quinta-feira, 17 de abril de 2025

Com Liszt e Chopin

Porque a música penetra mais fundo na alma. Platão


Para o livro "De mim ficam as Palavras"

Liebestraum No. 3 (Sonho de Amor) de Liszt

 

"Ama, ama enquanto puderes"

enquanto a amada te esperar

enquanto a paixão continuar 

e o vosso amanhecer desejares.

 

Ama, ama enquanto fores vivo

enquanto te sentires renascer 

quando o seu olhar te sorrir

e convidar para a rua do prazer. 

 

Ama, ama enquanto souberes 

que o seu coração bate em ti 

que este Amor não morre por si

por ela estás pronto a tudo deixares.

 

Ama, ama até ao último sopro 

sempre o vosso primeiro momento 

e recorda que um minuto com ela

é mais do que uma vida com outra.


Rapsódia Húngara No. 6 de Liszt

 

Ó Meu Amor, aconteça o que acontecer 

por muitas mágoas que sintas e tenhas 

mágoas por mil razões sedimentadas

barco afundado carregado de pedras.

 

Para a despedida, para a tua partida 

que fria e impiedosa a vida justifica

peço-te, nunca me deixes abandonada

sozinha e perdida à beira da estrada. 

 

Perdida, triste e por dentro escurecida

entre uma terra nova e outra desconhecida

a meio caminho entre a dor, o amor e o nada

sem saber o rumo nem tão pouco o futuro.

 

E é tão bom quando fazemos as pazes 

quando as fúrias, as guerras e os ciúmes 

dão lugar à paz e corremos para o reencontro.

 

E nos despimos para nos vestirmos um do outro 

adormecemos lado a lado cansados e felizes

- A descansar em cinzas ao gosta do Bom Deus.

 

Ó Meu Amor, nunca te vou esquecer 

- Os teus olhos são a noite no mar 

- São o mar na noite, no dia da noite.


Rapsódia Húngara No. 2 de Liszt

 

Devagar devagarinho com a transparência dissimulada 

como quem não quer a coisa e com a finesse 

que só uma dama, uma mulher tem e sabe usar 

se o assunto lhe interessa e pensa valer a pena. 

 

Foi-o envolvendo e seduzindo (ele pensava o contrário).

Um dia depuseram as armas e tiraram as teimas 

desarmados e abraçados multiplicaram o pão e o beijo

juntaram-se e não podia ter sido refügio mais valioso. 

 

Na flor da vida e para não fazer as coisas pela metade 

deixa-me adormecer contigo e sonhar ao teu lado 

seres a minha toutinegra e eu ser o teu pintassilgo 

casar-me contigo para esta e quantos vidas tivermos.

 

Fazer uma grande festa de casamento com toda a aldeia 

dançarem contigo a menyasszonyi tánc (dança da noiva)

beber o último copinho de aguardente com os amigos 

e nessa noite serei teu, serás minhas, uma alma seremos.


La Campanella de Liszt

Parte dos "Grandes Études de Paganini”

 

O seu corpo na erva, no chão deitado

era a apanha antecipada da azeitona 

Florido um caloroso teclado de piano.

 

A sua alma nos trabalhos da vindima

era a cesta cheia das sílabas da boca

A carícia dos dedos nas cordas do violino.

 

Afirmava com a sua malícia: é agora ou nunca

vamos pecar agora que ninguém se importa 

Não há quem pense em nós, na nossa festa.

 

Ali próximo do monte no sopé do sonho em voo a planar 

da imaginação à sombra da parreira a crescer sem parar

Não falar não olhar não desdizer não apalpar nem se atrasar, 

 

Esse perfume indesmentível da falésia ou da vertigem 

a coragem e a voragem da loucura incontrolável a arder

Da subida vertical da ascensão ao céu pagão do prazer.  

 

Se os pactos com o demónio fossem todos assim 

e se o diabo em figura de gente fosse Paganini

dedos magros e compridos que mais ninguém tinha 

quantos de nós não seríamos devotos do diabo... 

 

Se não fôssemos moleiros ou aguadeiros do moinho 

(para quem não saiba Liszt em português é farinha 

o nome de Liszt seria Francisco Farinha)

quantos de nós não seríamos padeiros da padaria... 

 

A partir de 1830, Liszt (1811- 1886) vive em França e torna-se amigo 

de Frédéric Chopin (1810-1849) e de Niccolò Paganini (1872-1840)

músicos-compositores que influenciaram a sua música para piano.

Chopin-Nocturne No. 20 (in C Sharp Minor)

 

Chegava pé ante pé feito bailarino 

em silêncio da proximidade da vida

da planície ausente, da noite fechada.

 

Chegava com um ramo de rosas brancas

com uma caixa de fósforos para iluminar

um breve sorriso invisível e tímido na mão. 

 

Sabia que ela iria reconhecer o perfume 

da namorada natureza que vinha com ele 

que o rosto imaginado ficaria para depois.

A razão podia explicar a força desse lume.

 

Sentia que um dia a noite madrasta dos olhos 

se faria mãe com um coração doce e grande.

Deixa que entregue os olhos do meu coração 

Ó meu amado benfeitor fica comigo para sempre.


Chopin-Ballade No. 1 (in G Minor)

 

Se fosse seara seria uma espiga de milho 

Namorava às escondidas com o centeio 

E passava o tempo a fazer ciúmes ao trigo.

 

Na festa das bruxas, no baile das raparigas 

Espontânea adorava surpreender as formigas 

Com migas, grãos de café e bolachinhas. 

 

Vinha de dentro, era das irmãs a mais meiga 

Tinha mais amigas do que um concerto gratuito 

Mas também não se escondia de uma boa briga. 

 

Nunca se sente cansada, visitada pela fadiga

Está sempre disponível para o seu prometido 

E ainda hoje é nos seus braços que se abriga.


Chopin-Grande Valsa Brilhante Op.18 (in E flat major)

 

Foi quando aceitámos o perfume do vento

e a brisa nos protegeu com o seu véu

porque tecíamos as surpresas do tempo.

 

Porque pedaços da pele das tuas rendas

se prenderam ao coração das minhas silvas

cantamos o mosto do corpo, o altar do amor.

 

Como estamos de pé no piano, nota de roda-mão: 

Chamava-se Maria Wodzińska e tinha 17 anos

e era de uma beleza que convidava a escrever.

 

Foi a primeira paixão conhecida de Fryderyk

em segredo estiveram comprometidos 

mas o casamento acabou por ser cancelado.

 

Um século e meio depois numa outra capital

outra Maria também da Polónia tinha 18 anos 

e apesar da dedicação também não se casou.

 

Não andava nem se deitava sem o crucifixo 

com Jesus da Nazaré bem acomodado no vale  

que separava e juntava os rijos e belos peitos. 

 

Para ter reservado um lugarzinho assim.

Infiel inofensivo, quem me dera a mim

ter sido eu também injustamente crucificado.

e merecer por isso em terra alheia, o paraíso. 


Fantaisie-Impromptu, Op. 66 de Chopin

 

Seria pelo desleixo das roupas 

da maquilhagem pouco cuidada

como para disfarçar tanta alegria 

a felicidade desenhada no rosto

 

que afaga o peito 

que enobrece a alma 

que acicata o gosto 

e desperta sentimentos.

 

Por um instante o olhar parece ausente 

perdido algures entre memórias e desejos.

A mão meiga que toca no cravo vermelho

talvez por ser abril e passear por Lisboa.

 

Ali se perdeu com ela pelas suas ruas estreitas

com a melancolia tardia de algum sefardita

pelos labirintos miradouros e ruelas de Alfama 

pelas tabernas, travessas e becos da Mouraria. 

 

Nada levava a pensar que aquela linda moça 

estava ali para te ouvir te acompanhar e confirmar.

Pelo menos o piano não magoa os dedos como as guitarras.

E eu levei isso muito a sério: Frédéric Chopin


Chopin-Polonaise Heróica , Op. 53 (in A flat major)

 

Deixa o medo fechado em casa 

por detrás do roupeiro, no fundo 

da gaveta e perde a chave da porta. 

 

Escolhe a espada com coragem 

está na hora de se fazer à estrada.

Pátria nem que seja a última viagem. 

 

Não é tempo de discutir a cor da madeixa

feita à medida da mentira para enganar. 

O sexo dos anjos ou os cornos alçados 

do cabresto cabrão do criminoso czar.

 

Vive-se uma época em que o heroísmo

precisa de inspiração, de força e de vigor 

como disse a sua famosa amante e protectora.  

Se possam desfraldar bandeiras como esta. 

 

Budapeste, janeiro-abril 2025


segunda-feira, 7 de abril de 2025

Palavras avulso e a granel / 3


 

Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.

Fernando Pessoa (Ricardo Reis)


Para o livro "De mim ficam as Palavras"


Noli me tangere de Ticiano

 

Noli me tangere de Ticiano.

- Sem querer correr o risco da blasfémia

Não me toques que me desafinas 

desafinas o piano, o pianoforte

da minha tranquilidade 

e abstinência de séculos.


Mesmo não sendo tua intenção 

traz-me de volta até ao coração 

a vivência, a vida vivida sem morte

desses momentos maravilhosos (MM 

- Maria Madalena, Marilyn Monroe) 

que há muito eu quero esquecer.

 

E deixar dormir no subterrâneo da ilusão 

na gruta não iluminada da desilusão. 

O "Noli me tangere" de Ticiano

que vimos em Londres na National Gallery.


Noli me tangere de Correggio

 

Recordar Picasso (PP) sem pregar a abstinência 

ou não lhe tocar que queima, pelo contrário 

se inspirou no "Noli me tangere" de Correggio 

- quadro exposto no Museu do Prado em Madrid.  

 

A emocionante tela La vie, 1903 do período azul 

-  Retrata o seu grande amigo Carlos Casagemas 

que antes se tinha suicidado e deixou Pablo inconsolável.

A partida dos amigos deixa vazios com mágoas infinitas.


A vida e a morte, modelo e musa, amada mulher 

do princípio ao fim da nossa breve passagem pela terra. 

- PP não se pode queixar, foi dos que mais viveu (1881-1973)

Modigliani (36anos), Van Gogh (37 anos) e Klimt (56 anos).


Touch me now de Roxette

 

Touch me now, I close my eyes 

And dream away (Roxette)*

 

Se digo "Don’t touch me there" 

porque sem querer troquei de canção 

e seja em que língua for, não acredites 

devo ter bebido gin tónico a mais 

ou comido algo que me fez mal.

 

O que eu quero dizer é, Não pares!

Olha-me e entendes todo o meu mundo.

continua, continua até ser noite, até ser dia

*It Must Have Been Love

do filme Pretty Woman (1990)


Serviços mínimos

 

Dizem que gostos não se discutem 

e que não há duas pessoas iguais 

- cada cabeça sua sentença.

Uns multiplicam o pão e há outros 

que preferem multiplicar os pobres 

- preferem perpetuar a pobreza.

 

Fazem precisamente o contrário 

das suas teorias e das suas ideias 

- das suas promessas redentoras.

Mudando de assunto imaginando 

estar perto de ti e pensando 

em que dizer para te surpreender 

abro o guarda-roupa e digo


- Diz-me o que vestes 

e eu digo-te o que mostras 

o que devias guardar para depois.

É tão bom observar indiscreto.

Prefiro-te nua ou quase nua

ou vestida de serviços mínimos

do que de design arejado e inovador.

Sabes bem que não há gostos iguais.


Pessoa respeitada

 

Se eu tivesse nascido em Budapeste 

teria sido canalizador ou contabilista.

Se tivesse nascido na cidade de Lisboa 

teria sido moço de recados e alfaiate.

 

Teria estudado numa escola industrial 

e com tempo aprendido uma profissão

emprego numa sociedade comercial 

subindo a pulso com espírito de missão.

 

Pessoa respeitada e útil à sociedade 

com trabalho e clientes satisfeitos

teria sido um conhecido costureiro 

a tesoura masculina, o fato da cidade.

 

Para a arte da confeção não se perder 

teria casado com uma colega modista 

a crédito ido de férias e comprado casa.

Seria um mundo a sério, uma vida a valer.


Quem nasceu pobre


Pode ser que por milagre tenha sorte 

mas quem é pobre, quem nasceu pobre 

dificilmente algum dia deixará de o ser.

 

Andar sempre com o credo na boca

seja pela doença ou da renda da casa

as prestações e os estudos das crianças 

da alimentação, do vestir ou desemprego.

 

No mundo de hoje como já foi antes 

o que conta é a demagogia e o verbo 

e são normalmente os ricos e abastados 

que falam, dizem representar os pobres.

 

A mim dói-me e é tão triste assistir calado

ver como os mais pobres se deixam levar.

De que falam estes iluminados? Pelo Duce?

Como Lénin? Outro qualquer demagogo?

 

Deixem-me parafrasear García Marquez 

- El día en que la mierda tenga algún valor 

los pobres nacerán sin culo. Assim, Gabo! 

Pudor em pó

 

Falava de pudor em pó como quem fala 

de sabonete líquido inventado à medida 

e feito para da cintura para baixo escorrer 

- devagar pois o dia ainda é uma criança.

 

Para lavar cuidadosamente as pernas 

a quatro mãos e a vinte e dois dedos 

que mesmo com a tração às quatro rodas

- a atração para ser verdadeira é a dois. 

 

Espalhava o pó de talco cor-de-rosa claro

pela saída do pescoço e entrada do peito 

e dizia: está um belo dia para passear 

- mais para amar do que para trabalhar. 

 

No bairro degradado não havia tanto luar

como quando à noite arranjada saía de casa

para melhorar as finanças tremidas da família 

- tanta boca para comer, tanta para calar.


Solidária e humana


Chegou cedo e a más horas

e encontrou a mulher 

na cama com um desconhecido 

- Querida o que é que se passa aqui?

- Querido não é o que parece. 

 

- Vi-o na rua tão triste e abandonado 

que o trouxe pela mão para casa

para lhe dar uma sopa 

consolar-lhe a alma e aconteceu.

 

- Se é assim como dizes fizeste bem.

Foste mais uma vez solidária e humana.

Continuem, eu volto mais tarde.

 

É tão bonito quando se é compreensivo. 

É tão bom viver nestes tempos modernos. 

Armário e arminho

 

As arrumações começaram pelos armários do corredor 

e continuaram pelas gavetas e guarda-roupas do quarto. 

Não sabiam que armário vinha da velha palavra arma.

Armário, cofre ou guarda-armas de quem as tinha.

 

Saíram do armário com estrondo e espanto dos outros 

- Ele gostava de homens e ela gostava de mulheres 

era assim há muito tempo, entre eles, mas em segredo.

Casados mais de vinte anos, continuaram bons amigos.

 

Da palavra armário ocorreu-me arminho

pele de arminho macia, fofa e mimosa 

e daquela loiraça muito gira e vistosa

que trocava a lama da floresta pela cama.

 

Veio a saber-se mais tarde que era agente da kgb 

andava sempre perdida pelos melhores hotéis 

e o seu destaque era o casaco pele de arminho.

que em tempos idos teria sido símbolo da pureza.

 

- Por baixo tinha uma bata acinzentada 

e não usava nem tapa montinhos 

nem calcinha stop, aqui tens de esperar

até eu dizer que está verde, podes avançar. 


Belcanto e ovo da serpente

 

Belcanto. As muitas teorias da conspiração que por aí abundam 

pelo seu letal veneno acabarão por matar, por assassinar.

Não sejamos ingénuos, não tentem compreender o absurdo 

não se deixem enganar pelo belcanto das serpentes.

 

Ovo de serpente com várias cabeças como um dragão 

hidra-anão símbolo do mal que cresce sem parar 

se não lhe cortarmos as cabeças uma a uma.

 

Não será trigo limpo farinha amparo, mas com coragem

vamos fazer das suas cabeças decepadas e queimadas 

das cinzas o melhor estrume das nossas terras agrícolas.

 

Não penses em te suicidar! Mata as serpentes dos belcantos!  

- Pode ver-se a olho nu em miniatura o réptil já concebido. 

É só uma questão de tempo e de ocasião. Há sempre. 

Do filme Ovo da serpente (1977) de Bergman.

 

Belcanto um restaurante ao lado da Ópera em Budapeste. 

Era muito caro, mas comia-se e cantava-se bem. 

Os empregados traziam cantando os pratos à mesa. 

Caso para dizer viva a cultura da voz e do estômago. 

 

2024 - 2025


quinta-feira, 3 de abril de 2025

Palavras do eléctrico ou o eléctrico das Palavras /3

 


Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta  

continuarei a escrever. Clarice Lispector 


Para o livro "De mim ficam as Palavras"

Hier encore - Charles Aznavour


Les yeux cherchant le ciel mais le cœur mis en terre

 

Meu bicho-da-seda, minha lagarta da amoreira 

que se faz a mais bela das borboletas 

e em ti representa a vida, o fim e o renascimento 

o feio feito feitiço da beleza ou precisamente o contrário.

 

Da vida ontem da vida sempre, vida nunca e vida eterna 

no baixo-relevo do teu copo abaixo e acima em tudo

na vertical, na horizontal e nas escadinhas do bairro 

ou no tapete voador, de paraquedas para-quedistas 

- Borlistas e carteiristas, vigaristas e feiticeiras...

 

Na autoestrada da chuva 

nas curvas e contracurvas do vento 

no cruzamento tardio da noite 

na acalmia da tempestade 

na estação para recomeço do novo dia

no apreço comovente na praça do nosso reencontro.

 

Nunca é tarde para tentar como se fosse a primeira vez 

Nunca é tarde para voltar a errar se é a mando do coração 

Nunca é tarde para voltar ao local onde tudo começou 

Nunca é tarde para chorar o passado e lamentar o futuro. 

 

Para deixar o coração em terra e apanhar o avião 

Levar consigo os olhos, o olhar do mundo nos teus olhos 

Cantar o passado e agradecer o futuro - a minha gratidão.  

La bohème - Charles Aznavour

 

Do princípio ao fim do mundo 

do século perdido, a algazarra  

não abrandava e o apara-lápis  

não parava de ser emprestado  

por vezes trocado por um beijo.

 

Cães e gatas já estavam habituados à confusão  

a alfazema e o alecrim não espantavam ninguém  

nem o alfarrabista da esquina que não vendia  

não se desfazia de nenhum dos seus melhores livros 

- que faria se não os tivesse à mão para os desfolhar.

 

Os bailes do bairro acabaram et les lilas sont morts  

os sindicatos perderam o pio e os trabalhadores amoucharam 

sentados no chão de pernas cruzadas à espera do milagre 

mas temos os jovens como ontem hoje também não se calam 

- é do futuro deles que escrevia e cantava o arménio Aznavour.

 

Em Montmartre de Paris do antigamente

eram pobres, ele passava fome e ela posava nua  

sentia-se em tudo a liberdade, decadência e liberdade  

que bem precioso é viver democracia num país livre  

sem perseguição - num país do decadente ocidente.


Cotovia ou confraria

 

"La chair des femmes se nourrit de caresses comme l'abeille de fleurs." 

Anatole France

 

Aquarela e a tinta dos seus olhos 

a doce conspiração das suas coxas

com a flanela nocturna dos seus braços 

e a água morna dos seus lábios 

quando os beijo para saciar a sede. 

 

Cortiço mel das flores da sua serra

com a cobiça do fascínio maior

da planície lunar do seu olhar 

com a cotovia ou confraria do amor 

para não me esquecer e te esperar. 

 

Cadeira onde tanta coisa boa ficou por fazer. 

Bagageira onde ainda hoje a quero guardar.


Os pecados

 

Com uma cerveja à frente dizia 

- Se é pecado se de vez em quando 

me descuidar e beber um pouco a mais

que mau seria nunca ter sido moço.

 

Se me distrair a olhar aquela ilha vistosa 

ao lado sentada e pensar noutros tempos 

dar asas de avioneta à imaginação

é não temer a régua de castigo e educação. 

 

Se é pecado cuidar e regar essa rosa 

para lhe dar cor e não a deixar murchar

como é deixar-se envolver pelo seu perfume 

com ela se perder e em silêncio florescer.

 

Dizia Pedro Homem de Mello e Amália 

tão bem cantava quando iam a Viana

- Os pecados têm vinte anos 

e os remorsos têm oitenta -

 

O pecado (i)mortal mora na guloseima 

e cresce no gosto e na certeza  

do bem que faz pelo melhor que sabe.

 E pelas vidas que nos traz de volta. 


Prefácio & Posfácio

 

Prefácio 

 

Na manhã desse dia lavei-me e vesti-me 

arranjei-me, tratei da pele com mais cuidado

valia a pena, sabia bem por que o fazia.

 

Talvez tenha deixado a pele sem defesa nenhuma  

mas sabia que a tua pele na minha a iria proteger. 

Sabia que não seriam os teus beijos ardentes 

os teus dedos e os lábios que a iriam maltratar. 

 

Na manhã desse dia saí de cedo de casa 

o coração estremecia e quase me saia do peito 

estava ansiosa, sentia muito impaciência. 

 

A única certeza que tenho é que vacilava de receio 

se seria um sorriso, um abraço, um beijo forçado.

Felizmente perto de ti sempre perdia o medo 

e vi abrir-se o céu, vivi a paixão do nosso amor. 

Prefácio & Posfácio

 

Posfácio

 

Desatentos não se deram conta 

que o seu tempo passou

e se foi para não mais voltar. 

 

A pele parece que secou 

e fez-se um deserto sem oásis

sem fonte nem areia molhada. 

 

O coração, a lenha dos corações 

esse continua a arder feito fogo

até se fazer cinza e depois vento.

 

Recordar a terra húmida da margem do rio.   

Mundo que já não é o nosso e depois nada.

Erotismo da classe operária

Para António Rosas

 

Esta noite a minha intenção é fazer um breve relance pelo erotismo 

e algumas liberdades da classe operária e dos seus representantes 

no Portugal da primavera marcelista antes do 25 de Abril libertador.

 

- Aquele é o padrinho, não é o afilhado famoso dos selfies 

que foi primeiro comentador referência da televisão 

e depois S.E. O Presidente da República Portuguesa…

 

Era o magusto e jeropiga de São Martinho na fábrica de fiação 

e houve quem se tenha acelerado mais do que devia

ultrapassou a barreira do pudor e alguma timidez recalcada.

 

Depois do almoço voltou-se ao trabalho, mas uma das operárias

no corredor menos iluminado fez-lhe uma espera inesperada 

- Não gostas? É tudo para ti! Bata no chão blusa aberta sem soutien. 

 

- Porque se acabava duas três vezes por semana pedia-me fio

eu fazia-lhe sinal para subir ao terceiro andar à sala dos rolos

onde nos enrolávamos ouvindo as máquinas a trabalhar. 

 

Era ali para os lados do Martim Moniz quando as fábricas 

ainda funcionavam em pleno centro da cidade 

- O prazer operário e não apenas ser explorado pelo patrão. 


Revendo Almada

 

Tenho andado de volta revendo Almada Negreiros

com o Manifesto Anti-Dantas, 1915, e a Taca de chá*.

Recordando: As Banhistas, 1925, A Sesta, 1939,

O Retrato de Fernando Pessoa, 1954 ou o meu favorito

Art Déco, Estudo para uma Decoração de Teatro,1929.

 

*”Pela manhã vinham os visinhos em bicos dos pés espreitar por entre os bambús,

e todos viram acocorada a gueisha abanando o morto com um leque de marfim.”

 

Preâmbulo: Se Almada visse a pose e a roupa colada ao corpo 

- Uma segunda pele da jovem mulher por baixo da gabardine - 

esta tarde na paragem do eléctrico... eu fiquei com a sensação

que teria escrito rápido e certeiro, dizendo em voz alta: 

 

Eléctricos do mundo libertem-se! Sejam uns fora de caixa 

saltem dos carris, não aceitem a escravidão fixa dos horários.

Parem, façam greve para que aprendam, chega de brincadeiras.

Com os condutores dos eléctricos não se brinca nem a brincar.

 

Assim tinha tempo podia observar mais uns minutos  

sem a ver desaparecer ou ter de se apressar, entrar a correr 

para a continuar a ter aquela visão mais algumas paragens. 

Não estava sozinho naquela observação de admiração.

 

Segundo preâmbulo: descobri Almada na minha adolescência.

O nosso primeiro encontro foi com o Manifesto Anti-Dantas 

declamado por Mário Viegas. Se fosse hoje, 110 anos depois

estou convencido que o título seria: Manifesto Anti-Ventura.

 

Ultimamente tenho jogado com a ideia-provocação de pensar

- Qual seria a sensata-opinião do wokismo sobre Almada?

Será que seria queimado na fogueira da inquisição wokista?  


Feita de plástico

 

As pestanas postiças, falsas eram mais compridas 

que a mais curta das pontes sueco-dinamarquesas

distante da Groenlândia que Trump tramposo quer dominar. 

 

Os lábios carnudos, espalhafato a mais de tão inchados

quase caiam da boca e deixavam os dentes à mostra. 

Os seios tão esticados nem quatro mãos chegariam 

para os cobrir e esconder e proteger do mau olhado 

que do silicone já não havia nada a fazer.

 

Não teria mais de 20 anos e antes de se industrializar 

em plástico e afins deve ter sido uma miúda jeitosa

agora está feito um armazém de plástico. Feita um plástico. 

Uma carroçaria que não precisa de bate-chapas

Mecânico de amortecedores e assentos para assentar o dito.

 

Não há tempo para recriar a história sacana da palha seca 

se faz um bom colchão porque se tem de limpar a palha 

que tem no rabo, rabo de palha na ponta da navalha.

 

Primo californiano

 

O primo californiano veio à Hungria visitar a família. É uma jóia de pessoa 

e apesar de ali ter nascido há quase 70 anos e nunca aqui ter vivido 

sente-se húngaro e não esqueceu o idioma que aprendeu com os pais. 

Foi o primeiro, o idioma que se falava em casa, o inglês aprendeu na rua 

com as outras crianças e na escola, onde no início sentiu algumas dificuldades. 

 

O pai, Andor, órfão criado pelos tios, a convite de um famoso professor húngaro 

de quem era discípulo, em 1939 com 32 anos foi para os Estados Unidos. 

A mãe, Margit foi em 1950, depois de ter passado 5 anos num campo de refugiados

Na Áustria. Falava 8 idiomas e era a tradutora. Tinha vinda da Jugoslávia 

de uma região habitada sobretudo por húngaros e alemães, perto da fronteira 

da cidade universitária de Szeged, a Coimbra da Hungria, cidade onde nasceu. 

 

O pai era um abastado industrial têxtil, húngaro, mas com nome alemão.

Com o aproximar do fim da guerra, o avanço dos partisans de Tito 

e do Exército Vermelho, tiveram de fugir, deixando tudo para trás. 

O pai era há muito um entusiasta, grande colecionador de selos

selos que durante aqueles anos austríacos os ajudaram a sobreviver. 

 

Na América os húngaros casadoiros eram informados

quando chegava um barco da Europa com jovens húngaras. 

Foi assim que Margit e Andor se conheceram e se casaram 

namorando entre Pasadena, Los Angeles e S. Francisco.  

Após várias tentativas, nasceu Tibor e o médico disse

- Este bebé precisa da sua mãe, não tente nem mais uma vez.

 

Esteve cá este fim-de-semana e é sempre muito bom estar com ele.

Comove ver como se emociona a falar dos pais, das suas raízes húngaras. 

Está do outro lado do Atlântico e pensa como nós sobre o mundo 

sobre a América de hoje. Estivemos a ouvi-lo com atenção 

a aprender, por isso é primo californiano e não primo americano. 

 

Neste momento já está na Índia, vai até aos Himalaias. 

A última vez que passou por Budapeste

ofereci-lhe um cachecol do Sporting 

comprado quando do jogo com o Estoril (5-1). 

Com ele enviou uma fotografia do Kilimanjaro. 

Continuação de boa viagem Tibor!


2024 - 2025


terça-feira, 1 de abril de 2025

Confissão

 

Confissão de quem está mais para lá do que para cá:

Quando acabar, acabou-se, até lá vou escrevendo, respirando

acaba-se mais cedo se não respirar, se não escrever. 

 

Com as mãos da poesia estou a construir a minha nova casa.  

 

A casa: "De mim ficam as Palavras" com 

- Palavras avulso e a granel 

- Palavras do eléctrico ou Eléctrico das Palavras 

e com os jardins, hortas e árvores de fruto de outros textos à volta.  


Palavras avulso e a granel / 2

 


Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.

Fernando Pessoa (Ricardo Reis)


Para o livro "De mim ficam as Palavras"


Menú semanal


Se eu posso fazer um pequeno pedido 

por favor com esse ar desengonçado 

mostra mais um pouco da tua barriga 

senta-te como vieste despreocupada 

com os pratos e o sorriso na bandeja.

 

O código da pulseira encriptado no olhar 

o telemóvel na mão e ao pescoço o cartão 

a roçar na blusa da roca da rocha da praia 

formação continental de pedra volumosa 

com o fio de algodão enrolado à tentação.

 

Passagens virtuais e realidades paralelas 

ou outra coisa qualquer, os meus olhos 

estavam como lapas coladas ao umbigo 

agarradas em pensamentos de fome 

a esse pedacinho menú da tua pele.

 

Menú semanal do prato com mais saída

de quem ao sol já passou boas horas 

dizem o sol quando nasce é para todos 

e da luz o meu almoço sabe-me melhor.

Assim começava o meu texto de hoje… 

No estádio

 

No estádio onde decorria o jogo 

não estava sozinho em campo.

Dava nas vistas e destacava-se 

fosse das bancadas ou no relvado.

 

Pela qualidade do seu bom jogo 

na arte via-se estar noutro patamar.

Excelente e adulto toque de bola

era também o mais expansivo.

 

Treinava apenas quando podia 

mas quando o fazia era com tudo.

Chegou ao preferido da multidão.

Assim se fez um grande campeão.


Tempos de ficar calado

 

Fora de mim e fora de nós 

a coisa por aqui já esteve melhor 

mas também já esteve muito pior.

 

Os camaradas continuam o projecto 

do esplendor de humanismo libertador 

Mentiroso sou eu e não minto tanto.

 

Do lado de lá do oceano 

a casa é branca de nome 

na verdade, é casa do louco. 

Louco que se não parar 

não vai deixar pedra sobre pedra 

e é capaz de acabar com o mundo.

Senhoras e senhores 

mesmo que nada mude

não são tempos de ficar calado.


Barriga ao balcão


Na pele da dúvida pôs-se a pensar 

a matutar antes de vestir o pijama 

- Será que tenho alma de galinha 

vida de pato, nervos de serpente 

cabeça de porco e espinha de peixe?

 

No iPhone quero escrever século 

e por me ter esquecido do acento 

sem mais sugere-me sex ou sexo.

Devo ser o culpado, deve imaginar 

que não passo de um velho tarado.

 

No final é tudo uma questão 

de encostar a barriga ao balcão 

quem está autorizado pelo regime 

a pôr as mãos todas no tacho 

e refrescar os pés na bacia de zinco. 

Deixar de ser parvo


Descascar favas e ervilhas

Partir nozes e amêndoas 

Lavar e limpar pratos. 

 

Encher e despejar copos

Mover mundos e fundos 

Correr listas e pistas.

 

Preparar o almoço de pargo

Acender o fogão a lenha 

E no fim deixar de ser parvo. 

Em tarde de primavera


A poesia de hoje apenas faz sentido 

se for dirigida à entrega e à conquista 

escrita para ser lida e depois esquecida.

Dizia com um sorriso sábio e maroto.

 

Seguindo as orientações do seu professor 

que tão bem sabia como formar e formatar

guia espiritual na grande avenida da vida

a irradiação solar compensava-se em géneros.

 

Para o dia de festa acabar em beleza

pedia um sabonete, um pente e chinelos

fazia seguro dos pedidos serem atendidos

que a devoção tudo faria para os satisfazer.

 

Tempos de ser protegido das más notícias 

como quando não aceitou a oferta das danças. 

Da aventura que em segredo tinha começado 

nessa tarde de primavera vestida de outono.  

 

A poesia de ontem era escrita em pergaminho.

Hoje está escrita no rosto, escrita no teu corpo. 

Lavar os pés


Ser livre é não ter de se rebaixar 

de beijar, lavar e secar os seus pés 

porque tem o hábito de não ser barato

permitir-se só pelo seu costume de mandar.

 

Ter a liberdade de as pilhas recargar

com modernos carregadores e marchar 

porque quer e porque pensa na família 

voltar a casa a tempo de fazer o jantar.

 

Saber que os tempos de Platão 

foram, mas há muito que já não são

não estar para perder o seu tempo

Se fosse eu também não estaria.

 

Entrou a despachar e nem se sentou

ao balcão pediu um copo de vinho branco

pão caseiro azeitonas e queijo francês. 

Toca a andar que se fazia tarde para chegar. 

Cresceu com outra vida

 

A sua história merece ser contada. 

Nasceu num dia de abençoado 

num mês com futuro e com passado.

 

Cresceu entre a serra e o mar

rios e paisagens de deslumbrar

socializou-se com outro tipo de vida.

 

Fizesse o que fizesse tudo lhe saía bem.

Por vezes parecia que abusava da sorte 

que deus lhe destinou para o seu caminho.

 

Em tempos recentes de fios, teias e malhas

escrevia muito bem, tinha o seu público

e um mestre que lia, apoiava e corrigia.

 

Um dia de inverno, para pena de muitos

decidiu abandonar a escrita, deixar de escrever 

porque o seu mestre leitor deixou de aparecer.


Na praça não havia outro


Sobressaía pelo corte de cabelo 

muito à frente do seu tempo.

Pelo olhar e sorriso encantador

na praça não havia outro.

 

Sobressaía pela sua silhueta

pela sua roupa apertada 

assentava que nem uma luva

parecia toda ela feita à medida.

 

Mostrava-se, mas com moderação 

e não esticava a corda da ousadia.

Sem se assumir caudal fácil ou vulgar

era para muitos o rio da imaginação. 

Jogadora de xadrez

 

Era exímia jogadora de xadrez 

conseguia combinar para vencer

uma apaixonada por simultâneas.

Era disputada em vários tabuleiros.

 

Estava com ele mas alternava  

como livre sempre fez na vida.

Ganhou-lhe por isso o gosto 

e já não queria outra conversa.

 

Com tanto estilo e presença 

de muito competir e praticar

devia ser ela monitora a ensinar 

e não ter um treinador para aturar.

 

É assim que tu me vês 

será assim que eu sou 

ou será assim que tu és?


2024 - 2025


Em "Palavras avulso e a granel"

Para o livro "De mim ficam as Palavras"