domingo, 22 de março de 2009

AMIAIS DE BAIXO E O ARCANJO S. MIGUEL


“Boca a saber a sol, a fruta, a mel.” Florbela Espanca

1. Para terminar devo escrever que chegou a hora
de limpar as gavetas do armário da minha vida arrumar
os papėis fechar umas e abrir os olhos para outros sonhos.

2. Nasci e vivi numa aldeia até aos sete anos
mas de verdade nunca me senti um aldeão
por muito romântico que seja dizer o contrário.
Nos últimos dez anos contam-se pelos dedos
de uma mão só as vezes que voltei à terra
entretanto elevada a vila partilhar a alegria.

3. Em Amiais nada se compara às Festas
em Honra ao Mártir S. Sebastião a espera
a chegada da banda Música em amialês
as rodas-de-fogo que só muito mais tarde soube
querer dizer fogo-preso os foguetes da alvorada
a Procissão dos Archotes de sábado à noite
quando se vai buscar à capela do cemitério
e acompanhar até à igreja o andor com o S. Miguel

A despedida tão comovente da N. Senhora da Graça
a Santa mais linda com o seus longos cabelos pretos
os pingos de cera como lágrimas os olhos tão tristes
já com saudade das duas noites tão breves
que passaram juntos na igreja abençoada pelo Bispo.

Foi o meu encontro menino de pensar adulto
a primeira descoberta segredos de amores proibidos
talvez clandestinos e com santos envolvidos.

4. Lembro-me como se tivesse sido ontem.
O Hélder e eu os dois netos mais novos
contra o frio do húmido inverno português
um de cada lado abrigados no capote do nosso avô
de pé quase por debaixo da roda-de-fogo.
Não esqueci o orgulho que sentia de não haver ninguêm
que visse o fogo de mais perto que nós os três.

5. Amiais era uma povoação de serradores
e madeireiros de serrações e várias fábricas
de cerâmica de barro hoje seria um cluster
das telhas tijolos e tijoleiras com patrões
e trabalhadores com trabalho na terra.

Foram as primeiras vítimas do progresso
da desmaterialização da economia
e do primado do comércio e dos serviços
da falta de emprego da não fixação
e das novas mobilidades e acessibilidades
mas quem sou eu para falar eu que nas Útimas
Águas escrevi: “Partir é prolongar o coração.”

Eram as adegas do vinho e da água-pé
do açouge dos talhos da típica carne de capado
das hortas de terra dura e seca com tanta pedra
dos muitos emigrantes quase todos a salto em França
alguns na Alemanha Suécia. Um amialeiro não o seria
se não viesse a Portugal de propósito para vir à Festa.

6. A Cova Funda era a taberna-café do ti’Zé
e da tia Olinda irmã do meu pai dos meus primos
o cartão de visita eram os petiscos deliciosos
elevado ao seu máximo nos sábados à tarde
com fama que chegava a todas as aldeias vizinhas.

Estou a pensar nos molhinhos feitos de tripas
e os pézinhos com feijão branco e um molho divinal
para acompanhar com um copinho medido do barril.

Na extensa família como tio da Branca ti’Canica
boa gente eles eram dos mais próximos
apesar da distância e da idade ainda hoje é assim.

7. Para recordar o passado e preparar o futuro
uma pequena homenagem à minha terra.

Como quem junta ao saibo
terra tijolos e barro
para a construção da vida
com as pedras da felicidade
cozida no forno a lenha
e amassada no pão-caseiro

com a arca ao canto da loja
o ritual pagão do amor legítimo
madeira de pinho da serra
do futebol sem invasão de campo
dos que quem os come em chibo
não os têm em bode
e é fino como à seda o retróz!

Pois já se sabe que quem chutar
a bola mais alto ganha um bacalhau
trazido pelo tenreiro da noruega
iguarias comidas como petiscos
nas linhas do século passado
do pintassilgo solar da manhã
a precisar de sopas de cavalo cansado.

Porque perdi o fio à meada
esqueci o que queria escrever
a seguir ir em grupo aos ninhos
e talvez aos gambesinos
à noite recolher caga-lumes num frasco
e iluminar assim a escuridão
caçar um grilo com uma perna a menos
guardá-lo numa gaiola de cana verde.
Coxo? Protesta! Mas é para cantar ou para dançar?

A casa do povo as faces da pedra
do poliedro raro do sonho
gente combativa e de coragem
que resistia unida às ameaças da guarda
da GNR de Alcanena e às vezes de Santarém.

Aves e pássaros à saída do mar e da serra
à entrada do largo e do rio quase seco
sem sardas carapaus ou gatos gulosos
que os cães vadios ferozes eram muitos.

Permitam-me este regresso sem verso
com muitas palavras e algumas metáforas
a viagem das minhas mãos dos meus pés chatos
pelos caminhos do coração voltar à minha terra
com o pensamento racional da razão
ao meu primeiro povo à minha única aldeia.

Budapeste, Outubro de 2007 – Março de 2009

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