sábado, 27 de outubro de 2018

PEREGRINAÇÕES

Ernesto Rodrigues
Universidade de Lisboa


A década de poesia aqui reunida oferece inesperados contributos a nossa lirica: interventiva, no sentido politico; intimista e familiar, com laivos autobiográficos; cúmplice de uma topografada Lisboa fadista, mas também de cantautores lusos e estrangeiros, e de uma extensa galeria de poetas epigrafados (se não e algum mais salientado, caso de Ary dos Santos), esta soma não deixa de noticiar, ainda, uma impressiva memória grega e suas mitologias, a par de variado cosmopolitismo europeu, que se vaza para a Tailandia. Fragmentos de vida em mares menos procelosos do que em Quatrocentos e Quinhentos, eis novas peregrinaçöes de bom lusíada.
Os processos diversificam-se, nisso residindo um dos encantos de volume longe dos formatos minguados da praça lusitana. Com excepção de um texto mais longo, a extensão das composiçöes regulariza o olhar no dominio da quadra, e redução do verso nos mais cantantes, ate a prosificação da vintena final, onde mais se alevanta o sujeito empírico, ribatejano e autor de páginas antigas, em exame de consciencia politica – de Fidel e Che Guevara ao Vietname napalmizado, de Estaline ao Hitler concentracionário, que me leva a evocar um inocente Rádnoti Miklos no campo de Ravensbruck. 
Se este apartado ideológico falta na poesia portuguesa de hoje, não espanta menos o biénio inicial (2015-2017), no insólito dos títulos faunescos ou botanicos ate as conexöes semanticas exigindo segunda leitura, e surrealizando o que, muitas vezes, mais semelha natureza-morta, na sintaxe sincopada, eliptica, carente de verbos, é discreta erotica a pouco e pouco explicitando-se, ao lado de uma linguagem relativa a outros comércios e economias, entre frases-feitas, provérbios e crescente rudeza vocabular não
isenta de boa disposição. O velho Mediterraneo e ainda grego, e não o assassino, de hoje tão triste, autor e eu convergindo em que quanta mais riqueza temos, mais pobres acrescenta e sofre a humanidade. Isso é só parte do verso de “Vegetariano”, Entre muito da vida que aprendi na Hungria, desde 1979; aprendeu mais, dele fazendo poeta de uma rítmia invejável, mas desconhecido nas margens do Tejo.
O expatriamento admite liberdades com a lingua de que, em Portugal, raros se servem: o leitor intensivo de clássicos helénicos mistura lingerie e mitologia; socorre-se de uma infinidade de vocábulos alheios ao idioma, em feliz coabitação; mas também altera o género das palavras, como num notável soneto, “Hospital Szent Janos”: O meu omelete na linguagem de casa / quer dizer o meu sem-abrigo privado. Notem-se os segundos versos dos tercetos, entre o bem achado das compras e a suspensão da conversa: Umas moedas para ele a seguir ir comprar / um dedo de pão e dois braços de aguardente / de se queimar para melhor suportar a noite. // Com brilho de gato no escuro da escuridão / o meu omelete tem uns olhos tão intensos que / mas cantigas assim só aumentam a confusão. 
Essa aventura identitaria reforça-se no suave enfrentamento com o Outro, desenvolvendo-se uma miriade de histórias, que são mais dos que as de uma subjectividade, tornando-se centro-europeias, italianas, parisienses, lusiadas – peregrinantes, em suma. 
Essa procedéncia, ou espirito dos lugares, evita soluçöes suburbanas e a charra prosodia de tanta poesia hoje celebrada entre nós. Ainda devedor de uma pontuação minimalista, ou inscrevendo espaço no meio do verso, por educação setentista, certo e que não encontramos agora facilidades e displicencia, antes propostas engenhosas, como nos titulos da segunda seccao (2012-2014), cada um figurando, ja, os das trindades poemáticas. Dos parcos sonetos, salientaria, ainda, “Palavras de outono”, não so por ser um dos muitos epigrafados em francés – e seria preciso estudar a pertinencia da epigrafe –, mas porque, remetendo para o titulo da obra, e para uma existencia ás palavras dada, sintetiza a diligencia metaforicamente descritiva e melancolica de um Eros preterito. Outro soneto, que me dedica, é “Domingo” (a dúzia de frequencias deste dia é ultrapassada pelo sábado, donde, tempo de eleição e descanso votado a arte): no delicioso jogo de palavras, ha uma historia que diverte, consumando o nosso autor enquanto ironista. 
Urge, assim, olhar para a cronopoesia de Pedro Assis Coimbra – que conheci como Joaquim Pimpão, no aeroporto de Frankfurt, em 9 de Setembro de 1981, e por um quinquénio sobre o Danubio assim tratei –, com matéria e propostas que honrosamente lhe franqueiam a entrada na cidadela da lirica portuguesa.




Lisboa, 9 de Janeiro de 2018

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