segunda-feira, 23 de março de 2009

OS GATOS E AS PALAVRAS


“Eu não tenho gato, mas se tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morressse”
António Gedeão

1. Na casa dos meus pais sempre tivemos gatos.
Ainda hoje é assim. Um deles dormia a sesta
numa das pernas das calças enquanto o meu pai almoçava
no tempo em que as calças da farda de cobrador
eram suficientemente largas para abrigar um gato adulto.

2. Mais tarde esse mesmo gato adoeceu
e morreu em dois dias. Eu tinha onze anos
a minha irmã inconsolável chorava. Morávamos
na Portela das Padeiras andava no Liceu
e o meu pai já era emigrante em França.

Assim como único homem da família
fui eu que com uma pequena enxada abri a cova
onde enterrei o gato morto numa caixa de sapatos.
Foi ao fundo da horta do feijão verde e dos tomatais
das couves e dos repolhos das cenouras
salsa e alface que a minha mãe cultivava.

3. Foi com Neruda que comecei a procurar os gatos
na poesia deve ter sido em Outubro de 1974.
Continuei com Pessoa e com Eugénio de Andrade
e foi assim com António Gedeão – Poema ao Gato –
tão pessoal e do mais comovente que li em verso.

4. Antes quando ainda viviamos nos Amiais
em frente moravam os meus avós e no verão
mais quente a melhor sombra era a da parreira
das parras grandes que ligava as duas casas.

Estava o gato agarrado ao tronco quando a Lurdes
e o Joaquim José meus vizinhos se lembraram
de puxar os bigodes e o rabo ao bichano.

Ao contrário da fama de rabos de gatas e da má-língua
na verdade o pudor é levado muito a sério
a auto-estima. A vítima daquela afronta fui eu. Grande
rebuliço a correr para o doutor Fialho o médico da aldeia.

Tive muita sorte. O meu olho esquerdo não ficou escuro
porque as unhas atingiram apenas o branco do olho.

5. Nos anos da revolução e da militância para que o sol
brilhasse aqui na terra para todos – pensávamos nós –
entrava em casa todos os dias já alta madrugada.

Tinhamos um gato que como dizia a minha mãe
só lhe faltava falar. Todas as noites me esperava à entrada
do prédio encostava-se às minhas pernas com o rabo alçado
recebia umas festas à porta da casa e esperava o interesseiro.
Todas as noites uma rodela revolucionária de chouriço

6. E havia o Zé Gato era guarda-redes do rival Benfica
para gato era pequeno mas entre os postes um enorme campeão.

7. Anos depois em Budapeste numa rua perto da residência
havia um bar chamado Fekete Macska (Gato Preto).
Estive lá muitas vezes com o Barry da Guiné-Conacry
e às vezes sózinho ou mal-acompanhado. Como estava perto
da cama podia abusar e abusava com frequência.

Foi ali entre copos de cerveja e copinhos de aguardente
que comecei a série do Gato Preto. No verão seguinte
o Zetho convenceu-me a publicar em edição para amigos.
“Até que um belo dia, pegámos num certo gato preto,
e atirámo-lo a rua. Foi em Setembro,
menos de um mês depois, morria a minha mãe, lembras-te?”

8. Mas em Budapeste minha única cidade adoptiva
mais do que pretos eram azuis verdes louros castanhos
eram gatas gatinhas claras que faziam tão bem à vista
ao coração. Era tão bom poder passar-lhe a mão pelo pêlo.

9. Durante 20 anos de amor e em siléncio
sem poesia recriei as minhas verdadeiras palavras.

A minha cachopa sabe muito de rebentos
filhos e flores mas não lhe falem de animais domésticos.
Numa ocasião de ronron e mimos de gato
dizia-me que quando era pequena pensava
que o cão era o pai a gata a mãe e o ratinho o filho.

Anda dizem que não se pode reescrever a história
e a luta de classes não dar lugar a uma atípica família feliz.

10. Nas férias grandes quando as minhas filhas
ficavam mais tempo em Portugal a Anna Melinda
era o terror dos gatos dos avós. Durante as semanas
em que elas estavam só apareciam de fugida para comer.
Para os pobres gatos o mel era bem amargo e de linda
só o nariz arrebitado sem arranhões daquele diabinho.

11. O Miguel na já longa dinastia felina recebeu
com justiça o cognome de Príncipe solidário da família.
Não havia gato abandonado que não levasse
para casa para o quintal dos avós. Foi assim durante anos.

Na minha própria casa nunca tive nem gatos nem cães
mas talvez o Picas acabe por nos convencer.
Poder partilhar o luto as saudades do gato do Chocolate
do seu único amor bruscamente interrompido
numa rua de Santarém atravessada em hora de má-sorte.

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