sábado, 3 de dezembro de 2016

OUTONO DAS PALAVRAS



"A palavra é tudo o que temos". Samuel Beckett

”N’étre pas écouté, ce n’est pas une raison pour se taire”. Victor Hugo

"Anyone who keeps the ability to see beauty never grows old". Franz Kafka



Pedro Assis Coimbra (2015 - 2017)
 (do projecto: As Palavras Continuam)

1. GEOMETRIA DAS PALAVRAS

1. Tarde de Outono



Durante semanas distanciado da alma antiga
estive a selecionar para "as palavras que ficaram".
Num dia escuro de inverno e de muito frio lá fora 
decidi que as que não tinham passado a fronteira
iriam servir de acendalha para o meu fogão de sala.

Foi assim que grande parte das minhas metáforas
desde então rimam apenas com as suas próprias cinzas.
Hoje tenho pena mas o caminho é andar para a frente.

Caminhava por Paris numa bela tarde de outono
- cumprindo a promessa, pensava na força das palavras
que por vezes inudam o meu coração e só sobrevivo
e por aqui continuo, porque me deixo ir na corrente.


2. Margens do rio


Dizem chapim que tudo terá começado
na pedra miúda das margens do rio
que acolhia o entreposto da migração das aves
– património imparcial com sabor a felicidade –
desígnio colectivo de não-realização do destino.

Sonho em chamas que continuou a crescer
no quarto da pensão da sua conspiração.
Atenção! Cabeça e coração ao alto por favor.
Cuidado com a dimensão do fogo da paixão!

Ao perder-se pelas ruas do interior da cidade
no seu andar de comércio retalhista de promoção
era embrulhado em pecado o feitiço da inovação.
- Pecador consumindo pacientemente o perdão.


3. Pescar camarão



Pela portaria reguladora da identificação 
do colorido cartão magnético do escritório
estava preso das calças em rédea curta.
Pendia por acaso milimetricamente do cinto
até ao postigo secreto entre as pernas da sedução.

Não. Não era a malha perfeita de pescar camarão
nem uma carrinha com serviço de caixa-aberta.
Não era mulher papel azul de vinte cinco linhas
nem a padaria que no forno cozia chouriço no pão.

Era comida feita por encomenda e de levar para fora.
Ela deitada na praia com as costas viradas ao céu
sem perigo nenhum de se magoar, a areia era macia.
A cestinha redonda da merenda esperava a sua hora.


4. Cartografia

”O tempo leva tudo, até mesmo a memória” Virgílio

No mapa mundi do poder
a geometria privada das águas
trazia até nós as palavras
a narrativa anunciada do anoitecer.

Chegava abrindo a porta toda à luz mediana
que ali fazia lembrar o seu sorriso de filigrana
aquele momento de ternura levantado da lama
o amor de vidro partido pelo triste telegrama.

Descia como quem fica - com a má-fama.
Esticando o corpo - a espaços a alma.
Tropeçando na pedra - caindo na cama.
Um sorriso leve de noite feliz - tão calma.

Cartografia do luto: chegará o dia minha flor
que até o amor mais profundo morrerá de dor.


5. Açafrão e algodão

"On ne peut toucher au feu sans brüler les doigts"
George Sand

A ponte muito antiga na aventura da descoberta.
Um aeroporto que ficava no caminho do coração.
A mão deslizando por debaixo da roupa clara.

Recordando imaginava os dois beijos de museu
a primeira viagem de comboio pela capital vizinha
feita de autocarro na voz inesperada duma guitarra.

No transfer para o hotel como as tuas nádegas cediam
aos avanços açafrão dos meus dedos de algodão.
Os teus lábios que foram feitos à medida dos meus.
Foi no domingo à tarde depois de uma noite sem fim.


6. Inspiração



De dia era mulher vestida de sexta-feira
que da degustação sabia a fim-de-semana.
Na hora de se acomodar no sofá e deixar
a água morna do rio subir as suas margens.
Inundar a terra limpar para a pedra saciar o fogo.

Ninguém se despia como ela, parecia cena de novela
pintada de azul da cor do vitral, desenhada na janela.
Para motor estimular, acelerar a circulação do carbono
deitava-se sem pijama e fingia estar a morrer de sono.

Do princípio ao fim do baile, da visita breve da tarde
dá-me alento amor quero-te afável, feita inspiração
enfeitada assim, promessa em botão do nosso jardim.


7. Colinas impressionistas



A estrada sinuosa era a do seu torso
com as linhas curvas muito acentuadas
colinas que pareciam impressionistas.
A obra prima da terra dos meus dedos
o feitiço das margaridas dos teus beijos.

A pedra do sol que estava situada na serra
no meridiano conciso das escadas rolantes
a norte do metropolitano do meu coração.
A ocidente dos teus olhos agora ausentes.

Que bom seria sem pressa degustar
os lábios rosa luar da noite mais bela
da rainha nocturna desse mar por inventar.
- Dizia ali nunca mais se não for com ela.


8. Laranjas



Em tempos de prosa difícil de não se ser triste
das guerras, alimento os teus lábios são a planície  
o refúgio que existe para a minha alma em riste.

A laranja que eu não apanhei azeda
das laranjeiras públicas das avenidas
na primeira noite partilhada da festa.

Nos bolsos trouxe para recordação as cascas
das tangerinas sumarentas do teu peito
que tinhamos espalhado pelo nosso leito.

Bailarina aquela taça de vinho tinto maduro
tinha exactamente, como estava sentada a forma
os claros contornos do vidro soprado do teu corpo.


9. Geografia e magia



"Plaisir d'amour ne dure qu'un instant
Chagrin d'amour dure toute la vie."
Jean-Pierre Claris de Florian

Imagina que foi em Paris que soube
que pedra o tempo tinha passado
que frio na alma já não contava mais
que a Noite afinal já não seduzia.

A água do rio não fervia no olhar.
A laranja não se descascava à mão.
A papoila que para nós eu inventei
já não se queria destacar da multidão.

Não havia no quarto nada da nossa geografia.
Para ti já não tinha nem um dedo de magia.


2. PALAVRAS PERFUMES E FLORES



1. Mythos & Jasmim


Ali o Mythos bebe-se a copo bem frio 
na terra onde inventaram o mito.
Deliciosa fumadora tão light e feminina
- a mitologia jasmim do signatário. 

A água é servida ao litro
assim que o povo se senta. 
O vinho da casa bebe-se com o prazer
que o polvo e as lulas multiplicam.
Era o tempo das palavras perfumes e flores.

Uma bela cidade com praças pequenas
com gatos pretos moinantes e cães vadios
dormindo ao sol antes de se fazerem à vida
com grinaldas brancas e malmequeres na lapela.
Coroas de oliveira para decorar as suas amadas.

2. Rosa Vermelha



Foi no bar da equação da sede no cais do regresso
que se tinha espalhado sobre as mesas corridas
fruto da adesão ao perfume feminino da ficção.

Para identificação decorado a barriga das pernas
à espera dos heróis do povo e outros que não eram
servindo bebidas e outras entradas de boas-vindas.

Depois despedindo-se no silêncio da noite se despe
do preçário livre em moedas, a rosa como carinho
deixando florida a alma vermelha na roupa que veste.
As curvas húmidas pelas alamedas do caminho.

Tanto rima tanto mistério tanta blusa de vénus
tanto desejo louco por explodir por se derreter
até roupa nenhuma até Tebas do culto perdido.
O declínio do mito-pecado que os povos faz viver.


3. Anis



Era um carro em viagem pelo fundo azul da tarde.
Atento olhava redondas as belas pernas do tabelier.
As coxas lisas, mármore que do sol no vidro arde.
Com as nádegas de couro. A ponte perfeita do prazer.

Umbigo em grão. Sal grosso. Anis e a pulseira no pé.
Fonte eterna dos acessórios de veludo. Design de agosto.
A poente, disfarçada de nascente sorria para o café.
Fazia como que estivesse comigo. Maquilhava o rosto.

Uma mão de dádiva e de entrega absoluta
enquanto da discrição acariciava o microfone
pela mesa do repasto da sobremesa surpresa
que tinham apalavrado de manhã ao telefone.


4. Junquilho



Nesse lugar o sotaque grego do mar
permitia até acreditar no milagre
na liberdade que educava a ser livre.

Que persistente semeava a diversidade
que iluminava os navios solidários.
Ilusão não passava de conversa de mercador.

Nem tu Atenas sobreviveste à força das armas
às pedras da história inquisidora de sentido único
às poeiras obrigatórias da erosão do ferro.

Hoje junquilho tu-nossa-minha flor
sobeja a dor no que falta em amor
em Lesbos na ilha que foi de Safo
no verão frio da nossa vergonha maior.


5. Acácias



Os rios gordos das acácias negras do mundo
que de longe nos trazem madrugada fora
que remos de barco nos levam vida dentro.
Sedentos da luz do corpo que o sono ignora.

Escrever na mesa, escrever-te a pão de milho
por entre imagens que ficaram por arrumar
dos nossos pequenos almoços tomados a correr
- que resistem cada dia cada ano cada inverno.

Palavra que a vida não nos deixa adormecer!
- Palavras que nos levam até ao fundo do lazer.


6. Casa das Rosas



Da ornamentação, da ternura sem ostentação
o amor que em capítulos escreviam
era tão forte como a argamassa delicada

que fazia da humidade, da entrega das bocas
o cola-tudo do livro da memória, do presente
que nenhum deus ou inimigo poderia separar.

Café-aquecido-de-fim-da-estação-das-chuvas
cozinha e fogão, festa e colete de salvação
a casa das rosas que por gosto devasssas.

Especialista reconhecido pelos mercados
de transformar a saudade em noites brancas
sem sombras nem escuridão, sem negaças.


7. Begónia



Nem harpas de silêncio pétalas e janelas verdes
a magia das palavras que plantando regavam.
A begónia altiva da multiplicação intensa do sonho
que da idade, crescia livre nos subúrbios da cidade.

A avioneta parada no ar à espera do vento sul
carregado de promessas para a próxima primavera.
Cozinheira de avental bordado com desenhos de ramos
como quem dizia: não tenho mais nada sobre a pele.

Tão bom saber e repetir até ao último dia em flor
que deusa intocável a lua nova está escondida
no cacifo individual do banho turco que nas traseiras
faz esquina, com a porta de entrada do nosso amor.


8. Lírio-de-chuva



Adorava o café do alvor pelo filtro dos teus lábios
calçar os sapatos vestir as calças beijar-te os olhos.
Chegava a praia e entregava-se ao jogo da água fria.
- A saudação das mãos diziam tudo da nossa alegria.

Eram os movimentos cada vez mais lentos
lírio-de-chuva no verão de meses e olhares demorados.
Como eu gostava de espalhar cremes de outrora
pela longitude horizontal pelo sal da tua sombra.

Quero-te no bolso mais pequeno da vida
sem escolha de palavras que sirvam de álibi
na festa ao ar livre, da rosa no chão estendida.
- Todos os vestidos da poesia foram feitos para ti.


9. Dália vermelha



Licor passeia a sonolência secreta da beleza
pela passadeira da praia, a bela dália vermelha.
Preguiçosa espraiava-se pela marginal da vida
e comigo pelo intenso baixo-relevo do desejo.

Deslumbrante com as palavras perdidas no seu peito.
Os teus olhos de terra castanha marcavam o ritmo
o ritual do fogo que finalmente me levava ao sonho.
Água perfumada figueira a arder. Era a vez do prazer.

No porto próximo da autonomia conquistada do sonho
o vento acentuava a demarcação das colinas
a luz revelava o relevo lunar das praças do teu país.
Voltarei a escrever feliz que foi contigo que adormeci.