stálin tivesse ido a eleições multipartidárias 

ganhava de caras com maioria absoluta.

 

Querem-nos convencer que o gajo se eleito 

pelos portugueses será um missionário legítimo. 

É tempo de dizer chega a esse filho da truta!

Ou está na hora de rasurar a alma, fechar a boca

de esconder os olhos e partir para bem longe?


Status quo

O estado em que as coisas estão 

 

Não haja dúvidas que com o estado em que as coisas estão

O melhor é usar a cabeça como se estivesse no congelador

talvez assim tenhamos hipóteses de não sermos submetidos 

nem sermos esmagados pelo cilindro impiedoso e facínora

dos fantasmas antigos com as roupas de gala da mentira.

 

Quando as rotundas livres dos nossos dias 

estão a ser bloqueadas pelo passado criminoso

com discursos e narrativas cada vez mais perigosas

é normal andarmos com as dúvidas e as angústias 

sobre o futuro dos nossos filhos e dos nossos netos.

 

Se ajuda, arranja um canivete suíço e fura-lhe os pneus

espalha tachas e pregos pelas estradas de acesso 

e pelas ruas da cidade da nossa última esperança 

em perigo de ser ocupada pelos inimigos da liberdade.

 

Os abutres e as hienas esperam pacientes pelo autoflagelo 

pelo definhar da elitista democracia em passo apressado 

para o abismo, por vulnerável e corrupta, ingénua e indefesa.

- O melhor regime político criado pela inteligência humana.


O nosso tempo é agora

 

Pergunto, quem foi o espertalhão que disse 

que as manhãs mais frias não ajudam a viver

e o azarado outubro não dá para aprender? 

Quem foi o pastor profeta-mor que afirmou 

que as derrotas dolorosas não ajudam a crescer?

 

Fica a saber vigarista bem-falante da aldrabice 

O nosso tempo não foi ontem nem é amanhã. 

O nosso tempo é hoje para ser vivido aqui e agora. 

 

Não vamos permitir a vossa marcha sobre Lisboa.

O vosso passeio anunciado até às varandas do poder

Olha que ainda há muito para caminhar até lá chegar. 

 

Ó suas folhas da faia estão muito enganadas!

Múmias do mais rasca, perfumadas e mascaradas 

de jovens, eles de gravata e elas de blusas apertadas 

esqueceram-se que o primeiro milho é para os pardais? 


Quem sou eu para contradizer

 

Sexta de manhã e o sol brilha simpático
mas em dia bastante frio para o outono.
Eu estou sentado no elétrico de costas
à direção para a frente é que é o caminho.

Permito-me atalhar, fazer um desvio
ao itinerário principal do meu pensamento.
Não há cores com esta variedade e intensidade
um tal colorido como nesta estação do ano.

É porque o Bom Deus tinha e tem bom gosto
e com a sua bondade e empatia quer partilhar
e tornar acessível a todos a beleza natural
a deslumbrante natureza que Ele próprio criou.

Neste meu divagar lembrei-me de Dostoievski
figura maior da literatura russa e mundial.
“Se Deus não existisse, tudo seria permitido".
Francamente, quem sou eu para contradizer.

Não é preciso estar muito bem informado
para dizer, tanto mal que foi e continua a ser feito
em nome de Deus, tanta atrocidade e tanto crime
que nem o pior diabo tinha, tem talento para tanto.


Tapete dourado do outono

 

O riacho do bosque não corria 

estava transformado, parecia ser

um manto, um tapete dourado e roxo

amarelo ou avermelhado do outono 

que volta todos anos, cada ano 

para nos mimar e nos deslumbrar. 

 

O pensamento levou-me para longe

talvez ela já não se lembre onde e como 

por acaso sem saber nem se conhecerem

pela primeira vez passearam lado a lado. 

 

Foi na concorrida zona pedestre 

que começa junto ao velho paredão 

e segue pela marginal que antecede

as areias húmidas do meu coração.


As unhas pintadas da motorista


Entre guerras, invasões e bombardeamentos

num mês de junho que merecia muito mais

o primeiro período de férias tinha acabado.

 

Era segundo as previsões, sem uma brisa

o começo da semana mais quente do ano

com as máximas muito acima dos trinta.

 

Apesar disso deixei o carro e a gravata em casa 

fui de transportes públicos até ao escritório 

e poder ler o semanário sobrevivente da oposição.

 

Esperei na paragem e entrei pela porta da frente 

era uma senhora e como costume disse bom dia 

sentei-me em frente lugar que dá uma boa visão.

 

Chamou-me a atenção a sua cuidadosa condução 

e mais ainda as suas mãos esguias e elegantes

- As unhas pintadas da motorista do autocarro.

 

Se fosse noutros tempos não lhe teria apenas dito obrigado 

pela agradável viagem e profissionalismo que demonstrou.

- Teria perguntado se aceitava um café depois do trabalho.


segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Bom Caminho


Para a Marta

Itinerários, Pensamentos e Palavras Soltas.
Recolhidas e escritas durante e depois de O Caminho.

Para o livro "De mim ficam as Palavras"


Valença do Minho

 

Perante o desafio da minha filha Marta, até ao Porto
fomos de avião, ela de Amesterdão e eu de Budapeste 
e continuamos de autocarro até Valença do Minho.

Depois, durante seis dias foi a pé e de mochila às costas 
grande parte do tempo à chuva até à Praça do Obradoiro 
à Catedral de Santiago, fim do Caminho Central Português. 

Sem saber vimo-nos no Mercado Medieval de Valença 
que decorria na Fortaleza onde estava o nosso alojamento.
- O bem que comemos naquele real e abençoado mercado.

Feliz coincidência, o tema era a Peregrinação do Rei D. Manuel I 
a Santiago de Compostela em 1502. Segundo as crónicas  
acompanhado por uma grande comitiva de peregrinos-poetas. 

Li que dois séculos antes, em 1325, Isabel de Aragão 
- Sobrinha da Rainha Santa “Szent Erzsébet” da Hungria -
a nossa Rainha Santa Isabel, padroeira de Portugal  
e dos pobres, também fez o Caminho até Santiago. 

O Porriño


Deixamos Valença do Minho e iniciamos a nossa peregrinação  

O Porriño, Redondela, Pontevedra, Caldas de Rei, Padrón e Santiago.

Gostamos muito da passagem por Tui, depois de atravessarmos

a velha ponte sobre o rio Minho, antiga fronteira entre Portugal

e o Reino de Espanha antes do actual Espaço Schengen.



A O Porriño chegámos sábado à tarde e muito esfomeados 

como viria a acontecer em todos os dias seguintes.

O Porriño estava em festa e era ainda maior o contraste 

entre a elegância dos locais e os peregrinos malvestidos. 

 

Agora que já sei como acabou esta aventura única 

como se fosse a antecipação da chegada anunciada

a um velho cais ao qual antes de morrer teria de voltar.

Como aprendi em jovem vale mais tarde do que nunca. 

O passado é meu, o futuro para viver um dia de cada vez. 

Pontevedra


Pontevedra. Belíssima cidade
com a Basílica de Santa Maria Maior 
Igreja barroca da Virgem Peregrina
Colégio da Companhia de Jesus
ou o Convento de San Francisco... 

Sentia-se um ambiente nosso, familiar, latino
e depois de tanto palmilhar, soube muito bem
em pleno centro histórico sentar numa esplanada
pedir um café Delta, uma cerveja Estrella Galicia 
conversar, olhar a vida e deixar passar o tempo... 

As badaladas do sino da torre da igreja vizinha 
pareciam tão distantes que se tu estivesses aqui 
irias sentir como eu sinto saudade dos velhos amantes
cantados por Brel e que eu sempre quis reescrever. 

Padrón


Padrón. “Os pementos de Padrón, uns pican e outros non”
dito popular galego que aprendi na preparação da romaria. 

Aqui nasceu Camilo José Cela, viveu e morreu Rosalía de Castro
Mãe da língua e literatura galega. Autora de “Cantares Galegos."
Além dos pimentos comemos o melhor polvo desta viagem
num restaurante dos 2 que àquela hora tinham a cozinha aberta.

Na rádio ouvia-se não é contigo que vou cozer pão esta noite 
passear à beira-rio, colher uma flor, dançar na festa da vila
mas como é resiliente o coração percorre um longo deserto 
e na sombra do oásis e nos seus braços, o longe se faz perto.

Pianista do Caminho

 

Há mais de vinte quilómetros que chovia como na rua 
sem dó nem piedade de nós que apesar dos ponchos 
éramos todos caminhantes encharcados até aos ossos. 
Quando ao longe ouvimos a música de um piano 
e parecia ser uma peça musical muito conhecida. 

Era “O Pianista do Camiño” que numa passagem
para os caminhantes, por debaixo da autoestrada
tocava “Mariage d’amour”, de Paul de Senneville 
um grande sucesso mundial por Richard Clayderman.

Comentário a condizer e do fundo do coração 
Jeitosa, o nosso também é um casamento de amor 
Flor bela e resistente de toda a minha vida. 

Santiago de Compostela


Chegámos a Santiago de Compostela no dia 11 de setembro
a meio da tarde e com muita chuva. Festejamos o feito.

Lorca: “Chove em Santiago…
Soma e cinza do teu mar
Santiago, lonxe do sol.
Ãgoa da mañán anterga
trema no meu corazón.”

Ficamos alojados no icónico Albergue Seminário Menor
na ala onde não era dormir em beliche, em sala para muita gente 
era o luxo de um quarto individual onde cabia um divã e uma mesa. 
Sentia-me como um frade, uma freira em clausura. Silêncio e oração. 

Somente no dia seguinte fomos à Missa do Peregrino
celebrada no Altar-mor da Catedral. Gostei muito da homilia
e da mensagem de humildade, humanismo e tolerância transmitida.
Foi anunciado que nesse dia tinham chegado 3.500 peregrinos.
 
À chuva e ao sol, com céu encoberto ou nevoeiro 
estamos todos, todos a remar no mesmo barco 
na mesma alma, no trilho do mesmo caminho. 

Recordações do Caminho

 

Recordo a Taberna a Fuego Lento, encontrada pela fome e cansaço 

e onde pedi chouriço assado em álcool. Um grande sucesso!



A Tenda da Rosa em Teo que nos permitiu comer e abrigar da chuva.

“Em cada gota de água há uma história de vida“, li numa fonte pública.

Por aqui bebem e servem o vinho tinto gelado em taças de barro.



Nestes dias vimos muitos gatos, sobretudo todos brancos ou pretos 

casas com muitas parreiras de uva e a Marta sempre que podia

tirava uma esgalha e dividia comigo. Tão doces, tão saborosas.

O último café foi no aeroporto de Santiago Rosalía de Castro. Bonito!

Ideias. Peregrinação. Finisterra

 

Com a minha primeira experiência do Caminho 
e com as leituras que fiz, houve um conjunto de ideias
de pensamentos e palavras que mexeram comigo
de forma mais insistente do que é costume. 

- Compaixão. Esperança. Essência. Contemplação
Verdade. Serenidade. Tolerância. Peregrinos. Peregrinação. 
Os sentimentos nobres da alma ajudam a dormir melhor.

É tempo de ser autêntico, de nao esquecer a verdade
a quem sempre te quis e te ama. Não sei se venho do avesso 
se muito ou pouco mudado, sei que não venho o mesmo.

Finisterra. Será que é aqui, sentado neste penhasco negro
que o meu coração acaba, que o meu coração começa?

Santiago. Cordeiro de Deus

 

Caminhar e deixar o pecado em Santiago
como cordeiro de Deus e homem do povo. 
Do incenso, sair dali purificado por dentro
e por fora, limpo como uma pomba branca  
como um melro negro firme como o granito. 

Confissão. Por muito que custe fazer andar para trás 
o filme da nossa história, não faz nenhum sentido 
nem com recurso ao marketing mais barato, sair de Santiago
para o mundo com a dignidade e a consciência empacotadas.

Destacar a nobreza plebeia da alma 
quando em voz baixa diz o que pensa 
não se esconde nem tem medo de ser sincera. 

Ser coerente com o verbo

 

Durante muito tempo foi minha opinião 
que se necessário, saber usar no momento certo 
uma meia-verdade ou uma meia mentira 
era melhor que a verdade, uma mentira piedosa. 

Finalmente já sei que não há nada 
como dizer a verdade tal com ela é 
ser também coerente com o verbo.
Não pregar água e continuar a beber vinho. 

Não se ama quando se quer ou quando apetece
mas quando se encontra a pessoa que se precisa.
Não a deixe partir por falta de comparência 
por não a valorizar devidamente como merece. 

Aqui não há solidão

 

Na parede duma casa antiga estava escrito:

- Olha, aqui não há solidão, não te sintas só.

No Caminho para Santiago até as bruxas más 

mudam e se transformam em fadas madrinhas. 



Há muito tempo que não sentia 

a beleza e a imensidão do silêncio 

a profundidade paciente do pensamento

como senti durante os dias do Caminho. 


Um certo dia escreveu, mas já se esqueceu do que disse

- É sempre uma verdadeira aventura ler o que publicas. 

Há viagens que nunca se fariam se não fossem as leituras.

Se não fosse o desejo de estar contigo, de estar presente.

São Tiago e os caminhos do Caminho

 

Agora que aqui estive quero deixar escrito
que valeu a pena ter vindo ter feito este esforço 
ter aceitado o convite da minha filha Marta. 

Sabe-se que o pescador São Tiago (Santiago Maior)
foi um dos três primeiros apóstolos de Cristo 
Foi decapitado, o seu corpo veio de Jaffa numa barcaça 
de pedra até Compostela. Campo das Estrelas.

É o Padroeiro da Galiza, Espanha... Protector de muita gente
- Camionistas, chapeleiros, tanoeiros, alquimistas
farmacêuticos, veterinários… dos cavaleiros
dos peregrinos, das peregrinações e dos caminhos.

Por momentos sem palavras em sonhos breves e curtos
das noites bem dormidas do cansaço de tanto caminhar
vi-me de volta ao passado que sensato me indicava o futuro.
O trilho certo do resto do tempo que me falta viver.

Confesso que não foi no Caminho ou em Santiago que senti o clique
foi nas 3 horas no aeroporto de Barcelona em trânsito para Budapeste.
- As luzes e as estrelas da iluminação na minha alma caminhante. 


Santiago de Compostela, Barcelona e Budapeste, setembro de 2025


quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Palavras avulso e a granel / 5

 

2024 - 2025


Para o livro "De mim ficam as Palavras"

Na varanda frente ao mar


“Tivesse ainda tempo e entregava-te

o coração”

(Em “A casa onde às vezes regresso”)

José Tolentino Mendonça, Cardeal e Poeta  

 

Em tempo de juntar o sumo ao sabor das palavras

a laranjeira abria os braços e fechava as janelas 

na cidade portuária com as famosas marginais

naquela primeira tarde de todas as nossas festas.

 

Com o que se apreendia na varanda frente ao mar 

fosse ou não fosse entre as sombras das laranjeiras

plantadas na continuação das longas avenidas

aquela era a hora certa para se começar a labutar.

 

O que se sabia não dava para enganar a inspiração 

nem para escorregar na pedra húmida do passeio 

mas para sentir nos dedos o perfume do vestido novo.

Madura, a laranja doce só se descascava à mão.


De volta das ervas daninhas

 

Quem tem mãos de café bebido morno

sem açúcar à mesa depois do almoço 

ou já frio por causa das palavras cruzadas.

 

Quem tem mãos de chá bem quente 

bebido aos poucos com a vizinha 

enquanto põem as novidades em dia.

 

Quem tem dedos de fio de crochê 

e arte da malha cada vez mais na moda 

pode esperar com a migração para o tricô. 

 

Quem tem mãos de plantar rosas 

é de não se deixar picar pelos espinhos 

desistir nos subúrbios do primeiro encontro.

 

Quem tem dedos de erva suave

de doce acariciar a cabeça do seu homem  

não deixa a conversa das promessas a meio.

 

Quem tem mãos de água de lavar alface

em água corrente juntamente com os tomates

para o aperitivo da noite nos festejos da paixão. 

 

Quem tem dedos de desabotoar a camisa

de não se ficar apenas pelas folhas verdes

e descer até ter a massaroca bem segura. 

 

Tem de se proteger na primavera e no verão

para não ter as mãos todas esgadanhadas 

por tanto tempo de volta das ervas daninhas. 

Via verde


Na rua dela ninguém dizia como ela 

como se falar com gosto e convicção 

fosse a bandeira que pendurava à janela

 

Que deixava mostrar alguns seus segredos 

enquanto afinava o refrão da nova canção 

e decorava as palavras para os festejos

 

Tinha uma graça única ao encurtar a roupa 

esticar e estender a mais íntima na cadeira 

deixar para a imaginação a cor da sua coisa

 

Loisas e buracos de coelhos sentada no sofá 

mais parecia estar deitada de perna aberta

jurava que as maçãs do peito sabiam a maracujá

 

Mostrava quase tudo sem mostrar quase nada

aos que passavam em frente do seu prédio 

e olhavam para dentro da alcatifa autoestrada 

 

Olhavam com esperança de ser agora ou nunca 

ter a aplicação de usar primeiro e pagar depois 

passar as férias da vida na via verde da cama.  

Foi à farmácia

 

Foi à farmácia do bairro pedir um gel 

ou uma pomada para aliviar o ardor 

que sentia no peixinho vermelho do seu mar

na recolha matinal das rendinhas da pesca.

 

Eu tenho um creme, uma boa pomada 

para esse mal e que vai ajudar 

para esse bem que é tão bom ter 

disse-lhe segura de si a farmacêutica.

 

Essa perturbação costuma aparecer 

quando a actividade é muita e persistente 

quando se tem marido como deve ser 

guarda-o, rematou com um sorriso brincalhão. 

 

Vejam lá, o sortudo do meu marido 

a ficar com a fama, os louros do meu falcão 

pensou, morrendo já de saudades.

Cala-te boca, aguenta-te coração! 

As avós de hoje sorriem ao lembrar


No assento traseiro do Mini Morris não havia lugar 

e não funcionava a regra inclusiva do cheira bem

de haver sempre lugar para mais uma colega

se usasse rexina e curtinha mini-saia à maneira.

Ousadias que as avós de hoje sorriem ao lembrar.

 

Parece que ainda agora há por aí muita avó 

para quem a porta afinada da rua não se fechou 

e se pode convidar para dançar e adultos namorar.

Muito se dançava e apertava nas festas de garagem 

e até se alinhavaram casamentos para a vida inteira.

 

Sentia-se a pressa de viver para antecipar o futuro.

Vai num pé e vem no outro que ela está à tua espera.

Com os pêlos perfeitos bordados a preto e branco 

com a calcinha prendada já sentada na calçada.


Ambas portuguesas ambas de qualidade superior.

Moderna mas clássica com um sotaque encantador.

De arte antiga daquela que deixa e fica na memória. 

Das descobertas das coisas boas desse grande amor. 

O diabo a dar porrada na mulher


Se fosse cenoura seria como uma berinjela 

de berbequim na mão de volta da donzela 

seria beterraba ou pepino para salada

um quilo de berbigão afogado na panela 

para condimentar a vida do soldado sentinela. 

 

Dizia cosmopolita, amassado de tanto calor 

- São couves ou nabiças de Lisboa

talvez grelos e grelinhos de Bruxelas

calções e blusas curtas de Varsóvia.

A ver o sol e levar com a chuva em cima. 

 

Na Hungria quando faz sol e chove ao mesmo tempo 

diz-se que o diabo está a dar porrada na mulher.

Não, a nenhuma, nem mesmo a mulher do diabo! 

 

Diabo sê por uma vez um bom gajo 

aproveita para tomares banho com a chuva 

e a boleia do sol para secares depressa.

 

Corre para a cozinha e faz tu o almoço

vais ver como vais gostar e arranja tempo 

para a melhor sobremesa da tua cara-metade.

A boa estrela nunca nos abandonou

 

Nestes momentos de olhar para trás 

é bom não esquecer o grande carvalho 

que bruta a tempestade de raiz arrancou 

e por muito pouco não nos atingiu 

 

Nem a janela que a corrente de ar

e que o vento forte mandou abaixo 

com os vidros feitas lâminas da morte 

a cair com estrondo a um nada de nós

 

Ou quando com as filhas lá atrás

o carro derrapou no gelo que fina 

a neve disfarçava e tombou na berma  

e nenhum de nós sofreu um arranhão 

 

Que sem uma manifestação de gratidão 

e de termos passado uma parte da vida  

a arriscar a sorte e a esticar o destino 

a nossa boa estrela nunca nos abandonou.

Pai vem por mim


O dia acordou farrusco nos seus olhos 

anunciava tempestade ou muita chuva.

A noite deitou-se em luz e solidão 

adivinhava o adeus final da madrugada?

 

Monótono o tempo passava vagaroso 

lá em casa já todos tinham partido. 

De manhã não havia quem fosse preciso 

despertar para não se atrasar no trabalho.

 

A vida tinha-se tornado quase vazia 

não tinha de esperar ninguém à porta 

ou o tocar do telefone sobre a mesinha 

a avisar do atraso e da hora da chegada.

 

Resignada e em paz pedia a Deus 

que quando, fosse rápido e sem demoras

não deixasse más recordações aos seus 

e se lembrassem das tantas horas boas. 

 

Pai vem por mim antes que a doença 

faça de mim quem eu não sou!


Singela Oração a Bea

- Filha, irmã, esposa e mãe de 4 crianças. Viveu 48 anos.

 

Agora que os familiares e tantos amigos 

Em triste silêncio e emoção mal contida

Com as condolências de uma rosa branca 

A depuseram nas jarras e no tapete da igreja 

Junto à sua fotografia repleta de vida 

- Tão bem, tão feliz e juvenil que ela estava!

 

- Agora que tanta gente, tantos amigos 

Se juntaram no templo da minha vida

Para se lembrarem e me despedirem 

Na casa de Deus que devota frequentei

Como se fosse a minha segunda casa

Onde me preparei para a vida e para a morte.

 

Deixem-me que seja eu a organizar pela última vez

Recordando os versos tão bem declamados:

- Não me procurem que eu não estou aí

Não chorem por mim que eu não morri.

- Ali está o mar e aqui está o meu barco 

Que me há-de navegar ao reino de Deus.

 

Última mensagem de mãe em sofrimento profundo:

- Quero terminar dizendo do fundo do coração 

Que eu seja a última mãe a sepultar a sua filha

Que mais nenhuma mãe ou pai tenha de passar 

Pelo que a nossa família passou nos últimos meses.

Bom Deus cuida e toma conta da nossa Bea.

Um nojo profundo por este tirano


Gioconda Belli: "Nunca pensé que Daniel Ortega

sería un peor tirano que Somoza"


Não basta ser aos vinte anos revolucionário

e aos quarenta ou sessenta ser o contrário.

Não passa de um anticomunismo primário

dirão os comunistas, é um reles reacionário.


Nós vamos caminhar com Marx e o leninismo

não vamos perder nem um minuto contigo

apenas esfregar-te na tromba a bandeira da vitória

e pôr-te no teu lugar, no caixote do lixo da história.

 

É assim que oferecem de borla e cantando

a alma militante aos novos camaradas Stalin

sejam eles Ortega, Maduro, Xi, Kim Jong ou Putin.

A putina que os pariu, estou-me borrifando.

 

O quanto eu solidário e à distância 

vivi a revolução sandinista!


Nicarágua


Daqui das margens do Tejo

com as ondas-curtas da esperança

vislumbro em segredo Esteli

povoação guerrilheira cercada

pelas forças leais ao governo

muitos seios de linho

muitos sexos de ferro a arder.


À distância tudo indica

ser possível que o massacre

da razão seja sinónimo de futuro.

Quando Esteli cair

as formigas da sublevação

serão sepultadas colectivamente

provavelmente numa mina abandonada...

Escrito em outubro de 1978 (Excerto)


Talleres de poesía da Nicarágua


A Nicarágua a Revolução Sandinista

fez parte do meu itinerário romântico-

-libertário de um mundo melhor para todos.

Doce ilusão. Sei muito bem. Pura ilusão.


No “Ciclo das Palavras” com 82 textos

vários foram dedicados à Nicarágua

ao Comandante Zero Eden Pastora

à Comandante Dois Dora María Téllez

ao poeta e sacerdote católico Ernesto Cardenal

à cidade de Esteli e a outros momentos

dos avanços e recuos no cerco libertário a Somoza.

Os três há muito que optaram pela dissidência activa

por coerência e em ruptura com o sandinismo oficial...

Um excerto. Escrito em outubro - novembro de 2007


Eu mudei muito desde 1978-1979, mas o camarada 

Daniel Ortega com a sua tirania mudou muito mais. 

Sinto um nojo profundo por este tirano, por este ditador.

 

2024- 2025

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Excertos e Migalhas

 

Excertos poéticos e diálogo poético 

com Nina G. Poetisa luso-francesa


Para o livro "De mim ficam as Palavras"

Deixa-me ser um poema

 

Dá-me tempo, mais umas semanas

de paciência para que eu sem pressas 

de manhã à noite te possa mostrar 

e com o meu olhar fazer-te acreditar

 

que tenho este mundo e o outro

para te receber e nos abrigar do vento.

Mundo que inventei entre pão e migalhas 

entre beijos nossos e muitas palavras.

 

Permite-me que traga para a mesa

as melhores lembranças do futuro

enquanto levemente te acaricio o rosto 

e tu seduzes com o teu perfume de rosa.

 

"Deixa-me ser um poema

serei casa e palácio, água e pão 

serei o mistério de vida 

que se deleita na tua mão."

 

Se me deixares pegar-te pelo braço 

serei vinha e pomar de laranjeiras

serei horta e plantação de oliveiras

e do teu regresso farei o nosso abraço. 


Porcelana portuguesa


Ao desfolhar as notas e apontamentos

que tinha guardado para o presente incerto

encontrou um excerto que lhe fez lembrar 

outros dias menos distantes, mais afirmativos.

 

"Foi em travessa   

de porcelana portuguesa  

que ao seu homem toda nua  

se ofereceu no tampo da mesa."

 

Sim, na conversa desenvolta e fluída

lábia era coisa que não lhe faltava 

e quando em condimentado aconchego 

tinha sempre troco no bolso do mamilo.

 

Ninguém lhe passava a mão pelas costas de graça 

quando jeitosa e segura de si afirmava com graça 

- Bebo leite magro porque tenho o sangue gordo 

dizia com um sorriso bonito, um sorriso maroto. 

Não te esqueças de mim

 

Não te esqueças de mim

quando a distância for muita

e a esperança for pouca

do amor se cultivar no jardim.

 

Não te esqueças de mim

quando os dias são noites escuras

as manhãs já não tropeçam em nós

e nas madrugadas não te chamar jasmim.

 

"Não te esqueças de mim  

quando no copo do teu vinho tinto 

vires desenhar um outro sorriso. 

Teu labirinto, teu absinto."

 

Lembra-te de mim, nunca te esqueças 

mesmo de improviso, mesmo só por instinto

o teu melhor vinho são das uvas do meu corpo.

Para ti é infinita a areia fina do meu sorriso.


Do meu prazer uma canção

 

Nessa época havia uma canção 

que mal se ouvia na rádio 

talvez por excesso de erotismo 

numa terra de costas para o mundo. 

 

Talvez por sermos muito pudicos 

num país desde sempre adiado 

ou os brandos costumes elogiados  

de um pequeno povo tão resignado. 

 

A letra dizia “Tu que fazes 

do meu coração a tua morada

dos meus seios o teu passeio

dos meus olhos o teu jardim 

 

Que fazes da minha boca teu pão

da minha água teu vinho,

do meu prazer uma canção.”

Parece que comprometia a alma da nação. 

 

Foi quase excomungada

por uma padralhada que só via pecado

onde o amor era cantado

onde quase nua a paixão se sentia

e o prazer dos amantes se mostrava.


Madura sinónimo de doçura

 

Não era preciso ser muito perspicaz 

para ver que aquela amizade 

era do melhor que havia por ali.

 

As surpresas ainda vinham a caminho 

e já os adjectivos se iam esgotando 

com a sua pertinência e encantamento.

 

Escrevia em verso e com rimas gostosas 

que ficavam, não passavam despercebidas.

Experiente sabia destacar-se como poucas.

 

“Madura, dizem de ti

como se estar madura 

não fosse sinónimo de doçura.” 

 

Apetecia saltar as regras da discrição 

apetecia comentar e perguntar-lhe a sorrir 

qual era a parte mais doce da sua fruta.

 

Perguntar com quem estava a sonhar 

e imaginar a resposta mais adocicada 

- A sonhar como seria viver contigo.


Sem ti não há sol

 

Dá-me um minuto de atenção 

mesmo que esse minuto se faça horas e dias

tu já tenhas há muito desligado o telefone

e eu continue a falar sem parar nem respirar. 

 

Há muito tempo que te queria dizer

que esta nossa linda aventura 

tão pouco comum, tão fora de caixa

não pode acabar só assim 

sem um último encontro, uma despedida.  

 

Sei muito bem, não preciso que repitas

que tudo tem um princípio e um fim

como há tempos que a ribeira vai cheia 

e outros que está seca sem pinga de água.

Não é por isso que o pintassilgo deixa de cantar.  

 

Quero que saibas de uma vez por todas

faminta e despida de qualquer tola autoestima 

"sem ti não há sol que me aqueça

nem pão que me apeteça".


Se queres Amor que te esqueça

 

"Se queres Amor que te esqueça 

devolve-me o amor que te dei. 

Eu só te posso esquecer  

se esquecer que te amei."

 

Anda vem para a roda dançar

manda a tristeza para bem longe 

sente o rodopio ali à volta da fonte 

e não te importes se não sou o teu par.

 

Sente de perto os odores fortes da festa 

os calores que colam a pele ao vestido 

e os alertas tímidos do coração adormecido.

Diz adeus velha paixão e depois começa outra.

  

Não te esqueças que a vida é um sopro

e quando damos por ela já está de saída

não desperdices os momentos de alegria

faz do novo romance uma ousada fantasia.


Já fui alameda

 

Leitor que nunca me vais ler

sabes é em ti que estou a pensar

é para ti que estou a escrever.

 

Escrevo sabendo quão ingrato 

é o papel do autoproclamado 

escritor anónimo e desconhecido. 

 

Como já antes escrevi não é por não ser lido 

nem saberem de mim que vou desertar

as palavras com que me levanto e caminho.

 

Hoje com um jovial e acrescido optimismo

gostaria de afirmar que não conheço

ninguém que seja feliz sozinho.

 

Não estou a dizer que não há pessoas 

que estão sozinhas e são felizes

mas eu não conheci nem as conheço.

 

Procura em cada dia a felicidade 

o carinho que faz bem e faz viver

a ternura que não tem tempo nem idade.

 

Procura o amor verdadeiro 

aquele que quanto mais se dá 

mais há para dar no armazém do coração. 

 

A amizade que como uma boa cola, 

cola tudo o que há de melhor entre nós 

cola os sentimentos com a alegria da festa. 

 

Sim é-se muito mais feliz 

se a felicidade for partilhada e se multiplicar.

Vale a pena manter abertas as portas da vida.

 

"Já fui alameda  

praça, largo, avenida. 

Já fui caminho, vereda 

e hoje se sou beco sem saída 

em mim tenho ainda abertas 

todas as portas para a vida"


As saudades de ti

 

Quem foi que inventou 

que a paixão faz crescer asas

e se verdade ensina a voar e sonhar?


Quem foi que escreveu 

que grata a resiliência das almas

alimenta a perfeição das palavras?

 

Quem foi que espalhou ao vento 

que o amor quando chega 

fica em nós até ao nosso último dia?

 

"Meu amor como te dizer 

que as saudades de ti 

faz-me pouco a pouco morrer."

 

São excertos e migalhas 

de um passado que se foi

que saiu de casa de mochila às costas

que partiu para não mais voltar.

 


Excertos e Migalhas (2025)

Para o livro “De mim ficam as Palavras”


terça-feira, 6 de maio de 2025

Palavras avulso e a granel / 4


Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.

Fernando Pessoa (Ricardo Reis)


2024 - 2025 

Se nas montanhas

 

Que queres de um campo de urtigas? 

Searas de trigo, vinhas e cachos de uvas?

Pão e vinho? Em que mundo vives? 

Quando amanhã de vez nos faltar a água  

mata a sede com as ervas secas do velho rio.

 

Os mais clássicos lavam as meias à mão 

os outros mais modernos lavam-nas ao pé.

Os mais agressivos preferem a pontapé 

eu fico com elas calçadas como inspiração.

 

Aprendi recentemente um conceito novo 

sobre a corrupção vertical e horizontal.

Sentada e nua jurava por toda a sua roupa 

ser apenas transparente, ser arte erótica.

 

Se nas montanhas não apanhastes chuva 

desce até ao vale e colhe malmequeres

junta os pedaços de sol com carinho  

e da planície do coração oferece o raminho 

a quem apaixonada, ansiosa te espera.


Palavras avulso (soneto)

 

Os outros não sabiam e eles não queriam

que se soubesse e fosse motivo de conversa. 

Antes do primeiro encontro já se conheciam 

como se tivessem dez verões de namoro.

Como se vivessem juntos há muito anos.

 

Persistente a paixão abriu todas as portas 

carinhosamente documentada e comprovada.

A doçura avulso das suas palavras amargas

foi detalhadamente divulgada e promovida.

 

A festa que anunciava foi então apresentada 

comunicada pelos olhos lindos da remetente 

apreciada e valorizada pelo seu destinatário.

 

Foi como sempre precisa, criativa e inventiva 

como um espelho que à luz reflecte e ilumina.


O tu o nadie

 

Simplíssimo tributo a Jorge Mario Bergoglio

mais conhecido por Francisco, Papa do povo.

 

"O tu o nadie" escreveu Jorge a Amalia

quando tinha apenas 12 anos e acrescentou

"Si no me caso con vos, me hago cura".

 

Foi certamente um puro sentimento

uma linda história de amor de criança

uma paixão precoce e antes do tempo.

 

De um menino que tinha olhos para ver

e coração aberto para sentir e imaginar.

Um lindo amor que não se concretizou

Infantil, não se fez adolescente ou adulto.

 

Em contrapartida para nem tudo se perder

sessenta e tal anos depois tivemos um “porteño"

morador do humilde bairro das Flores

e desde sempre fervoroso do seu San Lorenzo.

 

Argentino, o primeiro papa latino-americano

da história milenar da sagrada igreja católica.

Tivemos e pudemos admirar, aplaudir e gostar

mesmo os não crentes e ateistas como eu.

Obrigado Francisco, Papa vindo do "fim do mundo".


É em Bled


Desfiladeiro desfolhado da garganta profunda

Desfile descartável de vaidade saloia e antiquada

Para dizer que gajo importante me coube ser

Ter vindo ao mundo para ser gente e convencer. 

 

Podia continuar com prosa que ninguém vai ler

Lembrar que vim até aqui de burro a motor japonês 

Que me mandei pintar do avesso para me refazer 

Com as paredes de um sol de abril talvez português. 

 

Dizer que é em Bled com esta paisagem maravilhosa 

Mais de postal ilustrado do que invenção da alma 

Que os pensamentos sobre o mundo me veem à cabeça 

Me perturbam, mas não me tiram da vida aqui tão cerca.

 

Apesar de morar há muito num dos países vizinhos, 

ontem foi a primeira que o encontrei e apreciei 

caminhei pela obra-prima do senhor escultor Radovna 

rio que com o seu metódico trabalho de anos e anos 

esculpiu magistral o desfiladeiro Vintgar e lhe deu fama. 

Bohinj, Mostnica e Savica

 

Comecei a escrever este apontamento  

algures no trilho da Cascata Mostnica 

e o rio de montanha com o mesmo nome 

onde o elefante que se perdeu veio matar a sede  

no caudal das águas que alimentam o Lago Bohinj.

 

Uma deliciosa queda de água quase anónima 

logo no início e no final de uma difícil subida. 

Chama-se ponte do diabo porque para um precipício  

com aquela altura e perigo não havia mais ninguém  

com tomates para a construir que não fosse o diabo.

 

Matreiro e velhaco impôs uma condição  

a alma do primeiro a atravessar a ponte  

seria sua propriedade para a eternidade. 

O bispo da terra decidiu contornar o assunto. 

O sacrificado foi um cão enganado por um osso.

 

Se fosse agora seria o bonito caía a ponte e a Trindade 

os amigos dos animais não deixariam a coisa pela lenda.

Para amenizar o conflito fala do que vistes 

- As pedras não crescem nas árvores 

mas as árvores crescem nas pedras. 

 

No caminho de Savica é proibido pescar 

desaconselhável desejar peixe frito 

fotografar e partilhar avisos de zona  

- Pela gargalhada aqui há gato  

porque nesta terra zona escreve-se cona. 

 

Não me levam a mal, mas por vezes é bom recordar  

- Em Mostnica e Savica o eco barulhento das águas 

fazia-me lembrar o mar da Nazaré a labregar.  


Rio Soča e Bovec


Olhar o passo para não tropeçar e cair  

parar para ver e apreciar tanta beleza  

que à nossa volta se oferecia gratuita. 

Caminhar de mochila tem mais encanto  

quando se caminha por sítios de deslumbrar.  

 

Depois de ontem posso dizer com um sorriso  

que já não morro sem ter bebido água do rio. 

Andamos em trilhos entre os Alpes Julianos   

o ponto mais elevado com quase três mil metros.  

Caminhadas com partidas e chegadas a Bovec.    

 

Ali o passo mais alto é a ligação   

entre os vales dos rios Sava e Soča.  

Passo ou colo que bonita expressão.  

Coloca as tuas mãos quentes em mim   

e eu colo os meus lábios húmidos nos teus.  

 

Sítio dos amantes dos desportos radicais  

sítio de aventuras fluviais e parceiros actuais. 

Imaginar que aqui neste local tão pacífico  

pela sobrevivência com armas e granadas 

que há 100 anos se matavam uns aos outros.

 

Ecossistemas para tudo

 

Hoje há ecossistemas para tudo 

pessoas e animais, cartões e caixas automáticas

plantas e oceanos, serras e alguns desertos.

 

Antes terá sido um bairro com autocarro   

casas pré-fabricadas da idade pré-moderna 

agora somos em terra uns ecopontos perfeitos. 


Ecossistemas em que o eco da mãe ou madrasta 

a natureza está em baixo, perigosamente em baixo 

mas o ego individual nunca esteve tão em cima. 

 

Temos também ecossistemas de ciência e inovação

da vinha e do vinho, ecossistema religioso e financeiro. 

O ecossistema de primeiro foi o ovo ou a galinha.

Ecossistemas das palavras roubadas ou mal-usadas. 

Salvo raras excepções somos uns autênticos papagaios. 


Mainstream & Main street

 

Por ser míope uso óculos e para ouvir 

aparelhos nos dois ouvidos, sem eles 

estaria na cave o tempo quase todo. 

 

Tomo também vitaminas para continuar 

a magicar e a pensar pela minha cabeça 

- as vitaminas da vida e do mundo à volta.

 

Como gosto de reflectir para ter opinião 

não posso estagnar, tenho de evoluir

e no verbo com alguns estrangeirismos.

 

Entre as things de que eu mais gosto 

é quando nos meetings em que participo 

cada segunda palavra ser importada

tem classe e sobretudo tem conteúdo.

 

Das minhas aquisições mais recentes 

e para o futuro shortlist do meu texto

no workshop destacaria em power point 

a importância do Mainstream & Main Street.

 

Europeu e americano, ocidental e liberal.

A corrente do pensamento dominante 

enfiada à martelada nas lojas da rua principal.

Discutida ao detalhe no último brainstorming.


A tasca da aldeia


 A tasca é a alma da aldeia disse o outro 

um espantalho das paprikas e beringelas 

e que por graça do pai Viktor é ministro.

 

A ideia é pôr o povo de volta do bota-abaixo

distribuir uns tostões para adiar as ressacas

e prolongar a cirrose e a vida das tabernas.

 

Feita a crítica política ao novo programa

de arrebanhar votos com aguardente 

e continuar mais uns anos no poleiro.

 

Vamos lá mudar de diapasão e de tema

contra dogmas não há milagre ou mensageiro 

e cada povo tem o governo que merece.

 

Serviço ao cliente não é à mesa é ao balcão 

o dinheiro é de plástico e sotaque estrangeiro 

o mata-bicho com um cigarro em cada mão.


Tiro na nuca

A pensar no criminoso-camarada Vasily Blokhin*


Inimigo do povo, tiro na nuca
Inimigo do partido, tiro na nuca
Inimigo da revolução, tiro na nuca
Inimigo da classe operária, tiro na nuca
Inimigo da pátria soviética, tiro na nuca

Inimigo do homem novo, tiro na nuca
Inimigo do marxismo-leninismo, tiro na nuca
Inimigo da amizade entre os povos, tiro na nuca
Inimigo da Internacional comunista, tiro na nuca

Inimigo da limpeza étnica, tiro na nuca
Inimigo da degola dos kulaks, tiro na nuca
Inimigo da verdade sobre Katyn, tiro na nuca
Inimigo da liquidação dos inimigos, tiro na nuca

Espalha mentiras sobre Holodomor, tiro na nuca
É judeu ao serviço do imperialismo, tiro na nuca
Quer abrir os olhos aos idiotas úteis, tiro na nuca
Ciumento das vodka-orgias de Béria, tiro na nuca
Desertor-traidor de Stálin Pai dos povos, tiro na nuca.

*Esta é a terceira versão de texto que escrevo sobre o camarada Blokhin (1895-1955) um dos melhores exemplos do que foi ser comunista e agente da polícia política na URSS. Um criminoso brutal, metódico e implacável. O melhor exemplo do homem novo comunista.


Vasily Blokhin executou dezenas de milhares de prisioneiros pelas suas próprias mãos, incluindo cerca de 7.000 prisioneiros polacos durante o Massacre de Katyn, na primavera de 1940, o que faz dele o pior carrasco de que há registo na história mundial.    

 

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Palavras do eléctrico ou o eléctrico das Palavras / 4

 

Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta

continuarei a escrever. Clarice Lispector


Para o livro "De mim ficam as Palavras"

Encosta


Era ali que os caminhos subiam 

e até ao cimo os levavam.

Era ali que livres pela encosta 

rebolavam e se abraçavam.   

 

Se envolviam, se disfarçavam e se escondiam 

se comemoravam, se despiam e se amavam

e sem remissão se ofereciam um ao outro

certos do segredo da sua festa mais íntima. 

 

Que ninguém sabia deles nem a poesia 

para os escrever e imortalizar a sua história. 

 

Enxaguavam-se no riacho da ladeira 

onde as plantas formavam uma cadeira 

o declive para uma última promessa 

um último abraço, um beijo avassalador.

 

Encosta-te às suas costas, ao seu peito 

à sua alma, à sua paixão infinita por ti 

à aventura e ao milagre do vosso amor.

Encosta-te e nunca te afastes do seu calor.

 

Cartas antigas

 

Poderei estar enganado e se for o caso 

penitencio-me, mas para mim poesia

é também remexer memórias do passado.


Voltar a ler cartas antigas, alguns excertos

de quando ainda havia tempo e havia alma  

para escrever, redigir cartas com memória. 


Sei que há muitos anos (Nazaré, agosto de 1983)

escrevi "Comecei - que sentido a poesia sem ti?

A secar o mar para encurtar a distância".


Agora talvez gostaria de me perder sozinho 

por alguma das praias de Portugal, caminhar 

na areia húmida e molhar os pés para despertar.

 

No seu acerto de contas com os sentimentos

diz-se que pensava, dizia, mas não escrevia 

a forte convicção de que a partir do momento


- Em que ela passasse a ser a manhã e a tarde

a noite e a madrugada, o sol e a lua da sua vida

em pouco tempo se iria cansar e fartar dele.

Diz, enganou-se, não foi assim que se passou? 

Ao alpendre

 

Sente-se de novo a chegada da alba 

do amanhecer sempre apressado 

do tempo mais curto que o desejado

na roupa branca da cama amarrotada

e a camisa de dormir no chão esquecida.

 

A cantiga de entrega da minha prometida 

da paixão a arder pela exaltação tardia 

contra latitudes e geografias diferentes 

dos amantes abraçados pela telepatia 

dita ao telefone e com a televisão ligada.

 

Para os velhotes não ouvirem os gemidos 

não virem ao alpendre e ficarem a saber 

que o amor não é feito apenas de sorrisos 

que não tem idade nem prazo de validade.  

Rosa encantada feita invenção do prazer.