quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Palavras do eléctrico ou o eléctrico das Palavras / 5

 

2024 – 2025

Para o livro “De mim ficam as Palavras”


Conto-te a minha vida

 

“Paga-me um café e conto-te a minha vida”

(Em “Murmúrios do mar”)

 De José Tolentino Mendonça, Cardeal e Poeta

 

Nasci nos meados do século passado 

em Amiais de Baixo, lugar de gente orgulhosa 

da sua terra que cresceu nas margens da ribeira. 

Uma aldeia entre cabeços no Ribatejo profundo.

 

Ali, durante 3 semanas frequentei a escola primária

e mal sabia quem era quando mudamos para a cidade. 

Foi em Santarém que fiz os 7 anos e os 21 em Budapeste

e aos 70 anos se ainda cá estiver por aqui vou continuar.

 

Membro de uma feliz empresa familiar luso-húngara 

sou pai de 3 filhas e 1 filho e avô de 2 netos 

e espero que com o tempo venha mais gente nova. 

Com sorte nos últimos 37 anos em nome de Portugal

fiz da diplomacia económica a minha profissão.

 

Jovem, desde 1974 que nunca esqueci ou desertei

as palavras da poesia e não será com esta idade 

e os cabelos brancos que vou desistir de escrever

histórias vividas ou inventadas para me entreter.

 

Acabou-se a inspiração? Parece que não 

apenas mudou de terra, mudou de posição 

sentou-se no banco à beira da estrada 

olhou ao longe e regressou ao coração.

De bicicleta pelos atalhos da imaginação.


Sol da vida

 

Ali sol da vida era o nome 

de um antigo barco de pesca 

relíquia recuperada ao passado 

a descansar na praia da Nazaré 

nas areias que me são tão familiares.

 

Era uma linda recordação do tempo 

em que me escrevia todos os dias 

como quem escreve no seu diário 

dos seus sonhos e dos seus desejos

mas o passado não faz parte do futuro.

 

O presente agora é tão breve e tão curto 

não lembra a flor que se abria de um olhar 

o nevoeiro desaparecer e a vida recomeçar 

para ver o dia nascer e o sol subir no céu.

Para o mar acalmar e o barco voltar ao mar. 


As saudades do vento

 

Dizem que as saudades do vento

se perderam nos atalhos escuros 

nas algibeiras rotas onde guardava 

a tristeza que se espalhava pelo chão.

 

Que nada ficou para lembrança  

desses dias e meses tão intensos 

da antiga fascinação e juras eternas

da alegria sem amarras nem fronteiras.

 

Eram memórias de outros tempos 

com as geografias ternas de outros ventos 

com pôr de sol e fins de tarde prolongados

- Um casario que trouxesse de volta a paixão.

 

Noites que não se poderão repetir ou igualar  

a não ser que o vento regresse e volte a soprar. 


O primeiro tempo

 

O tempo passou muito depressa 

Passeou-se em passo de corrida.

Pelo contrário o tempo não ata nem desata

Como a lesma, não passa, há tempo de sobra.

 

O tempo tem tempo que dá para dar e vender

Porque o tempo passa o tempo a pisar ovos 

Aqui para nós é tempo de o tempo esquecer.

 

Aproveita enquanto podes e tens tempo 

Não tenhas pena do tempo que não viveste

Do tempo vivido, mas em parte desperdiçado. 

 

Pensa se é pouco o tempo que ainda te resta 

Se é suficiente e antes de ires desta para pior 

Desfruta o tempo e escolhe a melhor companhia. 

 

Tens razão nunca o tempo foi tão raro e tão caro

É urgente libertar e democratizar o tempo. 

Envolve-te com o tempo e verás como é bom 

Casa-te com ele e terão uns bonitos tempinhos.


O tempo segundo


Com o tempo o tempo arde até queimar os sonhos 

avança e faz dos sonhos a vida, traz os sonhos de volta.

Se para ti é importante vai ao médico, passa pela farmácia 

com cremes e cirurgias disfarça as partes gastas do tempo 

mas nada como dar um bom pontapé no traseiro do tempo.

 

Vá lá, ganha coragem e troca as voltas ao tempo 

espera por ele à porta do cemitério com uma vela acesa

chama-o pelo nome e oferece-lhe um copo de vinho 

bebam juntos à minha saúde na taberna mais próxima.

 

Atenção, recusa negócios suspeitos com o tempo 

seja para antecipar ou para atrasar a partida. 

Cuida do tempo de modo que o grande universo 

não te caia em cima, não te parta a cabeça. 

 

Aparece em casa e almoça connosco 

para o finalizar temos fruta bíblica 

umas romãs com muito boa pinta. 

Vem de autocarro para poderes beber 

a água da torneira que te apetecer.

 

Terceira temporada

 

Introdução tristonha e algo resignada 

de quem anda no mundo de olhos abertos

alguém de carne e osso que como muitos outros 

já olha mais para trás do que para diante.

 

Entre tanta gente na paragem do autocarro 

um velhote de bengala caminhava inseguro.

Uma velhinha com o carrinho das compras

sem ajuda com dificuldade subia o elétrico.

 

Os tempos mudaram e a vida também 

eu estou aqui para assumir essa realidade 

e para a trazer para as minhas palavras 

para o meu mundo, o mundo de muitos.

Também para mim a vida que se aproxima.

 

O mundo em que vive grande parte dos nossos 

na solidão com os filhos espalhados e sobrecarregados

o tempo é o artigo mais dispendioso para os idosos.

- Metidos à pressa num lar da terceira idade

da terceira temporada: nascer, viver e morrer.


Duas lágrimas de orvalho*


Duas lágrimas de orvalho / Caíram nas minhas mãos
Quando te afaguei o rosto / Pobre de mim pouco valho
Para te acudir na desgraça / Para te valer no desgosto.

 

Que podem ou que devem fazer os amantes

Quando chega ao fim a sua viagem a dois?

Rasgar uma a uma as palavras que inventaram 

Fazer arder todos os sonhos que partilharam

Amaldiçoar o bom tempo que passaram juntos?

 

A história começa no degrau à saída da porta

A vida não pára na rua onde estava a sua casa 

No canto das aves, nas árvores da sua memória.

Não se pode só assim oferecer a outro alguém. 

O que viveram juntos é deles e de mais ninguém. 

 

Para que a vida não tenha pressa em se esquecer de nós 

Deixo-te as chaves do meu apartamento e o meu cão 

O meu lugar cativo no teatro e as minhas botas de competição 

Guarda como se fossem os teus, os restos do meu coração.

 

*Fado de João Linhares Barbosa e Pedro Rodrigues 

famoso pela voz do imenso fadista Carlos do Carmo.


Uma água das pedras


Põe o microfone na boca 

e o dedo no nariz 

a palhinha no travesseiro 

e os olhos na perdiz.

 

Se não te sentes bem da azia 

bebe uma água das pedras 

mais um chá de erva cidreira 

e antes de adormeceres 

faz uma boa caminhada 

por entre a fila das panelas.

 

Não penses que estou a brincar 

mas os mortos que eu conheço 

e que são uns grandes armários

aos sábados passeiam barulhentos

pelas avenidas em grandes grupos.

 

Gente que gosta de dar nas vistas

mais resmungões que os meus amigos 

- Malta de pé ligeiro e coração ao alto. 

Percebe-se porque preferimos os vivos.

 

Olha, vai ver se chove, meu capitão. 

Dorme dorme velho boi manso.

Há tanta calma no supermercado. 

Só lá vamos com nova insurreição. 


Nenhum tirano se escapa

 

Padre e sacristão 

Papaia ou enteada

Popular, mas não populista 

Pintassilgo feito grande pavão. 

 

Mais a puta que os pariu 

As mães são umas santas 

Não têm culpa nenhuma 

De terem parido merdas destas.

 

A morte anda por aí, pela rua 

À procura, à caça dos caídos 

Sabe quais são os mais indefesos 

Discriminados desde a nascença.  

 

Quem paga é que escolhe a música 

Dizia o barrigudo com ar de gozão 

Gordo o regente da orquestra do país 

Sorria cínico com o seu ar de aldrabão.

 

Padre e sacristão, merdas ou patos bravos

Vivos a cheirar a morte, foda-se que são tantos.

Nenhum tirano se escapa ao chamamento divino 

Ir para o inferno é apenas uma questão de tempo.


Rasurar a alma e partir para longe

 

Em novembro a meio da manhã 

não se via nem uma nesga do céu 

um vaga-lume, as luzes de um avião.

Será o sinal do próximo infortúnio 

a mensagem das trevas e da escuridão? 

 

Hitler foi a eleições, ganhou e de seguida

proibiu todos os outros partidos políticos.

Se Stálin tivesse ido a eleições multipartidárias 

ganhava de caras com maioria absoluta.

 

Querem-nos convencer que o gajo se eleito 

pelos portugueses será um missionário legítimo. 

É tempo de dizer chega a esse filho da truta!

Ou está na hora de rasurar a alma, fechar a boca

de esconder os olhos e partir para bem longe?


Status quo

O estado em que as coisas estão 

 

Não haja dúvidas que com o estado em que as coisas estão

O melhor é usar a cabeça como se estivesse no congelador

talvez assim tenhamos hipóteses de não sermos submetidos 

nem sermos esmagados pelo cilindro impiedoso e facínora

dos fantasmas antigos com as roupas de gala da mentira.

 

Quando as rotundas livres dos nossos dias 

estão a ser bloqueadas pelo passado criminoso

com discursos e narrativas cada vez mais perigosas

é normal andarmos com as dúvidas e as angústias 

sobre o futuro dos nossos filhos e dos nossos netos.

 

Se ajuda, arranja um canivete suíço e fura-lhe os pneus

espalha tachas e pregos pelas estradas de acesso 

e pelas ruas da cidade da nossa última esperança 

em perigo de ser ocupada pelos inimigos da liberdade.

 

Os abutres e as hienas esperam pacientes pelo autoflagelo 

pelo definhar da elitista democracia em passo apressado 

para o abismo, por vulnerável e corrupta, ingénua e indefesa.

- O melhor regime político criado pela inteligência humana.


O nosso tempo é agora

 

Pergunto, quem foi o espertalhão que disse 

que as manhãs mais frias não ajudam a viver

e o azarado outubro não dá para aprender? 

Quem foi o pastor profeta-mor que afirmou 

que as derrotas dolorosas não ajudam a crescer?

 

Fica a saber vigarista bem-falante da aldrabice 

O nosso tempo não foi ontem nem é amanhã. 

O nosso tempo é hoje para ser vivido aqui e agora. 

 

Não vamos permitir a vossa marcha sobre Lisboa.

O vosso passeio anunciado até às varandas do poder

Olha que ainda há muito para caminhar até lá chegar. 

 

Ó suas folhas da faia estão muito enganadas!

Múmias do mais rasca, perfumadas e mascaradas 

de jovens, eles de gravata e elas de blusas apertadas 

esqueceram-se que o primeiro milho é para os pardais? 


Quem sou eu para contradizer

 

Sexta de manhã e o sol brilha simpático
mas em dia bastante frio para o outono.
Eu estou sentado no elétrico de costas
à direção para a frente é que é o caminho.

Permito-me atalhar, fazer um desvio
ao itinerário principal do meu pensamento.
Não há cores com esta variedade e intensidade
um tal colorido como nesta estação do ano.

É porque o Bom Deus tinha e tem bom gosto
e com a sua bondade e empatia quer partilhar
e tornar acessível a todos a beleza natural
a deslumbrante natureza que Ele próprio criou.

Neste meu divagar lembrei-me de Dostoievski
figura maior da literatura russa e mundial.
“Se Deus não existisse, tudo seria permitido".
Francamente, quem sou eu para contradizer.

Não é preciso estar muito bem informado
para dizer, tanto mal que foi e continua a ser feito
em nome de Deus, tanta atrocidade e tanto crime
que nem o pior diabo tinha, tem talento para tanto.


Tapete dourado do outono

 

O riacho do bosque não corria 

estava transformado, parecia ser

um manto, um tapete dourado e roxo

amarelo ou avermelhado do outono 

que volta todos anos, cada ano 

para nos mimar e nos deslumbrar. 

 

O pensamento levou-me para longe

talvez ela já não se lembre onde e como 

por acaso sem saber nem se conhecerem

pela primeira vez passearam lado a lado. 

 

Foi na concorrida zona pedestre 

que começa junto ao velho paredão 

e segue pela marginal que antecede

as areias húmidas do meu coração.


As unhas pintadas da motorista


Entre guerras, invasões e bombardeamentos

num mês de junho que merecia muito mais

o primeiro período de férias tinha acabado.

 

Era segundo as previsões, sem uma brisa

o começo da semana mais quente do ano

com as máximas muito acima dos trinta.

 

Apesar disso deixei o carro e a gravata em casa 

fui de transportes públicos até ao escritório 

e poder ler o semanário sobrevivente da oposição.

 

Esperei na paragem e entrei pela porta da frente 

era uma senhora e como costume disse bom dia 

sentei-me em frente lugar que dá uma boa visão.

 

Chamou-me a atenção a sua cuidadosa condução 

e mais ainda as suas mãos esguias e elegantes

- As unhas pintadas da motorista do autocarro.

 

Se fosse noutros tempos não lhe teria apenas dito obrigado 

pela agradável viagem e profissionalismo que demonstrou.

- Teria perguntado se aceitava um café depois do trabalho.