Itinerários, Pensamentos e Palavras Soltas.
Recolhidas e escritas durante e depois de O Caminho.
Perante o
desafio da minha filha Marta, até ao Porto
fomos de avião, ela de Amesterdão e eu de Budapeste
e continuamos de autocarro até Valença do Minho.
Depois, durante seis dias foi a pé e de mochila às costas
grande parte do tempo à chuva até à Praça do Obradoiro
à Catedral de Santiago, fim do Caminho Central Português.
Sem saber vimo-nos no Mercado Medieval de Valença
que decorria na Fortaleza onde estava o nosso alojamento.
- O bem que comemos naquele real e abençoado mercado.
Feliz coincidência, o tema era a Peregrinação do Rei D. Manuel I
a Santiago de Compostela em 1502. Segundo as crónicas
acompanhado por uma grande comitiva de peregrinos-poetas.
Li que dois séculos antes, em 1325, Isabel de Aragão
- Sobrinha da Rainha Santa “Szent Erzsébet” da Hungria -
a nossa Rainha Santa Isabel, padroeira de Portugal
e dos pobres, também fez o Caminho até Santiago.
Deixamos Valença do Minho e iniciamos a nossa peregrinação
O Porriño, Redondela, Pontevedra, Caldas de Rei, Padrón e Santiago.
Gostamos muito da passagem por Tui, depois de atravessarmos
a velha ponte sobre o rio Minho, antiga fronteira entre Portugal
e o Reino de Espanha antes do actual Espaço Schengen.
A O Porriño chegámos sábado à tarde e muito esfomeados
como viria a acontecer em todos os dias seguintes.
O Porriño estava em festa e era ainda maior o contraste
entre a elegância dos locais e os peregrinos malvestidos.
Agora que já sei como acabou esta aventura única
como se fosse a antecipação da chegada anunciada
a um velho cais ao qual antes de morrer teria de voltar.
Como aprendi em jovem vale mais tarde do que nunca.
O passado é meu, o futuro para viver um dia de cada vez.
Há mais de vinte
quilómetros que chovia como na rua
sem dó nem piedade de nós que apesar dos ponchos
éramos todos caminhantes encharcados até aos ossos.
Quando ao longe ouvimos a música de um piano
e parecia ser uma peça musical muito conhecida.
Era “O Pianista do Camiño” que numa passagem
para os caminhantes, por debaixo da autoestrada
tocava “Mariage d’amour”, de Paul de Senneville
um grande sucesso mundial por Richard Clayderman.
Comentário a condizer e do fundo do coração
Jeitosa, o nosso também é um casamento de amor
Flor bela e resistente de toda a minha vida.
Chegámos a Santiago de
Compostela no dia 11 de setembro
a meio da tarde e com muita chuva. Festejamos o feito.
Lorca: “Chove em Santiago…
Soma e cinza do teu mar
Santiago, lonxe do sol.
Ãgoa da mañán anterga
trema no meu corazón.”
Ficamos alojados no icónico Albergue Seminário Menor
na ala onde não era dormir em beliche, em sala para muita gente
era o luxo de um quarto individual onde cabia um divã e uma mesa.
Sentia-me como um frade, uma freira em clausura. Silêncio e oração.
Somente no dia seguinte fomos à Missa do Peregrino
celebrada no Altar-mor da Catedral. Gostei muito da homilia
e da mensagem de humildade, humanismo e tolerância transmitida.
Foi anunciado que nesse dia tinham chegado 3.500 peregrinos.
À chuva e ao sol, com céu encoberto ou nevoeiro
estamos todos, todos a remar no mesmo barco
na mesma alma, no trilho do mesmo caminho.
Recordo a Taberna a Fuego Lento, encontrada pela fome e cansaço
e onde pedi chouriço assado em álcool. Um grande sucesso!
A Tenda da Rosa em Teo que nos permitiu comer e abrigar da chuva.
“Em cada gota de água há uma história de vida“, li numa fonte pública.
Por aqui bebem e servem o vinho tinto gelado em taças de barro.
Nestes dias vimos muitos gatos, sobretudo todos brancos ou pretos
casas com muitas parreiras de uva e a Marta sempre que podia
tirava uma esgalha e dividia comigo. Tão doces, tão saborosas.
O último café foi no aeroporto de Santiago Rosalía de Castro. Bonito!
Com a minha primeira
experiência do Caminho
e com as leituras que fiz, houve um conjunto de ideias
de pensamentos e palavras que mexeram comigo
de forma mais insistente do que é costume.
- Compaixão. Esperança. Essência. Contemplação
Verdade. Serenidade. Tolerância. Peregrinos. Peregrinação.
Os sentimentos nobres da alma ajudam a dormir melhor.
É tempo de ser autêntico, de nao esquecer a verdade
a quem sempre te quis e te ama. Não sei se venho do avesso
se muito ou pouco mudado, sei que não venho o mesmo.
Finisterra. Será que é aqui, sentado neste penhasco negro
que o meu coração acaba, que o meu coração começa?
Caminhar e deixar o
pecado em Santiago
como cordeiro de Deus e homem do povo.
Do incenso, sair dali purificado por dentro
e por fora, limpo como uma pomba branca
como um melro negro firme como o granito.
Confissão. Por muito que custe fazer andar para trás
o filme da nossa história, não faz nenhum sentido
nem com recurso ao marketing mais barato, sair de Santiago
para o mundo com a dignidade e a consciência empacotadas.
Destacar a nobreza plebeia da alma
quando em voz baixa diz o que pensa
não se esconde nem tem medo de ser sincera.
Durante muito tempo foi
minha opinião
que se necessário, saber usar no momento certo
uma meia-verdade ou uma meia mentira
era melhor que a verdade, uma mentira piedosa.
Finalmente já sei que não há nada
como dizer a verdade tal com ela é
ser também coerente com o verbo.
Não pregar água e continuar a beber vinho.
Não se ama quando se quer ou quando apetece
mas quando se encontra a pessoa que se precisa.
Não a deixe partir por falta de comparência
por não a valorizar devidamente como merece.
Na parede duma casa antiga estava escrito:
- Olha, aqui não há solidão, não te sintas só.
No Caminho para Santiago até as bruxas más
mudam e se transformam em fadas madrinhas.
Há muito tempo que não sentia
a beleza e a imensidão do silêncio
a profundidade paciente do pensamento
como senti durante os dias do Caminho.
Um certo dia escreveu, mas já se esqueceu do que disse
- É sempre uma verdadeira aventura ler o que publicas.
Há viagens que nunca se fariam se não fossem as leituras.
Se não fosse o desejo de estar contigo, de estar presente.
Agora que aqui estive quero deixar escrito
que valeu a pena ter vindo ter feito este esforço
ter aceitado o convite da minha filha Marta.
Sabe-se que o pescador São Tiago (Santiago Maior)
foi um dos três primeiros apóstolos de Cristo
Foi decapitado, o seu corpo veio de Jaffa numa barcaça
de pedra até Compostela. Campo das Estrelas.
É o Padroeiro da Galiza, Espanha... Protector de muita
gente
- Camionistas, chapeleiros, tanoeiros, alquimistas
farmacêuticos, veterinários… dos cavaleiros
dos peregrinos, das peregrinações e dos caminhos.
Por momentos sem palavras em sonhos breves e curtos
das noites bem dormidas do cansaço de tanto caminhar
vi-me de volta ao passado que sensato me indicava o futuro.
O trilho certo do resto do tempo que me falta viver.
Confesso que não foi no Caminho ou em Santiago que senti o clique
foi nas 3 horas no aeroporto de Barcelona em trânsito para Budapeste.
- As luzes e as estrelas da iluminação na minha alma caminhante.
Santiago de Compostela, Barcelona e Budapeste, setembro de 2025