segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Bom Caminho


Para a Marta

Itinerários, Pensamentos e Palavras Soltas.
Recolhidas e escritas durante e depois de O Caminho.

Para o livro "De mim ficam as Palavras"


Valença do Minho

 

Perante o desafio da minha filha Marta, até ao Porto
fomos de avião, ela de Amesterdão e eu de Budapeste 
e continuamos de autocarro até Valença do Minho.

Depois, durante seis dias foi a pé e de mochila às costas 
grande parte do tempo à chuva até à Praça do Obradoiro 
à Catedral de Santiago, fim do Caminho Central Português. 

Sem saber vimo-nos no Mercado Medieval de Valença 
que decorria na Fortaleza onde estava o nosso alojamento.
- O bem que comemos naquele real e abençoado mercado.

Feliz coincidência, o tema era a Peregrinação do Rei D. Manuel I 
a Santiago de Compostela em 1502. Segundo as crónicas  
acompanhado por uma grande comitiva de peregrinos-poetas. 

Li que dois séculos antes, em 1325, Isabel de Aragão 
- Sobrinha da Rainha Santa “Szent Erzsébet” da Hungria -
a nossa Rainha Santa Isabel, padroeira de Portugal  
e dos pobres, também fez o Caminho até Santiago. 

O Porriño


Deixamos Valença do Minho e iniciamos a nossa peregrinação  

O Porriño, Redondela, Pontevedra, Caldas de Rei, Padrón e Santiago.

Gostamos muito da passagem por Tui, depois de atravessarmos

a velha ponte sobre o rio Minho, antiga fronteira entre Portugal

e o Reino de Espanha antes do actual Espaço Schengen.



A O Porriño chegámos sábado à tarde e muito esfomeados 

como viria a acontecer em todos os dias seguintes.

O Porriño estava em festa e era ainda maior o contraste 

entre a elegância dos locais e os peregrinos malvestidos. 

 

Agora que já sei como acabou esta aventura única 

como se fosse a antecipação da chegada anunciada

a um velho cais ao qual antes de morrer teria de voltar.

Como aprendi em jovem vale mais tarde do que nunca. 

O passado é meu, o futuro para viver um dia de cada vez. 

Pontevedra


Pontevedra. Belíssima cidade
com a Basílica de Santa Maria Maior 
Igreja barroca da Virgem Peregrina
Colégio da Companhia de Jesus
ou o Convento de San Francisco... 

Sentia-se um ambiente nosso, familiar, latino
e depois de tanto palmilhar, soube muito bem
em pleno centro histórico sentar numa esplanada
pedir um café Delta, uma cerveja Estrella Galicia 
conversar, olhar a vida e deixar passar o tempo... 

As badaladas do sino da torre da igreja vizinha 
pareciam tão distantes que se tu estivesses aqui 
irias sentir como eu sinto saudade dos velhos amantes
cantados por Brel e que eu sempre quis reescrever. 

Padrón


Padrón. “Os pementos de Padrón, uns pican e outros non”
dito popular galego que aprendi na preparação da romaria. 

Aqui nasceu Camilo José Cela, viveu e morreu Rosalía de Castro
Mãe da língua e literatura galega. Autora de “Cantares Galegos”
Além dos pimentos comemos o melhor polvo desta viagem
num restaurante dos 2 que àquela hora tinham a cozinha aberta.

Na rádio ouvia-se não é contigo que vou cozer pão esta noite 
passear à beira-rio, colher uma flor, dançar na festa da vila
mas como é resiliente o coração percorre um longo deserto 
e na sombra do oásis e nos seus braços, o longe se faz perto.

Pianista do Caminho

 

Há mais de vinte quilómetros que chovia como na rua 
sem dó nem piedade de nós que apesar dos ponchos 
éramos todos caminhantes encharcados até aos ossos. 
Quando ao longe ouvimos a música de um piano 
e parecia ser uma peça musical muito conhecida. 

Era “O Pianista do Camiño” que numa passagem
para os caminhantes, por debaixo da autoestrada
tocava “Mariage d’amour”, de Paul de Senneville 
um grande sucesso mundial por Richard Clayderman.

Comentário a condizer e do fundo do coração 
Jeitosa, o nosso também é um casamento de amor 
Flor bela e resistente de toda a minha vida. 

Santiago de Compostela


Chegámos a Santiago de Compostela no dia 11 de setembro
a meio da tarde e com muita chuva. Festejamos o feito.

Lorca: “Chove em Santiago…
Soma e cinza do teu mar
Santiago, lonxe do sol.
Ãgoa da mañán anterga
trema no meu corazón.”

Ficamos alojados no icónico Albergue Seminário Menor
na ala onde não era dormir em beliche, em sala para muita gente 
era o luxo de um quarto individual onde cabia um divã e uma mesa. 
Sentia-me como um frade, uma freira em clausura. Silêncio e oração. 

Somente no dia seguinte fomos à Missa do Peregrino
celebrada no Altar-mor da Catedral. Gostei muito da homilia
e da mensagem de humildade, humanismo e tolerância transmitida.
Foi anunciado que nesse dia tinham chegado 3.500 peregrinos.
 
À chuva e ao sol, com céu encoberto ou nevoeiro 
estamos todos, todos a remar no mesmo barco 
na mesma alma, no trilho do mesmo caminho. 

Recordações do Caminho

 

Recordo a Taberna a Fuego Lento, encontrada pela fome e cansaço 

e onde pedi chouriço assado em álcool. Um grande sucesso!



A Tenda da Rosa em Teo que nos permitiu comer e abrigar da chuva.

“Em cada gota de água há uma história de vida“, li numa fonte pública.

Por aqui bebem e servem o vinho tinto gelado em taças de barro.



Nestes dias vimos muitos gatos, sobretudo todos brancos ou pretos 

casas com muitas parreiras de uva e a Marta sempre que podia

tirava uma esgalha e dividia comigo. Tão doces, tão saborosas.

O último café foi no aeroporto de Santiago Rosalía de Castro. Bonito!

Ideias. Peregrinação. Finisterra

 

Com a minha primeira experiência do Caminho 
e com as leituras que fiz, houve um conjunto de ideias
de pensamentos e palavras que mexeram comigo
de forma mais insistente do que é costume. 

- Compaixão. Esperança. Essência. Contemplação
Verdade. Serenidade. Tolerância. Peregrinos. Peregrinação. 
Os sentimentos nobres da alma ajudam a dormir melhor.

É tempo de ser autêntico, de nao esquecer a verdade
a quem sempre te quis e te ama. Não sei se venho do avesso 
se muito ou pouco mudado, sei que não venho o mesmo.

Finisterra. Será que é aqui, sentado neste penhasco negro
que o meu coração acaba, que o meu coração começa?

Santiago. Cordeiro de Deus

 

Caminhar e deixar o pecado em Santiago
como cordeiro de Deus e homem do povo. 
Do incenso, sair dali purificado por dentro
e por fora, limpo como uma pomba branca  
como um melro negro firme como o granito. 

Confissão. Por muito que custe fazer andar para trás 
o filme da nossa história, não faz nenhum sentido 
nem com recurso ao marketing mais barato, sair de Santiago
para o mundo com a dignidade e a consciência empacotadas.

Destacar a nobreza plebeia da alma 
quando em voz baixa diz o que pensa 
não se esconde nem tem medo de ser sincera. 

Ser coerente com o verbo

 

Durante muito tempo foi minha opinião 
que se necessário, saber usar no momento certo 
uma meia-verdade ou uma meia mentira 
era melhor que a verdade, uma mentira piedosa. 

Finalmente já sei que não há nada 
como dizer a verdade tal com ela é 
ser também coerente com o verbo.
Não pregar água e continuar a beber vinho. 

Não se ama quando se quer ou quando apetece
mas quando se encontra a pessoa que se precisa.
Não a deixe partir por falta de comparência 
por não a valorizar devidamente como merece. 

Aqui não há solidão

 

Na parede duma casa antiga estava escrito:

- Olha, aqui não há solidão, não te sintas só.

No Caminho para Santiago até as bruxas más 

mudam e se transformam em fadas madrinhas. 



Há muito tempo que não sentia 

a beleza e a imensidão do silêncio 

a profundidade paciente do pensamento

como senti durante os dias do Caminho. 


Um certo dia escreveu, mas já se esqueceu do que disse

- É sempre uma verdadeira aventura ler o que publicas. 

Há viagens que nunca se fariam se não fossem as leituras.

Se não fosse o desejo de estar contigo, de estar presente.

São Tiago e os caminhos do Caminho

 

Agora que aqui estive quero deixar escrito
que valeu a pena ter vindo ter feito este esforço 
ter aceitado o convite da minha filha Marta. 

Sabe-se que o pescador São Tiago (Santiago Maior)
foi um dos três primeiros apóstolos de Cristo 
Foi decapitado, o seu corpo veio de Jaffa numa barcaça 
de pedra até Compostela. Campo das Estrelas.

É o Padroeiro da Galiza, Espanha... Protector de muita gente
- Camionistas, chapeleiros, tanoeiros, alquimistas
farmacêuticos, veterinários… dos cavaleiros
dos peregrinos, das peregrinações e dos caminhos.

Por momentos sem palavras em sonhos breves e curtos
das noites bem dormidas do cansaço de tanto caminhar
vi-me de volta ao passado que sensato me indicava o futuro.
O trilho certo do resto do tempo que me falta viver.

Confesso que não foi no Caminho ou em Santiago que senti o clique
foi nas 3 horas no aeroporto de Barcelona em trânsito para Budapeste.
- As luzes e as estrelas da iluminação na minha alma caminhante. 


Santiago de Compostela, Barcelona e Budapeste, setembro de 2025