Ernesto Rodrigues
Universidade de Lisboa
A década de poesia aqui reunida oferece
inesperados contributos a nossa lirica: interventiva, no sentido politico;
intimista e familiar, com laivos autobiográficos; cúmplice de uma topografada
Lisboa fadista, mas também de cantautores lusos e estrangeiros, e de uma
extensa galeria de poetas epigrafados (se não e algum mais salientado, caso de
Ary dos Santos), esta soma não deixa de noticiar, ainda, uma impressiva memória
grega e suas mitologias, a par de variado cosmopolitismo europeu, que se vaza
para a Tailandia. Fragmentos de vida em mares menos procelosos do que em
Quatrocentos e Quinhentos, eis novas peregrinaçöes de bom lusíada.
Os processos diversificam-se, nisso
residindo um dos encantos de volume longe dos formatos minguados da praça
lusitana. Com excepção de um texto mais longo, a extensão das composiçöes
regulariza o olhar no dominio da quadra, e redução do verso nos mais cantantes,
ate a prosificação da vintena final, onde mais se alevanta o sujeito empírico,
ribatejano e autor de páginas antigas, em exame de consciencia politica – de
Fidel e Che Guevara ao Vietname napalmizado, de Estaline ao Hitler
concentracionário, que me leva a evocar um inocente Rádnoti Miklos no campo de
Ravensbruck.
Se este apartado ideológico falta na poesia portuguesa de
hoje, não espanta menos o biénio inicial (2015-2017), no insólito dos títulos
faunescos ou botanicos ate as conexöes semanticas exigindo segunda leitura, e
surrealizando o que, muitas vezes, mais semelha natureza-morta, na sintaxe
sincopada, eliptica, carente de verbos, é discreta erotica a pouco e pouco
explicitando-se, ao lado de uma linguagem relativa a outros comércios e economias,
entre frases-feitas, provérbios e crescente rudeza vocabular não
isenta de boa disposição. O velho Mediterraneo
e ainda grego, e não o assassino, de “hoje tão triste”, autor e eu convergindo em que
quanta mais riqueza temos, mais pobres acrescenta e sofre a humanidade. Isso é
só parte do verso de “Vegetariano”, “Entre muito da vida que aprendi na
Hungria”, desde 1979; aprendeu mais, dele fazendo poeta de uma
rítmia invejável, mas desconhecido nas margens do Tejo.
O expatriamento admite liberdades com a
lingua de que, em Portugal, raros se servem: o leitor intensivo de clássicos
helénicos mistura lingerie e mitologia; socorre-se de uma infinidade de vocábulos
alheios ao idioma, em feliz coabitação; mas também altera o género
das palavras, como num notável soneto, “Hospital Szent Janos”: “O meu omelete na
linguagem de casa / quer dizer o meu sem-abrigo privado.” Notem-se os segundos versos dos
tercetos, entre o bem achado das compras e a suspensão da conversa: “Umas moedas para
ele a seguir ir comprar / um dedo de pão e dois braços de aguardente / de se
queimar para melhor suportar a noite. // Com brilho de gato no escuro da
escuridão / o meu omelete tem uns olhos tão intensos que / mas cantigas assim
só aumentam a confusão.”
Essa aventura identitaria reforça-se no
suave enfrentamento com o Outro, desenvolvendo-se uma miriade de histórias, que
são mais dos que as de uma subjectividade, tornando-se centro-europeias,
italianas, parisienses, lusiadas – peregrinantes, em suma.
Essa procedéncia, ou espirito dos lugares,
evita soluçöes suburbanas e a charra prosodia de tanta poesia hoje celebrada
entre nós. Ainda devedor de uma pontuação minimalista, ou inscrevendo espaço no
meio do verso, por educação setentista, certo e que não encontramos agora
facilidades e displicencia, antes propostas engenhosas, como nos titulos da segunda
seccao (2012-2014), cada um figurando, ja, os das trindades poemáticas. Dos
parcos sonetos, salientaria, ainda, “Palavras de outono”, não so por ser
um dos muitos epigrafados em francés – e seria preciso estudar a
pertinencia da epigrafe –, mas porque, remetendo para o titulo da
obra, e para uma existencia ás palavras dada, sintetiza a diligencia
metaforicamente descritiva e melancolica de um Eros preterito. Outro soneto, que me
dedica, é “Domingo” (a dúzia de frequencias deste dia é ultrapassada pelo sábado, donde, tempo de eleição e descanso votado a arte):
no delicioso jogo de palavras, ha uma historia que
diverte, consumando o nosso autor enquanto
ironista.
Urge, assim, olhar para a cronopoesia de Pedro Assis
Coimbra – que conheci como Joaquim Pimpão, no
aeroporto de Frankfurt, em 9 de Setembro de 1981, e por um
quinquénio sobre o Danubio assim
tratei –, com matéria e propostas que honrosamente lhe franqueiam a entrada na cidadela da lirica
portuguesa.
Lisboa, 9 de Janeiro de 2018
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