2024 – 2025
Para o livro “De mim ficam as Palavras”
2024 – 2025
Para o livro “De mim ficam as Palavras”
“Paga-me um café e conto-te a minha vida”
(Em “Murmúrios do mar”)
De José Tolentino Mendonça, Cardeal e Poeta
Nasci nos meados do século passado
em Amiais de Baixo, lugar de gente orgulhosa
da sua terra que cresceu nas margens da ribeira.
Uma aldeia entre cabeços no Ribatejo profundo.
Ali, durante 3 semanas frequentei a escola primária
e mal sabia quem era quando mudamos para a cidade.
Foi em Santarém que fiz os 7 anos e os 21 em Budapeste
e aos 70 anos se ainda cá estiver por aqui vou continuar.
Membro de uma feliz empresa familiar luso-húngara
sou pai de 3 filhas e 1 filho e avô de 2 netos
e espero que com o tempo venha mais gente nova.
Com sorte nos últimos 37 anos em nome de Portugal
fiz da diplomacia económica a minha profissão.
Jovem, desde 1974 que nunca esqueci ou desertei
as palavras da poesia e não será com esta idade
e os cabelos brancos que vou desistir de escrever
histórias vividas ou inventadas para me entreter.
Acabou-se a inspiração? Parece que não
apenas mudou de terra, mudou de posição
sentou-se no banco à beira da estrada
olhou ao longe e regressou ao coração.
De bicicleta pelos atalhos da imaginação.
Ali sol da vida era o nome
de um antigo barco de pesca
relíquia recuperada ao passado
a descansar na praia da Nazaré
nas areias que me são tão familiares.
Era uma linda recordação do tempo
em que me escrevia todos os dias
como quem escreve no seu diário
dos seus sonhos e dos seus desejos
mas o passado não faz parte do futuro.
O presente agora é tão breve e tão curto
não lembra a flor que se abria de um olhar
o nevoeiro desaparecer e a vida recomeçar
para ver o dia nascer e o sol subir no céu.
Para o mar acalmar e o barco voltar ao mar.
Dizem que as saudades do vento
se perderam nos atalhos escuros
nas algibeiras rotas onde guardava
a tristeza que se espalhava pelo chão.
Que nada ficou para lembrança
desses dias e meses tão intensos
da antiga fascinação e juras eternas
da alegria sem amarras nem fronteiras.
Eram memórias de outros tempos
com as geografias ternas de outros ventos
com pôr de sol e fins de tarde prolongados
- Um casario que trouxesse de volta a paixão.
Noites que não se poderão repetir ou igualar
a não ser que o vento regresse e volte a soprar.
O tempo passou muito depressa
Passeou-se em passo de corrida.
Pelo contrário o tempo não ata nem desata
Como a lesma, não passa, há tempo de sobra.
O tempo tem tempo que dá para dar e vender
Porque o tempo passa o tempo a pisar ovos
Aqui para nós é tempo de o tempo esquecer.
Aproveita enquanto podes e tens tempo
Não tenhas pena do tempo que não viveste
Do tempo vivido, mas em parte desperdiçado.
Pensa se é pouco o tempo que ainda te resta
Se é suficiente e antes de ires desta para pior
Desfruta o tempo e escolhe a melhor companhia.
Tens razão nunca o tempo foi tão raro e tão caro
É urgente libertar e democratizar o tempo.
Envolve-te com o tempo e verás como é bom
Casa-te com ele e terão uns bonitos tempinhos.
Com o tempo o tempo arde até queimar os sonhos
avança e faz dos sonhos a vida, traz os sonhos de volta.
Se para ti é importante vai ao médico, passa pela
farmácia
com cremes e cirurgias disfarça as partes
gastas do tempo
mas nada como dar um bom pontapé no traseiro do tempo.
Vá lá, ganha coragem e troca as voltas ao
tempo
espera por ele à porta do cemitério com uma vela acesa
chama-o pelo nome e oferece-lhe um copo de vinho
bebam juntos à minha saúde na taberna mais próxima.
Atenção, recusa negócios suspeitos com o tempo
seja para antecipar ou para atrasar a partida.
Cuida do tempo de modo que o grande universo
não te caia em cima, não te parta a cabeça.
Aparece em casa e almoça connosco
para o finalizar temos fruta bíblica
umas romãs com muito boa pinta.
Vem de autocarro para poderes beber
a água da torneira que te apetecer.
Introdução tristonha e algo resignada
de quem anda no mundo de olhos abertos
alguém de carne e osso que como muitos outros
já olha mais para trás do que para diante.
Entre tanta gente na paragem do autocarro
um velhote de bengala caminhava inseguro.
Uma velhinha com o carrinho das compras
sem ajuda com dificuldade subia o elétrico.
Os tempos mudaram e a vida também
eu estou aqui para assumir essa realidade
e para a trazer para as minhas palavras
para o meu mundo, o mundo de muitos.
Também para mim a vida que se aproxima.
O mundo em que vive grande parte dos nossos
na solidão com os filhos espalhados e sobrecarregados
o tempo é o artigo mais dispendioso para os idosos.
- Metidos à pressa num lar da terceira idade
da terceira temporada: nascer, viver e morrer.
Duas lágrimas de orvalho / Caíram nas minhas mãos
Quando te afaguei o rosto / Pobre de mim pouco valho
Para te acudir na desgraça / Para te valer no desgosto.
Que podem ou que devem fazer os amantes
Quando chega ao fim a sua viagem a dois?
Rasgar uma a uma as palavras que inventaram
Fazer arder todos os sonhos que partilharam
Amaldiçoar o bom tempo que passaram juntos?
A história começa no degrau à saída da porta
A vida não pára na rua onde estava a sua casa
No canto das aves, nas árvores da sua memória.
Não se pode só assim oferecer a outro alguém.
O que viveram juntos é deles e de mais ninguém.
Para que a vida não tenha pressa em se esquecer de nós
Deixo-te as chaves do meu apartamento e o meu cão
O meu lugar cativo no teatro e as minhas botas de
competição
Guarda como se fossem os teus, os restos do meu coração.
*Fado de João Linhares Barbosa e Pedro Rodrigues
famoso pela voz do imenso fadista Carlos do Carmo.
Põe o microfone na boca
e o dedo no nariz
a palhinha no travesseiro
e os olhos na perdiz.
Se não te sentes bem da azia
bebe uma água das pedras
mais um chá de erva cidreira
e antes de adormeceres
faz uma boa caminhada
por entre a fila das panelas.
Não penses que estou a brincar
mas os mortos que eu conheço
e que são uns grandes armários
aos sábados passeiam barulhentos
pelas avenidas em grandes grupos.
Gente que gosta de dar nas vistas
mais resmungões que os meus amigos
- Malta de pé ligeiro e coração ao alto.
Percebe-se porque preferimos os vivos.
Olha, vai ver se chove, meu capitão.
Dorme dorme velho boi manso.
Há tanta calma no supermercado.
Só lá vamos com nova insurreição.
Padre e sacristão
Papaia ou enteada
Popular, mas não populista
Pintassilgo feito grande pavão.
Mais a puta que os pariu
As mães são umas santas
Não têm culpa nenhuma
De terem parido merdas destas.
A morte anda por aí, pela rua
À procura, à caça dos caídos
Sabe quais são os mais indefesos
Discriminados desde a nascença.
Quem paga é que escolhe a música
Dizia o barrigudo com ar de gozão
Gordo o regente da orquestra do país
Sorria cínico com o seu ar de aldrabão.
Padre e sacristão, merdas ou patos bravos
Vivos a cheirar a morte, foda-se que são tantos.
Nenhum tirano se escapa ao chamamento divino
Ir para o inferno é apenas uma questão de tempo.
Em novembro a meio da manhã
não se via nem uma nesga do céu
um vaga-lume, as luzes de um avião.
Será o sinal do próximo infortúnio
a mensagem das trevas e da escuridão?
Hitler foi a eleições, ganhou e de seguida
proibiu todos os outros partidos políticos.
Se Stálin tivesse ido a eleições multipartidárias
ganhava de caras com maioria absoluta.
Querem-nos convencer que o gajo se eleito
pelos portugueses será um missionário legítimo.
É tempo de dizer chega a esse filho da truta!
Ou está na hora de rasurar a alma, fechar a boca
de esconder os olhos e partir para bem longe?
O estado em que as coisas estão
Não haja dúvidas que com o estado em que as coisas estão
O melhor é usar a cabeça como se estivesse no congelador
talvez assim tenhamos hipóteses de não sermos
submetidos
nem sermos esmagados pelo cilindro impiedoso e facínora
dos fantasmas antigos com as roupas de gala da mentira.
Quando as rotundas livres dos nossos dias
estão a ser bloqueadas pelo passado criminoso
com discursos e narrativas cada vez mais perigosas
é normal andarmos com as dúvidas e as angústias
sobre o futuro dos nossos filhos e dos nossos netos.
Se ajuda, arranja um canivete suíço e fura-lhe os pneus
espalha tachas e pregos pelas estradas de acesso
e pelas ruas da cidade da nossa última esperança
em perigo de ser ocupada pelos inimigos da liberdade.
Os abutres e as hienas esperam pacientes pelo
autoflagelo
pelo definhar da elitista democracia em passo
apressado
para o abismo, por vulnerável e
corrupta, ingénua e indefesa.
- O melhor regime político criado pela inteligência humana.
Pergunto, quem foi o espertalhão que disse
que as manhãs mais frias não ajudam a viver
e o azarado outubro não dá para aprender?
Quem foi o pastor profeta-mor que afirmou
que as derrotas dolorosas não ajudam a crescer?
Fica a saber vigarista bem-falante da aldrabice
O nosso tempo não foi ontem nem é amanhã.
O nosso tempo é hoje para ser vivido aqui e agora.
Não vamos permitir a vossa marcha sobre Lisboa.
O vosso passeio anunciado até às varandas do poder
Olha que ainda há muito para caminhar até lá chegar.
Ó suas folhas da faia estão muito enganadas!
Múmias do mais rasca, perfumadas e mascaradas
de jovens, eles de gravata e elas de blusas apertadas
esqueceram-se que o primeiro milho é para os pardais?
Sexta de manhã e o sol brilha simpático
mas em dia bastante frio para o outono.
Eu estou sentado no elétrico de costas
à direção para a frente é que é o caminho.
Permito-me atalhar, fazer um desvio
ao itinerário principal do meu pensamento.
Não há cores com esta variedade e intensidade
um tal colorido como nesta estação do ano.
É porque o Bom Deus tinha e tem bom gosto
e com a sua bondade e empatia quer partilhar
e tornar acessível a todos a beleza natural
a deslumbrante natureza que Ele próprio criou.
Neste meu divagar lembrei-me de Dostoievski
figura maior da literatura russa e mundial.
“Se Deus não existisse, tudo seria permitido".
Francamente, quem sou eu para contradizer.
Não é preciso estar muito bem informado
para dizer, tanto mal que foi e continua a ser feito
em nome de Deus, tanta atrocidade e tanto crime
que nem o pior diabo tinha, tem talento para tanto.
O riacho do bosque não corria
estava transformado, parecia ser
um manto, um tapete dourado e roxo
amarelo ou avermelhado do outono
que volta todos anos, cada ano
para nos mimar e nos deslumbrar.
O pensamento levou-me para longe
talvez ela já não se lembre onde e como
por acaso sem saber nem se conhecerem
pela primeira vez passearam lado a lado.
Foi na concorrida zona pedestre
que começa junto ao velho paredão
e segue pela marginal que antecede
as areias húmidas do meu coração.
Entre guerras, invasões e bombardeamentos
num mês de junho que merecia muito mais
o primeiro período de férias tinha acabado.
Era segundo as previsões, sem uma brisa
o começo da semana mais quente do ano
com as máximas muito acima dos trinta.
Apesar disso deixei o carro e a gravata em casa
fui de transportes públicos até ao escritório
e poder ler o semanário sobrevivente da oposição.
Esperei na paragem e entrei pela porta da frente
era uma senhora e como costume disse bom dia
sentei-me em frente lugar que dá uma boa visão.
Chamou-me a atenção a sua cuidadosa condução
e mais ainda as suas mãos esguias e elegantes
- As unhas pintadas da motorista do autocarro.
Se fosse noutros tempos não lhe teria apenas dito
obrigado
pela agradável viagem e profissionalismo que demonstrou.
- Teria perguntado se aceitava um café depois do trabalho.