sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

ESCRITA 1.

A Carlos Sanchez
Aos amigos do Taller Literário Kö-Kur
á


Peregrinos nos afluentes concisos do tempo
no caudal de plástico descartável
da noite anterior fantasiam as ideias
das cigarras as imagens do formigão
na peregrinação feitiço à terra.
Não sonham as páginas gastas dos dedos
nas costas arenosas do fumo
islas negras de cavalos selvagens
defendendo as conquistas do povo.

Permaneço por isso distante
longe de mim longe dos meus
próximo de toda a correria do pão
abordar a praça e os viajantes
no cais do corpo do alento
no interior inseguro do tempo.

ESCRITA 2.

A Diego (aliás Ricardo Farrú)

Poesia pedra extraída da minha liberdade
consentida mosca preta pedra parcial do fogo
grandeza acessível às arestas da tua voz
colmeia incerta do formigueiro e do encanto.

Poesia pedra extraída à intensidade do fogo
desejada como ovo estrelado da fome
sinfonia estranha canivete afiado do toucinho
mãos infantis da inocência perdida.

Poesia pedra extraída ao esquecimento
biblioteca da viagem leoa amansada no circo
passageira triste da insurreição do fado.

Descoberta das cinzas quentes do sonho
marítima junto ao olhar à grandeza da morte
livro capitel pedra amante antiga da poesia.

LUZES E LOBAS

Quando as luzes se apagaram
puseram os faróis nos mínimos
correram loucos correram
sem roupas e sem coleiras.
Desarmados correram e caíram
pelos baldios – a preferida dos ratos
da maior lixeira da cidade.
Lavaram-se no lixo residual
com o sabor doloroso de terra.

Os cães esses brigavam orelhas
e pêlo caído carraças partilhadas.
Mordiam-se disputavam a vez.
O pirilampo da cadela colectiva
cada dia cada noite mais municipal
mais louca mais panela de sopa.
Aguda a cada instante renascia
das cinzas nos olhos brilhantes
de gata escalada para serviço nocturno.

LOBOS E LUZES

Quando as luzes se apagaram
quiseram o prazer como medronhos maduros
do algarve e pêra rocha do oeste
metáforas regionais ao serviço da poesia
para disfarce na noite da moral pública.

Quando as luzes se apagaram
racionamento central de energia
usaram as pilhas de bolso
para não se enganarem na estrada
em mau estado que conduz à foz.

Puderam assim livres servir-se
dos acessos desvios e atalhos
da superfície lisa da água
com ajuda dos tambores do Congo
enguias cativas de cegonhas ditas ibéricas.

Quando as luzes se apagaram
prolongaram o festim dos homens
com o agnosticismo feminino da filosofia.
Cadela animal doméstico e fabril exposta
ao prazer operário na transpiração da lua.

PARÁGRAFOS DO CORPO

É para ti Gabi

A língua lentamente
afasta os dentes descarta a ajuda
misteriosa e voluntária
quer ser única
sem música sem silêncio
sem testemunhas oculares.
A língua alonga-se enrosca-se
e alonga-se outra vez
desliza e rasteja avança
dividida como uma serpente
lentamente lentamente.

Contorna uma a uma as letras
solta as linhas as raízes
os parágrafos do corpo.
Penteia e despenteia
os conteúdos do vinho
as formas do corpo
a substância mineral saborosa
e sedativa do fundo do mar
a substância artesanal do enjoo
da volúpia da vertigem
quer ele dizer: dos corpos.

Nua e exposta no largo
no terreiro da aldeia
nua e soalheira
no pasto das ovelhas.
O comichão os arrepios
das pernas picadas
as formigas do prazer.
Nua e indefesa no alpendre
no terraço da casa do seu corpo
ao cair da noite – lentamente
lentamente
lentamente.

OS PARADOXOS DA ÁGUA

Agosto e Setembro, 1982
"Mi gozo viene de lo inédito de mi emoción. Mi
exultación viene de que antes no senti la presencia
de la vida. No la he sentido nunca."

 Cesar Vallejo

SÍLABAS DO PRAZER

Percorro uma a uma
as palavras do poema
que os teus olhos anunciam
e eu nunca escrevi.

Afável vinhas do pó enfeitada
com um misto de azinheira
e arbusto nos cabelos
presos a um pedaço de tecido
transparente raro e sedoso.

Trazias na boca
A rosa mais frágil do Japão
os sintomas vegetais
das amoras marítimas
um sabor forte e seco
de búzio em repouso.

Uma a uma percorres
as sílabas do prazer
todas as naus clandestinas
escondidas nas sombras
no convés passageiro pirata
do azul estival do corpo.

Na assimetria do silêncio
da aguarela da luz matinal
ardia o fósforo da emoção.
Partias para a casa incerta
para o parapeito do amor
com os braços longos do mar
viajante de Cristo a emigrar.

RELÓGIO DA TORRE

Começa no gosto luar marisco
do cigarro entre rosários de cardos
palavras e boa vida que imaginei sem ti.
Todas as armas necessárias do crime
as cores profusas do amor
e a tempestade adequada à mentira
corrimão carcomido dos pés.

Eleva-se com as bruxas de Bruxelas
melgas e vassouras a diesel
patos gansos o canto das cegonhas.
no preâmbulo do tricot da pele
o toucinho escondido da fome fraterna
facas de mato e muito medo dissimulado.

A minha barba mal semeada
e os teus frutos de sabor a sabão.
Começa nesta beata resina
no relógio atrasado da torre
no jantar tardio e sacos de carvão
as baratas e os gafanhotos divinos
das nossas lesmas de feitíço e salpicão.

RIO COURA

Amante do sol e das pedras

Ao sol mole que nem uma cobra
dissimulada por entre as pedras
eternas dos triângulos do sonho.
De silvas povoarei de arados
ceifeiras e sementeiras
com ervas daninhas
o seu ventre de safios
com o sangue bíblia dos cabritos
as heras e os paradoxos
bichos perfeitos da água.

De joelhos dobrados subserviente
saias levantadas presas
às mãos unhas de terra negra
o seu macho a alombar pela fazenda
a pastar pelas tabernas da vila.

A pela branca festa da capoeira
sem as rodas finitas da mó do tempo
e as redes de arame do sol.
Regador regarei para que cresça
o pasto que esconde os ovos pequenos
das rolas e algumas codornizes.

Feia e cansada na noite de alhos
com o seu homem se transforma
com cabelos trazidos da cabra da serra
que mastiga bugalhos secos e cogumelos
importados da Galiza pelo vento.

Disfarça as peles e carnes a mais
poço fundo produto não pasteurizado
sem a defesa fingida do prazer
da pele tensa de mamilos acrescidos
e roxos na ponta dos dedos
nas águas de metal do corpo
e por fim esquecer a língua do vinho
o suor sexuado da preguiça.

RÉPTEIS

Nagy Imre, Hungria, 1956.
Salvador Allende, Chile, 1973
.

O réptil silvava todos os dias à mesma hora
acompanhado pelo protesto dos outros mamíferos
que aquela hora da tarde ainda dormiam
submersos na água lenta e quase choca
que invadia as hortas e os tomatais
as cercas vigiadas dos puros sangue
os viveiros de ostras e corais do capital estrangeiro.

Aqui e ali vozes descrentes pássaros perdidos
portas fechadas de festas de guerras adiadas
o fogo das palavras e os cavalos de corrida.
No último dia da luz segundo a religião
professada pelo grande manitú da cidade
a planície e as minas afundaram-se dois metros
e o réptil não mudou de pele nem nunca mais silvou.

Partes do seu corpo apareceram espalhados
pelas bermas dos caminhos em locais ermos
com vestígios recentes de terem sido alimento
e estrume dos outros répteis ou mamíferos
de quem tinha sido professor único mestre
e de muitos verdadeiro pai. Implacável inimigo.

LEITE EM PÓ

Respira saúde por baixo daquelas saias largas
aromas tropicais ventos fortes e marés vivas
iniciação sádica ou virgens do oriente. Serve
à mesa e ao balcão na cozinha e na esplanada.

Serve uvas frescas batidos e sumos gelados
em restos de cálices impuros e copos de plástico.
Dá cabelo aos carecas e fome a quem já a tem.
Indica a todos o inferno via sol da salvação.

Respira saúde por baixo daquelas saias largas
a grande vaca de leite em pó a morrer seca
de sede lenta com os passarinhos todos mortos
gaiolas despovoadas um só bichinho carpinteiro

Vassoura enorme mesas limpas na hora de fechar
e o coração avulso ao longo de todo o corpo
de cidade interior amargo da máquina de café.
Respira saúde por baixo daquelas saias curtas.

RESERVA NATURAL

Na azenha de Vilar de Mouros

Pele vermelha bem escura
com a blusa atada pelas mãos
do verão alguns botões em falta
das casas ocupadas pelos caracóis
na manhã tardia solstício do povo
da amante desprotegida do fogo.
Meu nevoeiro marxista de pedra
nossa a ilusão citadina da poesia.

Na produção artesanal à manivela
da máquina manual de transformar
mentiras e meias verdades em lábios
de francesinha no prato e eucaliptos
em fornos a lenha e muito pão doce.
A erva e a terra da reserva natural
onde caçar era ainda permitido.

Feiticeira de papel nas setas de luz
dos malfeitores e contrabandistas
nas dança das chuvas de águas termais
passos mal ensaiados de galo.
Música rara e bela de arte antiga
cortina corrida mui sensual
no optimismo nos dogmas do seu olhar
de boi de borrego ou formigão.

BIENAL

Lady do Café Come Late.
V. Nova de Cerveira
.


Eu senhora irlandesa(?) não sou ninguém.
Nunca o fui e penso que nunca o serei.
Na roupa de ninguém sinto-me mais cómodo.
Aqui estou atento a beber nos meus sonhos
prolongados e atentos e nada mais
a querer-me um pouco mais que ninguém
mosca asseada abelha ou vespa inofensiva
para pousar no seu regaço sem me sentir
para aí me deleitar afogar os meus desejos
comuns de sapo insensato sapo republicano.

Centenas de poemas e plágios
a serem escritos na sua pele bronzeada
pelo pseudónimo das minhas palavras
na sua lua pelos desejos da minha língua
de vinho verde tinto e água das pedras
nas suas mãos esguias de malagueta
lindas e magras por toda a solidariedade
pela solidão imensa das minhas ideias
na travessia lenta dolorosa do deserto
até à manhã onde um dia irão desembarcar.

Eu senhora irlandesa(?) não sou ninguém.
Ao encontrá-la e vê-la partir feliz
com outro com a noite pelo braço
sei que estou mais longe de fugir daqui
de mim de ser ontem e amanhã de ser alguém.
Porque me olhou tão insistentemente
me desinquietou me enlaçou e me abraçou
tantas vezes e me seduziu com o mar calmo
dos seus olhos? Ou foi da noite e da minha miopia?

MãOS DE AREIA

1983
"Vous étes un beau ciel d’automne, claire et rose!
Mais la tristesse en moi monte comme la mer"

 Charles Baudelaire

SINAIS DE FUMO

Repouso por momentos
o coração no azulejo mouro
dos teus lábios. Será possível?

E caminhas pressinto!
Uma cotovia sedosa anuncia
entre dois sinais de fumo e fogo
o dia do nosso reencontro.
Será verdade?

Podes continuar
a olhar o sol poente
e a descer ao mais fundo
dos meus sonhos ateus como os teus.
O que mais quero
é partilhar contigo o meu silêncio!

Repouso por momentos o coração
os olhos o pensamento na pedra
na laje fria da igreja.

E depois pedindo escrever: Vêm!
Virás? Peço-te um só beijo
breve singular e leve.
A mão sediciosa nos cabelos
e um sorriso de vento
cristalino um sorriso passageiro.


Budapeste, 13.03.1983.

PRIMEIRA DESPEDIDA

Quando tocam os sinos
é para juntar o povo despedir gente próxima
anunciar as horas ou a palavra
de deus na terra. Tu sabias meu amor?

Das tocas escondidas das lebres
da cigarra perdida na cidade
do andaime que da chuva nos protegeu
do arbusto que nos salvou da vergonha
e a mulher do talho que nos atendeu?

Mesmo sem a frescura de ontem
as verdades vindas do estômago e as marcas
lindas que religiosamente guardámos
as palavras ainda são possíveis.
E agora? Já sonhámos tudo?

Lembras-te das formigas voadoras
dos músicos ciganos de chumbo
do fósforo com que queimei sem querer
a tua mão esguia? A cerveja
que entornei à entrada da tua saia-casaco?

Na propagação comum da imagem
nas vítimas do fogo do clero recusado
recordo a primeira noite de conjura
vassalagem atrevimento. Inimaginável plágio!
Tu sabes o preço em divisas da despedida?

VARANDAS DE ÁGUAS

Varandas de águas claras e finitas
e roupa estendida flor de laranjeira.

Transforma um livro de poemas inúteis
em guitarras de seda gengivas de nuvens.

Uns carris de carvão castanho da ferrugem
e a magia magyar mãos de prata na areia.

Para ti manhã um só minuto a vida toda
o primeiro sonho vivido longe da aldeia.

DE MIL ROSAS UMA SÓ

Porque és a constelação
do inesperado de dias
noites e luzes
vogais e alegrias
de estrelas azuis.

Permite-me
Ó caminho esvaído
Ó sono inquieto
Ó roseiral intenso!

Que tire as meias
dos teus pés pequenos
e um pedacinho de pele
para tesouro.

Que descubra os segredos
do fecho da tua saia
silêncio muito tímido
muito diálogo mudo.

Que massage
o vinco da blusa
em círculos pequenos
com os dedos da saliva
e os rios do pensamento.

Que penteie os caracóis
te lave a cara do sol
te limpe os olhos e os lábios
para retocar de rouge e de baton
de rimel e modernismo.

Permite-me Ó única estrela!
Constelação de mil rosas.

Budapeste, 20.04.1983.