Porque a música penetra mais fundo na alma. Platão
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
Porque a música penetra mais fundo na alma. Platão
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
"Ama, ama enquanto puderes"
enquanto a amada te esperar
enquanto a paixão continuar
e o vosso amanhecer desejares.
Ama, ama enquanto fores vivo
enquanto te sentires renascer
quando o seu olhar te sorrir
e convidar para a rua do prazer.
Ama, ama enquanto souberes
que o seu coração bate em ti
que este Amor não morre por si
por ela estás pronto a tudo deixares.
Ama, ama até ao último sopro
sempre o vosso primeiro momento
e recorda que um minuto com ela
é mais do que a vida toda com outra.
Ó Meu Amor, aconteça o que acontecer
por muitas mágoas que sintas e tenhas
mágoas por mil razões sedimentadas
barco afundado carregado de pedras.
Para a despedida, para a tua partida
que fria e impiedosa a vida justifica
peço-te, nunca me deixes abandonada
sozinha e perdida à beira da estrada.
Perdida, triste e por dentro escurecida
entre uma terra nova e outra desconhecida
a meio caminho entre a dor, o amor e o nada
sem saber o rumo nem tão pouco o futuro.
E é tão bom quando fazemos as pazes
quando as fúrias, as guerras e os ciúmes
dão lugar à paz e corremos para o reencontro.
E nos despimos para nos vestirmos um do outro
adormecemos lado a lado cansados e felizes
- A descansar em cinzas ao gosto do Bom Deus.
Ó Meu Amor, nunca te vou esquecer
- Os teus olhos são a noite no mar
- São o mar na noite, no dia da noite.
Devagar devagarinho com a transparência dissimulada
como quem não quer a coisa e com a finesse
que só uma dama, uma
mulher tem e sabe usar
se o assunto lhe interessa e pensa valer a pena.
Foi-o envolvendo e seduzindo (ele pensava o contrário).
Um dia depuseram as armas e tiraram as teimas
desarmados e abraçados multiplicaram o pão e o beijo
juntaram-se e não podia ter sido refügio mais valioso.
Na flor da vida e para não fazer as coisas pela metade
deixa-me adormecer contigo e sonhar ao teu lado
seres a minha toutinegra e eu o teu pintassilgo
casar-me contigo para esta e quantos vidas tivermos.
Fazer uma grande festa de casamento com toda a aldeia
dançarem contigo a menyasszonyi tánc (dança da noiva)
beber o último copinho de aguardente com os amigos
e nessa noite serei teu, serás minha, uma alma seremos.
Parte dos "Grandes Études de Paganini”
O seu corpo na erva, no chão deitado
era a apanha antecipada da azeitona
Florido um caloroso teclado de piano.
A sua alma nos trabalhos da vindima
era a cesta cheia das sílabas da boca
A carícia dos dedos nas cordas do violino.
Afirmava com a sua malícia: é agora ou nunca
vamos pecar agora que ninguém se importa
Não há quem pense em nós, na nossa festa.
Ali próximo do monte no sopé do sonho em voo a planar
da imaginação à sombra da parreira a crescer sem parar
Não falar não olhar não desdizer não apalpar nem se
atrasar.
Esse perfume indesmentível da falésia ou da vertigem
a coragem e a voragem da loucura incontrolável a arder
Da subida vertical da ascensão ao céu pagão do
prazer.
Se os pactos com o demónio fossem todos assim
e se o diabo em figura de gente fosse Paganini
dedos magros e compridos que mais ninguém tinha
quantos de nós não seríamos devotos do diabo...
Se não fôssemos moleiros ou aguadeiros do moinho
(para quem não saiba Liszt em português é farinha
o nome de Liszt seria Francisco Farinha)
quantos de nós não seríamos padeiros da padaria...
A partir de 1830, Liszt (1811- 1886) vive em França e
torna-se amigo
de Frédéric Chopin (1810-1849) e de Niccolò Paganini
(1872-1840)
músicos-compositores que influenciaram a sua música para
piano.
Chegava pé ante pé feito bailarino
em silêncio da proximidade da vida
da planície ausente, da noite fechada.
Chegava com um ramo de rosas brancas
com uma caixa de fósforos para iluminar
um breve sorriso invisível e tímido na mão.
Sabia que ela iria reconhecer o perfume
da namorada natureza que vinha com ele
que o rosto imaginado ficaria para depois.
A razão podia explicar a força desse lume.
Sentia que um dia a noite madrasta dos olhos
se faria mãe com um coração doce e grande.
Deixa que entregue os olhos do meu coração
Ó meu amado benfeitor fica comigo para sempre.
Se fosse seara seria uma espiga de milho
Namorava às escondidas com o centeio
E passava o tempo a fazer ciúmes ao trigo.
Na festa das bruxas, no baile das raparigas
Espontânea adorava surpreender as formigas
Com migas, grãos de café e bolachinhas.
Vinha de dentro, era das irmãs a mais meiga
Tinha mais amigas do que um concerto gratuito
Mas também não se escondia de uma boa briga.
Nunca se sente cansada, visitada pela fadiga
Está sempre disponível para o seu prometido
E ainda hoje é nos seus braços que se abriga.
Foi quando aceitámos o perfume do vento
e a brisa nos protegeu com o seu véu
porque tecíamos as surpresas do tempo.
Porque pedaços da pele das tuas rendas
se prenderam ao coração das minhas silvas
cantamos o mosto do corpo, o altar do amor.
Como estamos de pé no piano, nota de roda-mão:
Chamava-se Maria Wodzińska e tinha 17 anos
e era de uma beleza que convidava a escrever.
Foi a primeira paixão conhecida de Fryderyk
em segredo estiveram comprometidos
mas o casamento acabou por ser cancelado.
Um século e meio depois numa outra capital
outra Maria também da Polónia tinha 18 anos
e apesar da dedicação também não se casou.
Não andava nem se deitava sem o crucifixo
com Jesus da Nazaré bem acomodado no vale
que separava e juntava os rijos e belos peitos.
Para ter reservado um lugarzinho assim.
Infiel inofensivo, quem me dera a mim
ter sido eu também injustamente crucificado.
e merecer por isso em terra alheia, o paraíso.
Seria pelo desleixo das roupas
da maquilhagem pouco cuidada
como para disfarçar tanta alegria
a felicidade desenhada no rosto
que afaga o peito
que enobrece a alma
que acicata o gosto
e desperta sentimentos.
Por um instante o olhar parece ausente
perdido algures entre memórias e desejos.
A mão meiga que toca no cravo vermelho
talvez por ser abril e passear por Lisboa.
Ali se perdeu com ela pelas suas ruas estreitas
com a melancolia tardia de algum sefardita
pelos labirintos miradouros e ruelas de Alfama
pelas tabernas, travessas e becos da Mouraria.
Nada levava a pensar que aquela linda moça
estava ali para te ouvir te acompanhar e confirmar.
Pelo menos o piano não magoa os dedos como as guitarras.
E eu levei isso muito a sério: Frédéric Chopin
Deixa o medo fechado em casa
por detrás do roupeiro, no fundo
da gaveta e perde a chave da porta.
Escolhe a espada da coragem
está na hora de se fazer à estrada.
Pátria nem que seja a última viagem.
Não é tempo de discutir a cor da madeixa
feita à medida da mentira para enganar.
O sexo dos anjos ou os cornos alçados
do cabresto cabrão do criminoso czar.
Vive-se uma época em que o heroísmo
precisa de inspiração, de força e de vigor
como disse a sua famosa amante e protectora.
Se possam desfraldar bandeiras como esta.
Budapeste, janeiro-abril 2025
Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.
Fernando Pessoa (Ricardo Reis)
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
Noli me tangere de Ticiano.
- Sem querer correr o risco da blasfémia
Não me toques que me desafinas
desafinas o piano, o pianoforte
da minha teimosa tranquilidade
e santa abstinência de séculos.
Mesmo não sendo tua intenção
traz-me de volta até aqui ao coração
a vivência, a vida sem sombra da morte
desses momentos maravilhosos (MM
- Maria Madalena, Marilyn Monroe)
que há muito eu preciso esquecer.
Deixar-me dormir no subterrâneo da ilusão
na gruta mal iluminada da desilusão.
O que é feito do sobressalto cívico?
O "Noli me tangere" de Ticiano
que vimos em Londres na National Gallery.
Entou pardal de trigo e saiu como um pavão.
Recordar Picasso (PP) sem pregar a abstinência
ou não lhe tocar que queima, pelo contrário
se inspirou no "Noli me tangere" de
Correggio
- quadro exposto no Museu do Prado em Madrid.
Não esquecer, é na penumbra que as mãos tem olhos!
A emocionante tela La vie, 1903 do período azul
- Retrata o seu grande amigo Carlos Casagemas
que antes se tinha suicidado e deixou Pablo
inconsolável.
A partida dos amigos deixa vazios com mágoas infinitas.
Alguns dos meus melhores amigos não voltarão jamais!
A vida e a morte, modelo e musa, amada mulher
do princípio ao fim da nossa breve passagem pela
terra.
- PP não se pode queixar, foi dos que mais viveu (1881-1973)
Modigliani (36 anos), Van Gogh (37 anos) e Klimt (56 anos).
Que seria de nós sem a arte e os seus grandes artistas!
Touch me
now, I close my eyes
And dream
away (Roxette)*
Se digo
"Don’t touch me there"
porque sem querer troquei de canção
e seja em que língua for, não acredites
devo ter bebido gin tónico a mais
ou comido algo que me fez mal.
O que eu quero dizer é, Não pares!
Olha-me e entendes todo o meu mundo
que é teu desde o primeiro elevador
desde a primeira porta fechada atrás de nós.
Continua, continua até ser noite, até ser dia.
*It Must
Have Been Love
do
filme Pretty Woman (1990)
Dizem que gostos não se discutem
e que não há duas pessoas iguais
- cada cabeça sua sentença.
Uns multiplicam o pão e há outros
que preferem a multiplicação dos pobres
- preferem perpetuar a pobreza.
Fazem precisamente o contrário
das suas teorias libertárias e das suas ideias
- das suas promessas libertadoras.
Mudando de assunto, imaginando
estar perto de ti e pensando
em que dizer para te surpreender
abro o teu guarda-roupa e escrevo
- Diz-me o que vestes agora
e eu digo-te o que mostras
o que devias guardar para depois.
É tão bom observar-te indiscreto.
Prefiro-te nua, pele e mais nada
minimalista, vestida de serviços mínimos
não com o design inovador de troca-tintas.
Amor, sabes bem que não há gostos iguais.
Se eu tivesse nascido em Budapeste
teria sido canalizador ou contabilista.
Se tivesse nascido na cidade de Lisboa
teria sido moço de recados e alfaiate.
Teria estudado numa escola industrial
e com tempo aprendido uma profissão
emprego numa sociedade comercial
subindo a pulso com espírito de missão.
Pessoa respeitada e útil à sociedade
com trabalho e clientes satisfeitos
teria sido um conhecido costureiro
a tesoura masculina, o fato da cidade.
Para a arte da confeção não se perder
teria casado com uma colega modista
ido de férias e a crédito comprado casa.
Seria um mundo a sério, uma vida a valer.
Pode ser que por milagre tenha sorte
mas quem é pobre, quem nasceu pobre
dificilmente algum dia deixará de o ser.
Andar sempre com o credo na boca
seja pela doença ou da renda da casa
as prestações e os estudos das crianças
da alimentação, do vestir ou desemprego.
No mundo de hoje como já foi antes
o que conta é a demagogia e o verbo
e são normalmente os ricos e abastados
que falam, dizem representar os pobres.
A mim dói-me e é tão triste assistir calado
ver como os mais pobres se deixam levar.
De que falam estes iluminados? Pelo Duce?
Como Lénin? Outro qualquer demagogo?
Deixem-me parafrasear García Marquez
- El día en que la mierda tenga algún valor
los pobres nacerán sin culo. Assim, Gabo!
Falava de pudor em pó como quem fala
de sabonete líquido inventado à medida
e feito para da cintura para baixo escorrer
- devagar pois o dia ainda é uma menina.
Para lavar cuidadosamente as pernas
a quatro mãos e a vinte e dois dedos
que mesmo com a tração às quatro rodas
- a atração para ser verdadeira é a dois.
Espalhava o pó de talco cor-de-rosa claro
pela saída do pescoço e entrada do peito
e dizia: está um belo dia para passear
- mais para amar do que para trabalhar.
No bairro degradado não havia tanto luar
como quando à noite arranjada saía de casa
para melhorar as finanças tremidas da família
- tanta boca para comer, tanta para calar.
Ontem chegou cedo a casa e a más horas
e para seu espanto foi encontrar a mulher
corpo a mostra, vestida como veio ao mundo
metida na cama debaixo de um desconhecido.
- Querida, mas o que é que se passa aqui?
- Querido, acredita que não é o que parece.
Conheces-me bem, sabes como sou humana
e solidária, vi-o na rua tão triste e abandonado
que o trouxe para cá para lhe dar uma sopinha
consolar-lhe a alma e a coisa acabou molhada.
- Querida continuem que eu volto mais tarde.
A outra história de vida é também azeitada.
Quando ela queria parar, ele incitava a esposa
e era tão forte a sua fraternidade masculina
que a repreendia quando faltava aos encontros.
- É tão bonito ter uma mente livre e aberta.
- É tão bom viver nestes tempos modernos.
As arrumações começaram pelos armários do
corredor
e continuaram pelas gavetas e guarda-roupas do quarto.
Não sabiam que armário vinha da velha palavra arma.
Armário, cofre ou guarda-armas de quem as tinha.
Saíram do armário com estrondo e espanto dos outros
- Ele gostava de homens e ela gostava de mulheres
era assim há muito tempo, entre eles, mas em segredo.
Casados mais de vinte anos, continuaram bons amigos.
Da palavra armário ocorreu-me arminho
pele de arminho macia, fofa e mimosa
e daquela loiraça muito gira e vistosa
que trocava a lama da floresta pela cama.
Veio a saber-se mais tarde que era agente da kgb
andava sempre perdida pelos melhores hotéis
e o seu destaque era o casaco pele de arminho.
que em tempos idos teria sido símbolo da pureza.
- Por baixo tinha uma chemise acinzentada
e por ideologia não usava nem tapa montinhos
nem calcinha stop-stop, aqui tens de esperar
até eu dizer que está verde, podes avançar.
Belcanto. As teorias da conspiração que por aí
abundam
pelo seu letal veneno acabarão por matar, por assassinar.
Não sejamos ingénuos e tentar compreender o absurdo
não nos deixemos enganar pelo belcanto das serpentes.
Ovo de serpente com várias cabeças como um dragão
hidra-anão símbolo do mal que cresce sem parar
se resilentes não lhe cortarmos as cabeças uma a uma.
Não será trigo limpo farinha amparo, mas com coragem
vamos fazer das suas cabeças decepadas e queimadas
das cinzas o melhor estrume das nossas terras agrícolas.
Não penses em te suicidar! Mata as serpentes dos
belcantos!
- Pode ver-se a olho nu em miniatura o réptil já
concebido.
É só uma questão de tempo e oportunidade há sempre.
Do filme Ovo da serpente (1977) de Bergman.
Belcanto, restaurante ao lado da Ópera em Budapeste.
Era muito caro, mas comia-se e cantava-se bem.
Os empregados traziam cantando os pratos à mesa.
Caso para dizer, Viva a cultura da voz e do estômago!
2024 - 2025
Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta
continuarei a escrever. Clarice Lispector
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
Les yeux cherchant le ciel mais le cœur mis en terre
Meu bicho-da-seda, minha lagarta da amoreira
que se faz a mais bela das borboletas
e em ti representa a vida, o fim e o renascimento
o feio feito feitiço da beleza ou precisamente o contrário.
Da vida ontem da vida sempre, vida nunca e vida eterna
no baixo-relevo do teu copo abaixo e acima em tudo
na vertical, na horizontal e nas escadinhas do bairro
ou no tapete voador, de paraquedas para-quedistas
- Borlistas e carteiristas, vigaristas e feiticeiras...
Na autoestrada da chuva
nas curvas e contracurvas do vento
no cruzamento tardio da noite
na acalmia da tempestade
na estação para recomeço do novo dia
no apreço comovente na praça do nosso reencontro.
Nunca é tarde para tentar como se fosse a primeira vez
Nunca é tarde para voltar a errar se é a mando do
coração
Nunca é tarde para voltar ao local onde tudo começou
Nunca é tarde para chorar o passado e lamentar o futuro.
Para deixar o coração em terra e apanhar o avião
Levar consigo os olhos, o olhar do mundo nos teus
olhos
Cantar o passado e agradecer o futuro - a minha gratidão.
Do princípio ao fim do mundo
do século perdido, a algazarra
não abrandava e o apara-lápis
não parava de ser emprestado
por vezes trocado por um beijo.
Cães e gatas já estavam habituados à confusão
a alfazema e o alecrim não espantavam ninguém
nem o alfarrabista da esquina que não vendia
não se desfazia de nenhum dos seus melhores livros
- que faria se não os tivesse à mão para os desfolhar.
Os bailes do bairro acabaram et les lilas sont morts
os sindicatos perderam o pio e os trabalhadores
amoucharam
sentados no chão de pernas cruzadas à espera do
milagre
mas temos os jovens como ontem hoje também não se
calam
- é do futuro deles que escrevia e cantava o arménio
Aznavour.
Em Montmartre de Paris do antigamente
eram pobres, ele passava fome e ela posava nua
sentia-se em tudo a liberdade, decadência e liberdade
que bem precioso é viver democracia num país livre
sem perseguição - num país do decadente ocidente.
"La chair des femmes se nourrit de caresses comme
l'abeille de fleurs."
Anatole France
Aquarela e a tinta dos seus olhos
a doce conspiração das suas coxas
com a flanela nocturna dos seus braços
na água morna dos seus lábios
quando os beijo para saciar a sede.
Cortiço mel das flores da sua serra
com a cobiça do fascínio maior
da planície lunar do seu olhar
com a cotovia ou confraria do amor
para não me esquecer e te esperar.
Pôe a papoila a humedecer na tua papoila para crescer
Fotografia da ousadia que não deixou nada por mostrar
A cadeira da sala onde tanta coisa boa ficou por fazer
A bagageira da alma onde ainda hoje a quero guardar.
Com a cerveja à frente pausadamente dizia
- Se é pecado se por comer pouco pão
me descuidar e beber mais que a conta
pior seria ter sido moço de cabeça no chão.
Se me distrair a olhar aquela ilha vistosa
ao lado sentada e pensar noutros tempos
e dar asas de avioneta à imaginação
é não temer a régua de castigo e educação.
Se é pecado cuidar e regar essa rosa
para lhe dar cor e não a deixar murchar
como é deixar-se envolver pelo seu aroma
e com ela se perder e em silêncio florescer.
Escrevia Pedro Homem de Mello e Amália
tão bem cantava quando iam a Viana
- Os pecados têm vinte anos
e os remorsos têm oitenta -
O pecado (i)mortal mora na guloseima
e cresce no bom gosto e na certeza
do bem que faz pelo melhor que sabe.
Pelas outras vidas que nos
traz de volta.
Prefácio
Na manhã desse dia lavei-me e vesti-me
arranjei-me, tratei da pele com mais cuidado
valia a pena, sabia bem por que o fazia.
Talvez tenha deixado a pele sem nenhuma defesa
mas sabia que a tua pele na minha a iria proteger.
Sabia que não seriam os teus beijos ardentes
os teus dedos e os lábios que a iriam maltratar.
Na manhã desse dia saí de cedo de casa
o coração estremecia e quase me saía do peito
estava ansiosa, sentia muito impaciência.
A única certeza que tinha é que vacilava de receio
se seria um sorriso, um abraço, um beijo forçado.
Felizmente perto de ti perdia sempre o medo
via abrir-se o céu, vivia a paixão que era a nossa.
Posfácio
Desatentos não se deram conta
que o melhor tempo se tinha gasto
e se foi de vez para outro país.
A última pele pelo que parece secou
e fez-se deserto árido sem um oásis
sem uma mãcheia de ternura doce.
O coração, com a lenha dos corações
esse sabe-se continuou a arder feito fogo
até ser borralha e cinza levadas pelo vento.
Recordar a terra húmida da margem do lago.
Descrever a dança do mar que nunca dançaram.
Mundo que mudou tanto, tanto que já não é nosso.
Para António Rosas
Esta noite a minha intenção é fazer um breve relance pelo
erotismo
e algumas liberdades da classe operária e dos seus
representantes
no Portugal da primavera marcelista antes do 25 de Abril
libertador.
- Aquele é o padrinho, não é o afilhado famoso dos
selfies
que foi primeiro comentador referência da televisão
e depois S.E. O Presidente da República Portuguesa…
Era o magusto e jeropiga de São Martinho na fábrica de
fiação
e houve quem se tenha acelerado mais do que devia
ultrapassou a barreira do pudor e alguma timidez recalcada.
Depois do almoço voltou-se ao trabalho, mas uma das
operárias
no corredor menos iluminado fez-lhe uma espera
inesperada
- Não gostas? É tudo para ti! Bata no chão blusa aberta sem
soutien.
- Porque se acabava duas três vezes por semana pedia-me fio
eu fazia-lhe sinal para subir ao terceiro andar à sala dos
rolos
onde nos enrolávamos ouvindo as máquinas a trabalhar.
Era ali para os lados do Martim Moniz quando as
fábricas
ainda funcionavam em pleno centro da cidade
- O prazer operário e não apenas ser explorado pelo patrão.
Tenho andado de volta revendo Almada Negreiros
com o Manifesto Anti-Dantas, 1915, e a Taca de chá*.
Recordando: As Banhistas, 1925, A Sesta, 1939,
O Retrato de Fernando Pessoa, 1954 ou o meu favorito
Art Déco, Estudo para uma Decoração de Teatro,1929.
*”Pela manhã vinham os visinhos em bicos dos pés espreitar
por entre os bambús,
e todos viram acocorada a gueisha abanando o morto com um
leque de marfim.”
Preâmbulo: Se Almada visse a pose e a roupa colada ao
corpo
- Uma segunda pele da jovem mulher por baixo da gabardine -
esta tarde na paragem do eléctrico... eu fiquei com a
sensação
que teria escrito rápido e certeiro, dizendo em voz
alta:
Eléctricos do mundo libertem-se! Sejam uns fora de
caixa
saltem dos carris, não aceitem a escravidão fixa dos
horários.
Parem, façam greve para que aprendam, chega de brincadeiras.
Com os condutores dos eléctricos não se brinca nem a
brincar.
Assim tinha tempo podia observar mais uns minutos
sem a ver desaparecer ou ter de se apressar, entrar a
correr
para a continuar a ter aquela visão mais algumas
paragens.
Não estava sozinho naquela observação de admiração.
Segundo preâmbulo: descobri Almada na minha adolescência.
O nosso primeiro encontro foi com o Manifesto
Anti-Dantas
declamado por Mário Viegas. Se fosse hoje, 110 anos
depois
estou convencido que o título seria: Manifesto
Anti-Ventura.
Ultimamente tenho jogado com a ideia-provocação de pensar
- Qual seria a sensata-opinião do wokismo sobre Almada?
Será que seria queimado na fogueira da inquisição wokista?
As pestanas postiças, falsas eram mais compridas
que a mais curta das pontes sueco-dinamarquesas
distante da tal Groenlândia que Trump quer anexar.
Os lábios carnudos, espalhafato a mais de tão inchados
quase caiam da boca e deixavam os dentes à mostra.
Os seios tão esticados que nem quatro mãos chegariam
para os cobrir e esconder, para proteger do mau olhado
que infelizmente do silicone já não havia nada a fazer.
Não teria mais de 20 anos e antes de se industrializar
em exageros e afins deve ter sido uma miúda jeitosa
mas agora está feito um super armazém de plástico.
Feita uma carroçaria que não precisa de bate-chapas
mecânico de amortecedores e assentos para fixar o dito.
Não há tempo para recriar a história sacana da palha
seca
se faz um bom colchão porque se tem de limpar a palha
que tem no rabo, rabo de palha na ponta da navalha.
O primo californiano veio à Hungria visitar a família.
É uma jóia de pessoa
e apesar de ali ter nascido há quase 70 anos e nunca aqui
ter vivido
sente-se húngaro e não esqueceu o idioma que aprendeu com os
pais.
Foi o primeiro, o idioma que se falava em casa, o
inglês aprendeu na rua
com as outras crianças e na escola, onde no
início sentiu algumas dificuldades.
O pai, Andor, órfão criado pelos tios, a convite de um
famoso professor húngaro
de quem era discípulo, em 1939 com 32 anos foi para os
Estados Unidos.
A mãe, Margit foi em 1950, depois de ter passado 5
anos num campo de refugiados
Na Áustria. Falava 8 idiomas e era a tradutora. Tinha vinda
da Jugoslávia
de uma região habitada sobretudo por húngaros e alemães,
perto da fronteira
da cidade universitária de Szeged, a Coimbra da Hungria,
cidade onde nasceu.
O pai era um abastado industrial têxtil, húngaro, mas com
nome alemão.
Com o aproximar do fim da guerra, o avanço dos
partisans de Tito
e do Exército Vermelho, tiveram de fugir, deixando tudo
para trás.
O pai era há muito um entusiasta, grande colecionador de
selos
selos que durante aqueles anos austríacos os ajudaram a
sobreviver.
Na América os húngaros casadoiros eram informados
quando chegava um barco da Europa com jovens húngaras.
Foi assim que Margit e Andor se conheceram e se
casaram
namorando entre Pasadena, Los Angeles e S. Francisco.
Após várias tentativas, nasceu Tibor e o médico disse
- Este bebé precisa da sua mãe, não tente nem mais uma
vez.
Esteve cá este fim-de-semana e é sempre muito bom estar com
ele.
Comove ver como se emociona a falar dos pais, das suas
raízes húngaras.
Está do outro lado do Atlântico e pensa como nós sobre
o mundo
sobre a América de hoje. Estivemos a ouvi-lo com
atenção
a aprender, por isso é primo californiano e não primo
americano.
Neste momento já está na Índia, vai até aos Himalaias.
A última vez que passou por Budapeste
ofereci-lhe um cachecol do Sporting
comprado quando do jogo com o Estoril (5-1).
Com ele enviou uma fotografia do
Kilimanjaro.
Continuação de boa viagem Tibor!
2024 - 2025
Confissão de quem está mais para lá do que para cá:
Quando acabar, acabou-se, até lá vou escrevendo, respirando
acaba-se mais cedo se não respirar, se
não escrever.
Com as mãos da poesia estou a construir a minha nova
casa.
A casa: "De mim ficam as Palavras" com
- Palavras avulso e a granel
- Palavras do eléctrico ou Eléctrico das Palavras
e com os jardins, hortas e árvores de fruto de outros textos
à volta.
Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas.
Fernando Pessoa (Ricardo Reis)
Para o livro "De mim ficam as Palavras"
Se eu posso fazer um pequeno pedido
por favor com esse ar desengonçado
mostra mais um pouco da tua barriga
senta-te como vieste despreocupada
com os pratos e o sorriso na bandeja.
O código da pulseira encriptado no olhar
o telemóvel na mão e ao pescoço o cartão
a roçar a concha da blusa na rocha da praia
formação continental de pedra volumosa
com o fio de algodão enrolado à tentação.
Passagens virtuais e realidades paralelas
ou outra coisa qualquer, os meus olhos
estavam como lapas coladas ao umbigo
em pensamentos de alguma fome
por esse pedacinho menú da tua pele.
Menú semanal do prato com mais saída
de quem ao sol já passou boas horas
dizem o sol quando nasce é para todos
e da luz, o meu almoço sabe-me melhor.
Assim começava o meu texto de hoje.
Quem diria que cansados até os cavalos desistem
a água fresca ajuda, mas nem o feno e a forragem
chegam para acreditar na justeza da miragem.
O que os olhos não sabem, as mãos não podem.
Cartola de chocolate e artelhos de cabra lima-limão
com algemas de cerâmica em tornozelos de papelão.
Chafarica airosa a Maria empresária de bordel
nua e bem vestida vai de batel ao mar de papel.
Declarava em voz alta, altiva e com convicção
- Não, os amantes não são artigo de consumo
nem o amor uma mercadoria de contrabando
porque não é camisola de contrafação
um par de óculos de sol em segunda mão.
Inverdades esterilizadas, fervidas e empacotadas
com sorte descartáveis, com azar recicláveis.
Tão bom! Rouba aos ricos para dar aos pobres!
Uma ova! Mentira do tamanho de um camião!
Rouba a todos para dar à família e aos amigos!
Será que nos tempos em que vivemos
estamos cansados de sermos livres
com vontade de caminhar por alamedas
de uma só direção cheias de armadilhas?
Caminhos ali para os lados mais sombrios
da humanidade, da nossa condição humana
da péssima imitação de animais encurralados
e promessas de que nunca houve regime melhor.
Da sua oratória à tona do texto vem a divisão
do lucro, de encostar a barriga ao balcão
quem pelo futuro "dos de bem" está autorizado
a pôr as mãos todas até ao fundo do tacho.
O sujeito que estou a pensar é um caganças
faz o mal e a caramunha e ainda se queixa
faz-se coitadinho e de vítima, o Vigarista.
Sabes mais impostor? Vai-te encher de moscas!
É o tempo desta vida e da outra se houver
e para à velha tabuada não ter de recorrer
o tempo exacto para os olhos se olharem
o tempo certo para as bocas se cruzarem.
É não lamentar os dias gastos por engano
sem a cor do sonho, das palavras sem rumo
os momentos passados juntos no inverno
repetir e repetir que estarei sempre contigo.
Não te percas! Não percas o norte nem o sul.
Não desesperes, não percas o teu optimismo.
Faz de maneira que nunca estejas sozinho
abandonado debaixo de tão vasto universo.
Na azáfama de ter tudo pronto a horas
é tempo de descascar favas e ervilhas
com martelinho partir nozes e amêndoas
lavar à mão na bacia de zinco garfos e pratos.
Como quer aprender primeiro com a vida
passa os dias a encher e despejar copos
a correr às mesas e mover mundos e fundos
devolver os trocos a pensar no pouco que fica.
Mas há sempre um momento Damasco de clique
de limpar as escamas dos olhos e do pargo
tempo de preparar o novo algoritmo do almoço
de acender a fogueira e deixar de ser parvo.
A poesia de hoje apenas faz sentido
se for dirigida à entrega e à conquista
escrita para ser lida e depois esquecida
dizia com um rasgado e sábio sorriso.
Percorria os caminhos do seu bem amado
que tão bem sabia como formar e despertar
estrela maior nessa grande avenida da vida
o raio de sol que iluminava o último livro.
Para a festa acabar asseada e perfumada
pedia sabonete, um pente e uns chinelos
fazia seguro dos pedidos serem atendidos
que tudo faria para ele se sentir em casa.
Depois vieram também tempos de outras festas
tempos de ser ignorado e algumas más notícias
do segredo bem guardado da sua nova descoberta
do verão que começou nessa tarde de primavera.
A poesia de ontem era escrita em pergaminho.
Hoje está escrita no rosto, escrita no teu corpo.
Ser livre é não ter de se rebaixar
de beijar, lavar e secar os seus pés
porque tem o costume de não ser barato
permitir-se pelos seus hábitos de mandar.
Ter a liberdade de as pilhas recargar
com modernos carregadores e marchar
porque pensa na família e porque quer
voltar a casa a tempo de fazer o jantar.
Saber que houve os tempos de Platão
platónicos, mas há muito que já não são
e não estar para perder o seu tempo.
Se fosse comigo também não estaria.
Entrou apressada e nem se sentou
ao balcão pediu um copo de vinho branco
pão caseiro azeitonas e queijo francês.
Toca a andar que se faz tarde para chegar.
A sua história de vida merece ser contada.
Nasceu num dia distante quente e abençoado
num mês com passado e com muito mais futuro.
Cresceu livre entre a serra e o mar
rios e vales, paisagens de deslumbrar.
Casou-se bela, muito jovem e por amor.
Fizesse o que fizesse tudo lhe saía certo.
Por vezes até parecia abusar da sorte
que Deus lhe destinou para seu trilho.
Segundo o que dizem os que a conhecem
começou a escrever, a escrever muito bem
tinha o seu público atento que a seguia
e um leitor distinto que apoiava e corrigia.
Um dia para pena de muitos abandonou a escrita
parou porque o seu leitor favorito deixou de estar.
Com o choque da partida, com a morte do mentor
o desinteresse pela poesia foi imediato e redentor.
Sobressaía pelo corte de cabelo
muito à frente do seu tempo.
Pelo olhar e o sorriso encantador
no largo da esplanada não havia outro.
Sobressaía pela sua silhueta fina
pela sua roupa justa e apertada
assentava que nem uma luva
parecia toda ela feita à medida.
Mostrava-se, mas com moderação
e não esticava demais a corda atrevida.
Sem se assumir caudal fácil ou vulgar
era para muitos o único rio da imaginação.
Do xadrez era uma excelente jogadora
conseguia combinar e jogar para vencer
uma maçã madura que ganhou o gosto
pelas simultâneas com muitas mesas.
Tinha um bom tabuleiro, mas alternava
como se habituou ao longo da sua vida
ao prazer que lhe dava os grandes jogos
que por si não trocava por nenhuns outros.
Ir ao supermercado ou à loja do bairro
era como se encontrar com o seu amante
com grande arcaboiço e grande espingarda
com ele namorar era mesmo para recordar.
Destacava-se por ter menos olhos que barriga.
Marroquinas clementinas ou laranjas de sangue
a doce acidez do prazer pago a prestações
de rendas pretas rendinhas vermelhas fetiche
com a utilização da melhor das suas tradições.
Na frutaria as prateleiras estavam todas vazias.
2024 - 2025
Em "Palavras avulso e a granel"