segunda-feira, 23 de março de 2009

MARGARETE E MILENA DE PRAGA


1. “Oui, tu es l’avenir, la grande aurore
qui point des plaines de l’éternité.”
Rainer Maria Rilke. (Trad. Maurice Betz)

Escondi-me no silêncio
na carruagem vazía
das ranhuras do teu corpo
depois da merecida festa
de aventuras jovens
e bebedeiras visuais.
Da escrita arriscada
nas palavras sensuais
tão do interior do frio
no templo de Deus ausente.

E ninguêm soube de mim
da emboscada furtiva das dálias
do tempo lamparina solitária
até à noite mais sombria
quando finalmente descobriram
e a vieram buscar em matilha.

Lobos nem o nome me perguntaram
não era suspeito ainda não era pecado
acordar todas as manhãs
a sonhar com a insubmissa
a traidora da raça a inimiga do povo.

2. Um dia disfarçei-me no silêncio
com vergonha de ter sido crente
e ter acreditado na verdade dita cientifica
que o comunismo o futuro libertaria.
Hoje estou em paz com a minha consciência.

Há um abismo de finisterra de ruptura
definitiva com os dos lenços encarnados
e de enfrentar os das camisas castanhas
contra quem estive sempre contra.

Já não preciso de máscaras das metáforas
rebuscadas com medo de ser excomungado.
Queimei atrás de mim todas as pontes
que me pudessem levar aos rios das ditaduras
ou às margens dos que em nome do realismo
político e dos interesses estratégicos da nação
estão sempre dispostos a pactuar com a morte.

3. Poderia com o pudor de não ter vinte anos
a vida à minha procura procurar no café Milena
de Praga a linda Maléna da sonolenta Castelcuto
na Itália de Mussolini e do fim do regime
que aos rapazes desejos e sonhos desperta.
Que ainda hoje Monica Bellucci mais bela
do feitíço faz crescer cabelos aos calvos
e enfeiticar maduros sejam brancos ou tintos.

4. Poderia pensar e escrever de Helena
de Esparta não de Tróia do seu príncipe
encantado coração de contrabandista.
Páris em perigo raptor de amada princesa
Helena de pai certo e duas mães incertas
que o amor mesmo perseguido não morre.

5. Mas trata-se de Milena Jesenská
Milena de Praga militante anti-fascista
casada umas vezes divorciada outras tantas
famosa por ter sido tradutora e paixão de Kafka
presa pelas víboras da gestapo em 1939
e que morreu em 17 de Maio de 1944
no campo de concentração de Ravensbrück.

6. Recordar Margarete Baber-Neumann
comunista alemã exilada em Moscovo
sete anos prisioneira primeiro de stálin no Gulag
de Karaganda depois com base em artigos secretos
do pacto molotov-ribbentrop entregue pela nkvd
aos ss de hitler. Passou cinco anos em Ravensbrück.

Sobreviveu à morte e foi até ao último dia da sua vida
em Frankfurt - 3 dias antes da queda do Muro de Berlim -
porta-voz da pequena minoria na denúncia do totalitarismo
que não tinha acabado com a derrota da Alemanha
contra a performance da propaganda perfeita
melhor que as mentiras mil de goebbels e do nazismo.

7. “e banho-me de suor, e tremo toda
e logo fico verde como as ervas,
e pouco falta para que eu não morra
ou enlouqueça” Safo

Pela ilusão dos nossos sonhos expessos
estenderam um lençol de pano forte
na húmida rua das pétalas pequenas
na cave habitada pelo pai e pelo povo.

Humilde era intenso o cheiro dos goivos
das rosas casas de dedos coladas com cuspo
uma criança que na madrugada não dormia.

8. “Eu agradeço ao destino de me ter conduzido
a Ravensbrück porque assim pude encontrar Milena.”

Margareta quase não resistiu à morta da sua amiga
que sentido a vida sem Milena diria após a libertação.

9. Em Karaganda em Ravensbrück:

Prisioneira enfraquecida
trabalha e produz menos
com ração reduzida
recebe menos comida
fica ainda mais fraca
mais doente trabalha menos.
A escrava do estado
recebe menos pão menos caldo
exausta fica mais fraca
até se extinguir.

Se perde o estado
os braços da condenada
se perde a siemens
a mão-de-obra mais barata
do mercado de trabalho
ganha o estado a dobrar
uma inimiga viva a menos.

10. Nos olhos dança em jeito de entrega
ausente uma bailarina de mar quase nua
entre marés vazias dizem à hora certa.

As espigas com sal grosso na fresta
crescem no peito entre carícias e lágrimas
postigo nocturno na praia-mar da sua ferida.

A bailarina cansada abandona-se na tarde
longe as mãos ajeitam-se ternas ao perfume
silêncio guardadado no abrigo do silêncio.

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