domingo, 22 de março de 2009

A CABELEIREIRA O PINTOR E A FRONTEIRA


1. Chegaram nos afluentes da madrugada
com as raízes castanhas da água fria
esmiolando as pedras da ponte
refazendo com nuvens das luas loucas
ungentes comuns e lábios gretados
às duas da manhã a vida inteira.

2. Porque nos leva a escrita a sonhar
árvores folhas flores e frutos silvestres?
Mesmo já depois dos cinquenta
porque se encerra na escrita a ilusão
teimosa que nem uma burra velha?

3. Explicava à jovem Tünde
a minha cabeleireira preferida
que já me esqueci a partir de que idade
assumi este ritual de barbearia
de na primeira semana de março
- já trabalhava e vivia na Hungria -
cortar o cabelo como fazem os burros.

Março é em Portugal o mês dos burros
porque à procura de par ainda zurram mais
ficam com muito calor a preguiça aumenta.
Comem mais do que trabalham e por isso
pensam os donos - para burro já bastas tu -
quando os levam à tosquia para refrescar.

Fui tão sério e formal que a Tünde
e as outras senhoras que arranjavam as unhas
os cabelos e que pintavam os olhos
se punham bonitas para à noite agradarem
aos maridos e aos namorados
fizeram silêncio para ouvir a nossa conversa.

Nesse mesmo dia contava ao István
como é bom ir a uma barbearia na Hungria
e à custa dos burros ter público e que público!

4. Segundo ele no médio-oriente da época
os mais abastados tinham cavalos e camelos.
o burro era como o volkswagen o carro do povo
e eu pensei: aqui seria o lugar do anúncio pago.

A comida aos magros e os gordos que passem
fome! Esta só foi inventado muito mais tarde.
A propósito a poesia terá valor de mercado?

5. Quando soube da exposicão - do Algarve
até Perbál do pintor húngaro Simon István
ainda fui a tempo de juntar ao sol português
o vinho do Porto da minha gratidão.

Desde então as paisagens de Budakeszi
as praias as rochas e as areias de Lagos
as uvas as vinhas e as caves de Páty
os pomares de laranjeiras do Algarve
as papoilas e as searas de girassol de Budajenő
os montados de sobreiros do Alentejo.
A luz natural que acompanha cada quadro
fazem parte das paredes da minha vida.

6. Era pela fronteira de Hegyeshalom
que de comboio eu entrava e saía da Hungria.
Como o futuro da liberdade tinha que se defender
das doenças do passado e dos inimigos do sol na terra
a entrada ainda hoje não é facil de contar.

As boas vindas eram a triplicar
com guardas de fronteira as policias
- elas eram as piores revistavam que se fartavam -
e quando pensavas que já tinham acabado
vinham os militares de kalashnikov ao ombro
armados contra a burguesia internacional
em defesa das conquistas do povo trabalhador.

Comparado com o fado dos húngaros
eu era um sortudo tranquilo não tinha medo
não tinha nada de ilegal na mala.
Apesar da barba crescida e da gadelha comprida
não devia ter cara de subversivo ou contabandista.

7 . Pela boca morre o peixe aprendi. Ainda bem
que não fui peixe e a morte comigo nada querer.

Em duas chegadas à fronteira austro-húngara
muito batia o coração. As porteiras da residência
souberam que havia dois livros sobre o Milagre*
de Fátima publicados em húngaro. Eu era o estrangeiro
preferido das porteiras não podia dizer que não.

Pedi ao meu pai e a um amigo motorista
que fazia a carreira Santarém-Fátima.
O autor era o Padre húngaro-português Kondor
Lajos que muitos anos depois vim a conhecer
que ainda hoje tenho tanto orgulho de ser seu amigo.

8. Os meus compaňeros cubanos também pediram
não não os livros do clericalismo decadente
ainda por cima de Fátima pela libertação da Rússia.
Pediram-me playboys e penthouses em inglês.

Entre cuecas peúgas e postas de bacalhau
embrulhadas em jornal escondi o duplo pecado
quase mortal. Então ainda não sabia
que o perdão é muito mais forte que o pecado.
Tive medo mas consegui e carteiro exemplar
entreguei intactas as encomendas aos meus clientes.

Abençoado nunca mais tive problemas
quando queria subir ao quarto às horas
que fosse sózinho ou bem acompanhado.

9. Estava a almoçar no Retiro dos Caçadores
em Fátima com o Padre Kondor e não resisti.
Contei-lhe a história da minha mala
da literatura erótica-clerical inimiga do socialismo!

As suas gargalhadas soaram como um trovão
e mandou vir mais uma garrafa de vinho.
Sempre que posso vou visitá-lo a Fátima.

*“Só existe duas formas de viver a vida.
A primeira é pensando que o milagre não existe;
a outra é pensando que tudo é milagre.” Albert Einstein

Sem comentários: