sexta-feira, 3 de setembro de 2010

MAIS PALAVRAS






1. RUA DA SAUDADE


2. AS PALAVRAS POR EMPRÉSTIMO


3. HISTÓRIAS PÚBLICAS E ESCRITA PRIVADA 


Pedro Assis Coimbra. Budapeste. Lisboa e outras cidades 2010
(in projecto: As Palavras Continuam)

1. RUA DA SAUDADE

Ary dos Santos nas minhas palavras


"Minha laranja amarga e doce
Meu poema."  in "Cavalo à solta"

Ideia que começou a tomar a forma de palavras
durante os dias que estivemos no 1. Dto do Nr. 23
prédio de Ary (de Alexandre O’Neil e Fernando Tordo)
em Lisboa na Rua da Saudade.

PRAÇA DA CIDADANIA


"Em Lisboa vendendo a minha fruta
de azeite e mel de ódio e saudade" in "Cidade"

Os seus seios de cinza   gravados na cortiça
no vestido de rainha   moldado ao corpo da desalmada
com bicos de carvão   serviam nocturnos às mesas.

Champanhe com gravatas sintéticas   da cor dos collants
trabalho todo feito   pelo paciente proletariado chinẻs
explorado e muito mal pago   feliz por ter emprego.

Radiografia negativa e perpicaz   do fascínio da liberdade
de trabalhar e dormir   ás vezes cobrir e ser cobertor
furão o camarada maior   comia as melhores melancias.

Parava para refazer contigo   sem medo do senhorio
a casa da luxúria e da ousadia   a voz baixa transformada
e no sábado cortar a relva   onde crescia sensual a poesia.

Poderiam ser dos espelhos   das suas partes inferiores
sombras que ajudam o faro do cão   a não se perder
e a encontrar o caminho   para a praça da cidadania.

Conquista última do século   que agressivo o avaliador
como um cilindro de nojo   herói sedento de dor
quer destruir e aplanar   por conveniência e conivência.

TECE A TECNOCRACIA


"Terra onde o mar é bastante
para guardar os teus segredos"
in "Tempo da Lenda das Amendoeiras"

As matas e as florestas   dos ataques surpresa
das emboscadas furtivas   do direito à indepêndencia
seriam das guerras   se não fossem da paixão.

Se não fossem dos amores   interditos por lei à rendição
pelos brandes costumes   trocavam os lençois brancos
por um desvio intenso   de duas horas sem queixumes.

Tece tece tecedeira   que o Bom Deus tudo perdoa
aos que com acácias   ordeiros se submetem ao poder.
Tece enquanto podes   há trabalho e há máquinas.

Ainda não foram vendidas   tece enquanto há fios
salários baixos emprego precário   o coração apertado
quase fora do peito   tece pequeno o teu desespero.

Se o óleo fígado de bacalhau   do purgante acabou
prega-lhe de castigo    com terramicina a dobrar
com a justa epistomologia    tece tece a tecnocracia.

Paises de delatores e denuncias   pátrias de merdas
que entregam os vizinhos   ao degredo e à morte.
Haverá futuro?   Vale a pena escrever da má sorte?

RUA DA SAUDADE


"Que ficará na memória
das naus que de Abril partiram"  
in "As Portas Que Abril Abriu"

De cobre e estanho  antes se invadiu a guerra
e hoje se semeia o corpo   se fabrica o pão
se transforma bronze   o mais duro da nossa terra.

Entre pressa e vagares   sente algum pudor adulto
despe-se com cuidado   que as janelas estão abertas
e os pardais telhado atentos   espreitam descarados.

De tão abandonada   por dentro dos pensamentos
de entrega ao prazer que se aproxima   deixa distraída
esquecido o último obstáculo   sobre as teclas do piano.

Na rua lá em baixo   com a ternura não se sabia
se o que se ouvia   era uma das melodias famosas
que assumiam o amor   às vezes a luta de classes.

Se o gozo perfeito   a festa linda do seu coração.
Morrer? Morrer agora?   Morrer asssim canção?
Só quando não tiver mesmo   mais nada para fazer.

NA BARBEARIA CLÁSSICA


"Para a cauda avestruz do teu andar de vereda
o decote intenção da tua voz agulha
recorto este poema num papel de seda"
in "A Casaca" Para Natália Correia

Na barbearia clássica   a barbeira de Salamanca
cantava de olhos fechado   frente ao espelho maior
longe como estás homem    nem de foguete ou foguetão.

Cantava descalça   assentes nas tamancas grossas
as pernas lisas da hidráulica   das nádegas rijas
apoiadas na cadeira alta   do ferro de marca cromada.

Tinha na mão direita   sobre a pedra da ilusão
onde amolava cortante   a lâmina da navalha
se fosse mais abaixo   seria marítima rocha do cais.

Preparava a máquina zero  adiantava serviço
do próximo cliente   cabelo eriçado à ouriço
remoinhos de areias secas   cortados às escadinhas.

Bendito não há ouriça  que não goste de chouriço
que não convide no olhar   ao envolvimento precoce
do soldado valente   á civil sem armas de fogo.

Cantava descalça na barbearia   a linda barbeira do mar
a mão direita afiada    segurava a tesoura militar
que cortava o tempo os dias   ter com quem amar.

NOVIÇAS AO BALCÃO


"Vá de Metro
vá de burro passear
mas não leve o alfabeto
que se pode constipar " in  "O esplanador"
Exmo Sr. A. Ramos Rosa Faro

Em agosto a água fresca   quase quase gelada
parecia ser das fontes   ainda te lembras?
Meu amor   dos fontanários eternos de Roma.

A água marinheira que lavava   terna o teu rosto
se juntava em poças pequenas    em bocas acesas
e percorria desperta   o corpo muito muito devagar.

Em barro te moldava   e de pedra te esculpia
com os dedos que pedira   emprestados à noite
e nos custos incluídos   todos serviços bancários.

A melhor cerveja preta   a copo para turista
era servida no mármore   pelas noviças ao balcão
no pátio recuperado   novo design das Carmelitas.

Estavam pressionadas   que o diabo não dorme
preocupadas com o retorno   do dinheiro investido
é que Deus foi sempre   o melhor na contabilidade.

ONDE A CIDADE SE BANHA


"Vou pelas ruas da noite
com basalto de tristeza"  in "Rosa da noite"

Escreveu a correr   que só por dentro da noite
percorrendo a pé   a argila seca do pensamento
seria possível fingir   ignorar tamanho mistério
vestindo as metáforas   nas cercanias dos lábios.

Bordando a sombra   com as luzes da ilusão
recolhidas à pressa   durante o intervalo para almoço
rematando com fios   a madrugada da inquietação.
A ordem milenar   com barbas de consentimento.

Frente à deusa seria?   Sempre nova da paixão
sem a censura do pudor clerical   e nada a esconder
humana assim responderia   em texto ao amor
com as cores profundas   do erotismo e fascinação.

Levar-te comigo   convencer-te a ficar para sempre
na minha casa   com o arranjo verbal das palavras
o vinagre dos sentimentos   ensopados em vinha d’alho
e o violino húngaro nocturno     do teu sorriso mais claro.

Guardar na mala   as vozes doces do rio grande
onde a cidade se banha   e nós mais tarde um no outro.
O motorista de longo curso   com horários a cumprir
já devia estar na estrada   e ainda estava sentado à mesa.

PEDRAS DE GELO


"Por ti morro e ninguêm sabe
mas eu espero o teu corpo que sabe a madrugada"
in "Amêndoa amarga"

Em esboços a lápis negro   de pedreiro arquitecto
declara que inventou país   o teu nome minha raíz
pescador no umbral   desse mundo dito novo
onde as pedras de gelo   chafurdavam transpiração.

Assessores ocupam gabinetes    pensam ser gente
que podem decidir por nós   sobre o futuro dos outros
seguros das suas verdades   que a madrugada do mundo
antes da sua nomeação   era uma arca congeladora.

Meu botão de rosa    não os posso mandar à merda  
poderia levar   com um processo sumário em cima
e no tribunal do trabalho   o medo a confirmação
despedimento com justa causa   a prestação da casa.

Valeria talvez a pena lembrar   a estes rapazinhos de caca
que mesmo imperfeita em democracia    a festa da vitória
na noite eleitoral    é o primeiro dia da próxima derrota.
- Boas indemenizações    depois chegam outros iguais.

O TEJO A DORMIR


"a mulher é de granito
os seus braços duas pontes
entre o ventre e o infinito"  in "Fado transmontano"

Que sejas tu    com o teu olhar de bandolim
a tua voz contra-baixo   a parar a força do vento
e mandar para outras paragens    o grande vendaval.

Onde longe não faça estragos   nem às crianças mal
se ventania que seja   para limpar o céu redentor
o ar puro e fresco   no abrigo morno onde te espero.

Os poderosos há muito   que compraram o mundo
os seus herdeiros de sangue   os mui fieis servidores
tem-se limitado à gestão   assuntos correntes do lucro.

Para que nada mude   enquanto o mundo for mundo
sem a claridade da manhã   o saxofone do casino
quando o sol entra feminino   pela janela da sala.

Te ilumina acordeão   eu ponho a mão no teu rosto
nos teus lábios em tudo   para papel quimico do futuro
te reproduzir e guardar    na gaveta do meu coração.

- Subiamos até à rua   de Tordo e Ary dos Santos
a dois em esforço   pelas escadinhas de São Crispim.
O Tejo ao longe   calmo até parecia estar a dormir.

A LÍNGUA É DA SERPENTE


"É de linho o teu verso fiado no destino
dum país ao luar dum fio de azeite"
 in "Retrato de António Nobre"

As palavras embebidas   em aguardente caseira
aquecem e desfazem-se   na escuridão dos sentidos
no alçapão transparente   das ideias mais profundas.

Mas não negam aquilo   que na verdade sempre foram
cumplicidade e entrega   troca de curtas mensagens
o enxofre da vinha   o martelo da madeira mais dura.

Para bater a carne   espalhar pelo tampo da mesa 
do tempo da fome sem força   para morrer
dar nas canelas   dizer que não ao Grande-irmão.

E então não era   que sentada no barril de carvalho
na cor turva cultivada   no azeite fino dos seus olhos
não resistia   e dócil se deixava comer pelo leão!

Sagrado que enquanto comia   não falava nem ouvia
os seios euforia   debaixo da bata bem apertada
a dar de si    os bicos não poderiam estar mais tensos.

Nem o melhor detergente   do mercado grandalhão
a luz perversa dos olhos   a lei cega do olhar.
Não importa o que pensam   a língua é da serpente.

PÉ NO ACELERADOR


"Já suei o suor de oito séculos de mar
o tempo de onze meses de ordenado"
in "A Máquina Fotográfica"

A aristocracia popular   dos sábios lãzudos
da revolta lançada borda fora   sem um gesto de piedade
bateu em cheio no rosto     à bruta com todas as costas.

A doer no asfalto   no cimento mal-armado
do desterro das ideias   da caridade de plástico
impunemente mentirosa   com tiques de beata tonta.

Enquanto a poluição  se encaminha para o mar
as dúvidas por perguntar   há muito que tinham sumido
pela abertura da banheira   pelos canos da desilusão.

Como o esquecimento anónimo   do exílio prolongado
porque para subir   ao pico mais alto da montanha
precisava apenas de um carro  o pé no acelerador.

Lisboa, setembro 2009 – Budapeste, 2010

2. AS PALAVRAS POR EMPRÉSTIMO

POR COMPAIXÃO


Aquela hora à saída dos empregos
da cidade pequena a rosa caíu ao chão
por cima da lagartixa bem parecida.
Prolongava os olhos de fusco-fusco
esticava de perfil o busto de mármore.

Espalhava baba pela casca ressequida 
com umas cervejinhas e era caso
para dizer sim o petisco é bom
mas a cozinheira é ainda melhor.
Produto nacional de qualidade europeia.

Sem as pernas de outras épocas
a rosa murcha morria de sede
pela falta da gasolina antes barata
com mais chumbo e menos pulmão.
Saudades do tempo das vacas leiteiras.

Com alguma discrição era normal
por compaixão passarem por cima dela
e deixarem uma nota de gratidão
uns trocos que dessem para o fumo
até à tardinha ao dia seguinte da solidão.

CINTURA DE LIBERDADE


As mangas da camisola vermelha
em nó-mudo sobre a cintura
onde começa a melhor poesia
contornavam os lírios da fonte.
Pendiam em desígnios de liberdade.

Em esboços de movimentos e negas
por cima e no meio das pernas longas
que sem o ilusionismo das palavras
pumas pareciam ter sido apanhadas
em flagrante excesso de velocidade.

Pareciam ter escapado do catálogo
da nova colecção Primavera-Verão
passadeira feita praia até às rochas
à ponte de madeira mais próxima
e montinhos de areia ao natural.

As mangas da camisola vermelha
caíam sobre o formatação do peito
como dois braços à espera de vez
universo ao qual nunca chegarão.
Sentimentos muito perto do infinito.

Dois ramos pintados da côr do desafio
do novo moço da loja dos petiscos
percorrendo sem remorsos asnádegas
do sucesso do pão em molho picante
descodificando a mensagem no sorriso.

ENTRE MUITO VERBO CALADO


"Talvez houvesse uma flor
aberta na tua mão"  David Mourão-Ferreira

Na selva da solidão rasteira
onde se procuravam à toa
por sortilégio da flôr não se viam 
em desencontros de pouca sorte.

Entre muito verbo calado
e tanta palavra adiada
montes de restolho a secar
para melhor flagelo dos pés.

Como as toutinegras de ontem
as mãos perdiam-se intactas
na topologia dos segredos.
Perdiam-se aos poucos na chuva.

Escrevia com um pau na terra
fica comigo até à eternidade
que termina na próxima noite
no dia do mito do nosso reencontro.

Ao longe em palavras e torresmos
quase pretos de tanto mexer os dedos
a saudade despia-se portuguesa
na torre a sul de todos os ventos.