quinta-feira, 2 de setembro de 2010

CARTOGRAFIA E CALCÁRIO


"Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta" 
David Mourão-Ferreira

A cartografia mais vulnerável
de todos os desejos de barro
e dos sonhos mais inquietantes
estava sinalizada no calcário branco
na maresia marítima da nossa história.

A geografia da mais ténua sedução
vinda do mar navegava de barco à vela
com as ondas pelo sal húmido do teu corpo
entre os dedos das minhas carícias.

Com a sabedoria das tuas mãos
da sua entrega lisa em pedra dura
na distância e no silêncio do bosque
longe da nogueira mais velha da praça.

Enquanto os olhos da tempestade
encostavam a porta vagarosamente.
no quarto ela cantava de boca fechada
como mais ninguêm sabia fazer.
Como se fosse verdade o que se ouvia.

BELA CIDADE A INSINUAR-SE


Foi a falsa injúria pela vingança gratuita
o mal fazer pelo prazer da dor no próximo
a entrada brutal às pernas o joelho desfeito
a fuga pela janela com a morte no horizonte.

A suspeição das teorias da conspiração
das mentiras dos inimigos externos e internos
que pena que não estejam a pisar ovos
como Santa Jacinta com pés de púrpura.

Glícinas e gerânios silvestres de Bethânia
do tempo quando ainda havia água com fartura
sem a pólvora desvastadora da indiferença.

Se não há número suficiente de serralheiros
recrutem madeireiros serventes e calceteiros
os mais finos cavaleiros tesos que nem um carapau.

Sem o cerco das tripas à moda do Porto
o polvo à lagareiro que não se come
em mais lado nenhum como na tua Ribeira.

Dessa bela cidade que aprendi a gostar
a sentir-me bem a saber insinuar-se 
e que tinha na Foz tudo a ver contigo.

HÁ RIOS CITADINOS NAS PALAVRAS


"Há rios que chegam subitamente
atraídos pelo fulgor dos dedos" Eugénio de Andrade

Há rios citadinos nas palavras
esquecidos sem querer no banco traseiro
do último autocarro da noite.
Palavras grossas que falam por si
impressas nas costas do pulôver.

Falam de poemas de ideias e resumos
com a roupa urbana bem justa
alongada sobre o corpo moreno
de sapato alto para subir e destacar.
Coxas que incendeiam a fotografia.

Da nudez captada pelo olhar
quando se vestia pela manhã
com as cortinas levantadas
pois com audácia digital da televisão
tinha aprendido as exigências do mercado.

Que se cultiva da abundante imaginação
das vendas paradas na loja de malhas
da torrada antes de saír de casa
já sem tempo nem alma para se arranjar.
A correr atrasada para o emprego.

A VIDA ETERNA


"Antes que eu rasgue estes versos
como quem rasga um vestido" Pedro Homem de Mello

Passeava descalça pelo mundo
pelos livros de vidro com morangos
desenhados e colhidos em Murano
comercializados com estilo em Veneza
sem um único corte na sola dos pés.
Passeava com um sorriso de escola toda.

Sem querer saber das igrejas profanadas
pelos guerrilheiros iluminados da razão.
Da excelência do marketing revolucionário
que garantia o melhor dos céus na terra
e a vida eterna na bala duma espingarda
para quem duvidasse de tamanha filantropia.

Passeava com botas e uniforme verde-oliva.
Esmagava as vidrarias e os morangueiros
altiva como os outros filhos da revolução
ao serviço do estado pai-benevolente
que por vezes tinha de usar o cinto-chicote
para o povo saber o que era o melhor para ele.

Diz-se que mais tarde quando sem botas
quis plebeia meia-nua voltar a andar descalça
como aprendera a fazer com a mãe-galinha
no novo mundo não podia porque os livros
tinham sido proibidos e o vidro derretido.
Apodreciam de podres as ideias dos inimigos.

ELECTRICIDADE DO PRAZER


"e o teu amor que espalha tinta"  Natália Correia

Era um vestido de água interior
lavado e tingido em tinta
doce por dentro e por fora
colado à noite na esquina
camisas estendidas sobre espelhos
das varandas com sardinheiras.

Diziam ser a senha dos amantes
a mensagem-morcego da sedução
no disfarce de canoas pequenas
nessa água onde dançavam as lobas
em beijos de teimosia fluvial-lascíva
provérbios que não os deixavam mentir.

Sejam a luz da alma o desígnio da palavra
da mímica do olhar reflectido na água.
A metáfora da nudez do vestido engomado
passado a ferro pela electricidade do prazer.

MARCAR O GOLO CERTO


"Um navio que não tenho
num rio que não existe"  Natália Correia

Gosto da dança dos tornozelos
e do baloiçar dos calcanhares
da pressão alta dos joelhos
e do voo planado dos seus cabelos.

Gosto de assistir de perto ao vivo
às surpresas do seu bom jogo
ir ao estádio por ela pela vitória
e sonhar sair com ela de braço dado.

De verdade verdadinha pensa somente
como driblar sem faltas as ancas
equacionar a leitura a olho desarmado
as linhas rectas e profundas do passe.

Estar à vontade a meio-campo
e remexer o figurino da relva curta
ser decisivo em plena pequena área
de baliza aberta marcar o golo certo.

Era junto das plantações antigas de algodão
ali nascia o nome de um rio que no verão
não corria para mim nem desaguava no mar
e nem tão pouco prendia o jogo do teu coração.

OS TEMPOS SÃO DE INDIGNAÇÃO


"e a noite cresce por dentro
dos homens do meus país"  Manuel Alegre

Lágrimas de basalto de calcário rude
do sal a mais mesmo sem água por perto
antes da idade de chorar a valer e de saber
que a época dos jogos no recreio acabou.

Poesia os tempos são de indignação
de não ficar em casa a ver televisão.
De sair mas não se sentar na esplanada
feito homem-cego à espera de ver o país arder.

Agora que as palavras perdem as ideias  
 a força e o perfil vertical que antes tinham.
- São banha da cobra e fast-food em promoção.

Custa aceitar irmão que as metáforas
que toda a vida tratei como nossas
secas já não sejam cumplices da ilusão.

LITURGIA DA CARNE PANADA


"Quero o teu nome escrito nas marés"  Manuel Alegre

Apesar de ter olhos e gostar de te olhar
não poderia imaginar que o mar atento
mais pequeno que na fotografia original
estivesse tão parado e tão calmo
no local mais improvável do teu porto.

Na liturgia da carne panada da marmita
transportada no xelim aveludado da biclicleta
novinha em folha no pão não havia melhor.
Só pensava em comer encher a barriga.

Tinha um laço na cabeça a prender
o cabelo com os brincos caídos a condizer
o cinto preto à cintura segurava o culto
passageira a saia curta era da mesma côr.

Do desígnio de deus e da filantropia do rei
do direito social à condição do contrato-promessa
e ao desporto a cavalo da nobreza sem tostão.
Com olhos de ver é bem melhor que a eficiência
a aliança estratégica do clero com o poder secular!

DESFRUTANDO O SOL


"Das minas do sonho a que descemos
mineiros sonânbulos da imaginação"  Alexandre O’Neil

A água de tão escura mais parecia
um corvo macho de asas abertas
recriando mensagens de voos antigos.
Momentos de outros olhos furtivos
que um dia se cruzaram a correr
na cidade portuária dos sonhos proibídos.

Eu fiquei sem saber se armazenavam
o perfume do pessegueiro em flor
com o teu cabelo castanho muito claro.
Sabiam que no sossego da noite
dormias no porão do navio parado no cais
do que seria a imaginação súbita do prazer.

Sem os dedos eu fiquei sem saber
se trocavam de mãos de propósito
pois tu gostavas muito de colher groselha.
Cá por mim deitado sol se tu deixasses 
gostaria de limpar os teus lábios frutados
e descansar à sombra com sabor a cerveja.

CORPO ACESO


"Uma palavra tua, uma só, e abandono tudo"
Casimiro de Brito

Havia desejos espalhados pela casa
quando na tarde de todas as preguiças
da cada capítulo plagiado do corpo aceso
na vila piscatória do teu peito arenoso.

Havia desejos em silêncios saciados
a rimar com a transmissão de rádio
na avenida do teu pescoço de antena
a contornar o teu flanco redondo.

Nos espaços do teu peito arenoso
avião costeiro do teu rosto lunar
em meados de setembro nada mais eram
que os nossos pensamentos em metáforas
perdidos no parque das merendas.

Na cidade do bar ao anoitecer
no desencontro infímo da sedução
brisas cálidas na lentidão do sol.
Os versos curtos dos teus olhos à solta
submergiam no ocidente das minhas mãos.

JUNQUILHO DE SAUDADE


As verdades verdes ramos dos seus dedos
entre o sol e o frio e o beijo apressado
com o queijo da serra e o contentor de calçado.
Por baixo da caixa o soutien em preto
novo paradigma na estimativa dos negócios.

Para isso descem ao fundo do canavial
junquilhos de saudade da transpiração.
Para lá das lágrimas os olhos meigos
da dor viúva de dália branca a fechar-se
sobre a ausência da sua própria vida.

Perto o anúncio luminoso era apelativo:
- esticar algumas peles mais enrugadas
e a diminuição do pneu no baixo ventre
novo desenho para o circuito motociclo do rabo
e a implantação de peitos mais abundantes.

Assim se conquista a alegria do protagonismo
se consolida a uniformização da imagem.
Bebem uma bica sem açucar para estimulo.

DISTẬNCIA DA GEOMETRIA


"Regressa, meu amor, é quase verão”      Rosa Lobato Faria

Era a lenha seca dos sentidos
no calor das minhas mãos adversas
o vazio fechado das palavras perdidas
na distância àvida da sua geometria.
A lua cheia na noite da negação.

Para resolver a nova equação
do seu dorso de fósforo a arder
um poema por deitar ao lixo.
Se dormias percorria-te sem horários
sem pressas nem compromissos.

Fazia como se estivesse perdida
que nem a minha língua falava
na ponte baixa do seu rio estreito
onde nem saber nadar era preciso.

Apenas queria escrever sobre as palavras
molhadas na imensa mansidão da noite
decorada com a fadiga que faz bem.
Verdade era a fotocópia do nosso amor.

IDADE DO SABER


"deixar que a tua pele me guie os dedos" Pedro Tamen

Talvez fosse dos aguaçeiros repetidos
do própio sol sentindo-se corno
de tanto esperar a sua vez de entrar
amolecer o pescoço e o resto
para depois vitorioso sair poder partir.

A verdade é que o seu corpo
está cada dia mais sedutor
e eu não desviava o olhar fazia-me
despercebida que não entendia.
Confesso não fazia nada para resistir!

Contava na mesa ao lado dando voltas
ao açucareiro à chávena do chá
com entusiasmo maduro mal contido
a bela mulher com idade e porte do saber.
Ouvia-se: chupava em seco cada desejo.

DORMIR A TARDE


"A história da noite é o gesto dos teus braços"
Sophia de Mello Breyner Andersen

Enquanto vagabundas as palavras
assumem solidárias as nuvens brancas
em silêncio as despedidas à poesia
acertam a hora com as correntes do vento
frases perdidas sem saberem da escrita.

Enquanto isso a pele azul do lago
a bater à porta por um primeiro beijo
transparente na margem se rejuvenesce
com o fogo nocturno da paixão.

Do milagre no outono da eternidade
na desordem errante dos sentidos
nos paliativos da meia verdade
e dormir pausadamente a tarde.

Os amantes sem jogos nem sinónimos
para cantar juntam para rimar 
os fios do erotismo do linho
ao verde da velha cama de pinho.

A mistura da terra com as cinzas
com as ruas limpas das carícias
da casa de todos os rostos
por fora dos novos caminhos
no regresso às colinas dos sonhos.

PAREDES DO TRIBUNAL


"e devagar tornei-me transparente"
Sophia de Mello Breyner Andersen

Escrevia nas paredes do liceu nacional
envolvida no disfarce e embrulhada
na túnica transparente da pouca sorte.
Aqui antes da morte ninguêm se rende!
E nem com deus o povo desiste!

Dizia com a alegria das certezas absolutas
enquanto extendia os braços à lua
pegava nas mãos da nossa negação
e com a ponta salgada dos dedos
fazia uma festa demorada de mar calmo.

De envelope e correio postal
quase em segredo espalhava
as últimas novidades do litoral.

Desde a fronteira entre o abismo
da bruxa descoberta pela bússula
até ao bilhete de avião por validar.

À noite cresceu ficou mais linda
no fundo dos seus olhos imensos
envolvia o verão de contentamento.

Escrevia a vermelho nas paredes do tribunal
exigindo a verdadeira justiça popular
nas madrugadas sadías do seu coração.

UM CORPO INCERTO


Um corpo incerto que parecia
vir a descer de pára-quedas
mesmo ao encontro do inferno privado
desse vulcão livre imoral e pagão
que não acorda nem deixa dormir.

Um corpo incerto seguido
pelos radares de defesa da pátria
caças de combate prontos a avançar.
As televisões interrompiam as emissões
colocavam no ar imagens não editadas.

Um corpo incerto desalinhado
vítima dos excessos da notícia
da busca constante do crime
que leva a privacidade à morte.
Os malvados só podem ser os outros.

Se fosse possível voltar atrás haveria
um inferno de pecados abençoados
uma cratera de bebidas e entregas
corpo de raíz que traria a vida de volta.

Um corpo certo de mulher em chamas
que nos chama para a cidadania da paixão
para a soberania da liberdade da escolha.
Arderia se não fosse de talha dourada?

ESPELHOS COSMOPOLITAS


Os bicos escondiam com amoras pretas.
sem tu saberes minha flôr
os espelhos côncavos e cosmopolitas
do nosso coração apaziguador.

Com a chuva impiedosa de janeiro
em interiores de sonhos incompletos
em ervas medicinais cobertas de seda
pelas escadas envelhecidas do tempo.

O seu rosto da dor mal se reconhece
não se sabe se é da tempestade de ontem
ou do pó fino do que resta da memória.
Se é da neblina da distància ou da escuridão.

Não sei se os teus olhos são resposta
se apenas uma pergunta deaté logo.
Sei isso sim que os teus lábios tão íntimos
nunca estiveram tão próximos do fogo.

HÁ UM OLHAR NOCTURNO


"Vejo o meu último dia
pintado em rolos de fumo"  Mário de Sá-Carneiro

Há um longo olhar nocturno
dos que nunca deixaram o dia
sintomas claros de salmoeira seca
com a tinta-da-china-mais-negra.

Sem os guardas dos bons costumes
doutores da revolução que descobrem
negando maresia desse mar riscado
que a culpa das desgraças e tragédias
é das carnes à mostra das mulheres.

Há um olhar nocturno infiel de injúria 
com as cores intensas do luto
da intolerância avassaladora do dogma
que nos deixa cada vez mais inquietos.
Saibam é que eu tenho vários filhos.

Que diram os poetas da poesia antiga
se soubessem pela vida ser preciso
escurecer a noite tapar a cara ensaiar a fuga
aos castigos-chicotes-da-punição-pública?

AO AMOR DA PEDREIRA


Por muito que custe escrever suportar
não se devem fechar os olhos
pedreira ao primeiro amor que partiu
com a aflição a rebate dos sinos
antes do profeta do tempo cantar.

Na cidade apenas frangos de aviário
galos só congelados ou no forno
modelo do corpo que antecedia a estátua.
Tinham pêlos a mais as irmãs-gêmeas
filhas paridas do peito da mesma mãe.

Muitas tetas e tanta noite louca tanto cão
à coca sim cegos da fome do apetite
pelo céu da carne no talho asseado.
Deitados como víboras no chão-das-putas
nas traseiras redondas dessa velha igreja.

Era em Amesterdão nas tetas do gado
e na libertinagem ilimitada das vitrines.
Dos excessos cometidos a estátua
foi removida pedra a pedra pela cidade.
Foi pintada e devolvida ao amor da pedreira.

ERA BONITA DEMAIS


"Lábios húmidos do amor da manhã
polpas de cereja”" António Gedeão

Era bonita demais para ter chegado
empoleirada nos postes de luz
dissolvida na floresta do passado
e arrastada pelo robusto navio mercante
com óculos escuros e rosto de meio-dia.

Trazida em pacotes de batata frita
bem ao gosto da multidão criadas de casa
com as asas do ferro pesado do delito
finança a mais e economia a menos.
Poesia hoje já ninguêm quer ser pobre!

Ele falava vários idiomas estrangeiros
pássaro tardío militar sedento de paz
de tanta batalha na folha de serviço
tanto homem tanta morte tão pouca mulher.

Do fundo da alma no confronto dos corpos
ouvia-se – tu falas muito acertas pouco
merda não comes nada nem ninguêm
nem peixe-faca corvina ou facalhão!

CHOCOLATE SE DERRETIA


"Desde que nasci que todos me enganam
em casa, na rua, na escola, no emprego, na igreja, no quartel"
António Gedeão

De longe pareceu que comia chocolate belga
com cheirinho envolvente a licor proíbido
anis azul de bordel a mais e avé-marias a menos.
Eram as fadas verdes dos artistas e dos pintores.

Deram agora lugar a mesas limpas sem moscas
bem comportados almoços de auto-estrada
para a rentabilidade objectiva da gerência com lucros
sem necessidade de recurso à fuga aos impostos.

Assim fossem as broas e e os pudins d'avó.
Sabia-se de fonte segura da decisão
pelo analista do risco a subir na hierarquia
de negar o pedido de empréstimo bonificado.

Este mau fígado da poesia de combate!
A culpa é do chocolate que religiosamente
que ela comia com um tal requinte feminino
comodamente sentada em frente ao retrovisor.

Daqui à distância de um olhar não sabia
devo dizer se era ela que comia o chocolate
se era o chocolate feito homem que a comia
e por ela e por dentro em fogo se derretia.

VESTIDO DA CIDADE


Importavam berinjelas de Goa
em vasilhas de vinte litros
mirra da terra da sabedoria
com promessas de canela e arroz-doce.
Ainda assim eram capazes de escrever
que as viagens com muitas curvas
não davam volta ao estômago.

Sabiam lá eles do que falavam.
Ficariam calados que nem mudo-azeviche
se soubessem como era bom andar
a subir e a descer e a contornar o perigo
das ravinas e alisar as quedas do tempo.
No fim descansar de olhos abertos
por debaixo do vestido da cidade.

Eram consumidores de fabrico artesanal
no jardim interior do prédio posto à venda
ao fundo do rio livre do pensamento.
Protegidos contra a falsificação da liberdade
da topografia do amor melro virtual
de basalto afastando os números da má sorte.
O mau olhado da noite na lotaria da vida.

Florista Polícia ou Sacristão


Era segundo o cobrador do gás
a neta mais velha da relação-solipampa
da feiticeira-tesoura da Praça do Chile
da capital sem fronteiras de Portugal
e do chefe-de-mesa da Galiza
do melhor restaurante da Corunha.

Livre e sabida solteira e sedutora
tinha a escola toda lá isso tinha
pois a professora do ensino público
metia baixa coitadinha na hora certa
para não ter a bruta trabalheira
dos exames nacionais no fim de ano.

Previa um futuro colectivo melhor
substantivo raro na história dos homens
para ricos e pobres magras e gordas
e sempre com um sorriso no olhar
que abria a carteira e o coração-cliente
fosse ele florista polícia ou sacristão.

LES FEMMES DE PICASSO


Talvez um dia seja capaz
de copiar em palavras
redondilha as curvas redondas
das mulheres de Picasso
na rua das laranjeiras de todos.

A geometria inicial do pescoço de girafa
a escadaria imperfeita que vai da boca
até à cisterna no meio das pernas
umas mais curtas outras mais grossas
a volumetria negra dos púbis.

Interpretar as mamas com história
muito leite de cabra virada ao céu
como se fossem pedras altas
prontas a enfrentar a história
pedras ou mamas a desfazerem-se.

Com a chama fria do Inverno
a negar as bombas-aviação sem piedade
a acertar contas Gernika com o passado
que condiciona as lajes do futuro
e os arquivos queimados da República.

LAS DONAS DE PICASSO


Reconstruir as mulheres redondas
corpos que apetecem mesmo tocar
na tinta com a ponta da língua
mexer com os dedos de esteira seca
maria de los remédios y hematomas.

Armar paredes à volta do chapéu-de-sol
pelas areias das praias da Catalunha
com o pincel e o mata-borrão
das metáforas malditas da censura
da liberdade que não se deixa vencer.

Com sombrinhas encarnadas
guloseimas ao melhor preço
das raparigas espalhadas pelas ruas
à espera de serem pagas para em permuta
serem as flores da primeira penetração.

Corpos áridos de balões de sopro
e do toldo alugado ao dia por Olga
com a pele branca e indefesa
as pernas do mel fácil de ontem
abertas ao rebuliço do formigueiro.

Do mal que faz pelo bem que sabe
o absinto a escorrer pela barriga abaixo
tremores dos pés do velho piano
da santíssima trindade e do chumbo de caras
do malfadado exame de álgebra.

LAS MUJERES DE PICASSO


Sem segundas intenções afirmava
que o pano que servia
para secar as mãos e a testa
poupando usavam para limpar o sexo.
Parece que as mulheres de Picasso
já sabiam se lavado fica como novo.

Desenhar as bocas cruzadas
no cabide tonto da luz de madeira
os beijos de falso marfim
pendurados no bengaleiro austero
na messe oficial da noite franquista.

Colava língua como ninguêm
com cuspo condimentado de carteiro
na nudez distante do modelo
os morangos vindos da Galicia
nos bicos carregados de begónia cansada.

Pôr o sol a brilhar no bolso na carteira
do cavalete entre as pernas de pau-preto
local onde as enguias acasalavam Pablo
por debaixo das intimidades precoces
da folhagem expessa verde do feijão.

Para ajudar a festa do polegar em riste
do giz a poltrona de Paris partiu-se.
Ainda bem que a areia do corpo dela
era macia húmida e acolhedora tão boa
como o sofá das tardes às quintas-feiras.

AS MULLERES DE PICASSO


Porcelana a perdiz azul-azul esguia
a saltitar ao espelho fazia lembrar
da antiguidade uma galinha-de-água
na sensual embriaguez Dora do ciúme
que o vinho francês multiplicava mais.

Era nos fortes cheiros que ficavam
notícia as noitadas das insónias repetidas
para provisórias guerreiros fazerem as pazes
e a perdiz rosa-rosa a penetrar-se de prazer
entre épocas e cubas cheias de uvas azedas.

Seriam musas das que falam pouco
e fazem muito da fase da tela para vender
no bar da invenção das virgens
com búzios e caracoletas a subirem
as costas de bronze as paredes do quarto.

Cama alugada com os maços de dinheiros
que ganhou no concurso de dança
do retrato moderno da princesa eslava
que trazia a luz curva pela mão tão amada
e valiosa pele de arminho sobre os ombros.

Budapeste   , 2010

3. HISTÓRIAS PÚBLICAS E ESCRITA PRIVADA




"Ele, num gesto último, fechou-lhe os lábios co'as pontas dos dedos, e disse a finar-se: — Chorar não é remédio; só te peço que não me atraiçoes enquanto o meu corpo for quente. Deixou a cabeça nas esteiras e ficou. E Ela, num grito de garça, ergueu alto os braços a pedir o Céu para Ele, e a saltitar foi pelos jardins a sacudir as mãos, que todos os que passavam olharam para Ela
Pela manhã vinham os vizinhos em bicos dos pés espreitar por entre os bambus, e todos viram acocorada a gueixa abanando o morto com um leque de marfim.


A estampa do pires é igual."

José de Almada Negreiros

Escrito em 1915.
Publicado in Orfeu n.° 1


NOITES DAS FLORES


Foi nas noites longas das flores
- era assim que deixava de ser puro
aos olhos das bruxas velhas
dias de luzes e gemidos contidos
da malícia finita e sedução de fêmea.

Com as luas no corpo e o sol nas pernas
as cebolas roxas de Sansão e Dalila.
Minarete talvez fosse um pouco bizantino
em pequeno insonso tinha sido mordido
pelo cão-patriarca do avô-templário.

Os olhos mortiços de aprendiz
princesas às ordens do deus colérico
de Medina e d'Avignon da santa fé.
As embalagens clássicas de pó-de-arroz
sacas e sacos de chá pau-de-marmeleiro.

Assembleias gerais legalmente manipuladas
accionistas referência em postura de camaleão.
Seriam os testas-verniz de contraplacado
de bocas bem ditas e ámen-convincentes
nas longas noites da negação das flores.

SEM ABRIR OS OLHOS


Mesmo sem abrir os olhos
deixa espalhadas umas pinceladas
na transpiração viva das cores
pelas altas temperaturas do alcatrão.

Ali onde às telas inacabadas
se acomoda o seu peito de pedra
em traços rápidos de mais unos dibujos
os últimos retoques dos corpos
para merecer um bom almoço contigo.

Mesmo sem abrir os olhos
recorria a todas as forças para decifrar
os segredos forrados de veludo
por detrás da sua janela fechada.
Sorriso ousado de trapezista sem rede
desenhado no dourado das cortinas.

Só muito mais tarde soube
mesmo sem sair da penumbra
que conhecia o histórico do seu olhar.
Os sinais da biblioteca o livro proibido
entregue por debaixo do balcão
por cima das saudades da tua mão.

À pressa a fugir dos olhos abertos
do competéncia dos agentes nunca ausentes.
Assim o calvário da liberdade
do mito da dita ditadura do proletariado
da vitória bruta do ferro sobre a insubmissão.

FOTOGRAFIAS DO PASSADO


Recolhe as palavras fechadas no peito
partilha a desilusão das falsas profecias
esquece os piolhos a caspa do louco
e divide o povo como pão das maresias.

Meu irmão torneiro-mecânico das minas
empregado ou limpa-chaminés do azar
personagem sem história nem televisão
um nada mesmo que tenha sangue e coração.
A não ser por ser sexta-feira e o gato preto
andar com as ingratas promessas da gata do cio.

Isso de lavadeiras a lavar com sabão
não passam de fotografias do século passado
como o operariado e sindicatos a sério.
Nos tempos da ditadura nas férias de verão
ia feliz à farmácia levantar o jornal
para ser lido na taberna-barbearia do meu tio.

À MESA DO GALIFÃO


Lenta vinha e mais fazia lembrar a lesma
pois incautos vivem condicionados
por tempos cada vez mais provisórios.

A gema d’ovo azul da pata choca
na lentidão de quando nada acontece
e dos teoremas dos novos perigos.

Do medo de ser caçada pelo cão
ser no mercado abalroada pelo sardão
pasto e ementa à mesa do galifão.

Lenta por baixo da galifoa da costura
costureira que belo par de marmelos
Nossa Senhora da Conceição!

Casou-se e nunca mais se calou
bem casada cheia de tesouras
tesouros e muita moeda estrangeira.

O médico marido trata-lhe da saúde
uma vez por mês ao espelho no dia certo
a ver se família acerta algum herdeiro.

Património há de sobra para desbaratar
mas para a vaca mal-comida nada lhe chega
tudo é pouco não se contenta com a mesada
nem com a carne de plástico do pavão.

ÁGUIA DO DESERTO


Transcrevo para as minhas palavras
sem recurso a metáforas trabalhadas
o que aprendi com a moça de Macau um dia
ao fim da tarde sem chuva em Bruxelas.

- Sabes uma águia pode voar
mais baixo que uma galinha
mas uma galinha jamais
voará mais alto que uma águia!

Queria apenas na urgência de um texto
de vão-de-escada ou de sotão desarrumado
re-inventado pelo gozo de estar contigo
regressar às fotos que amanhã nos esperam.

Saber dos teus dedos de azeite a frio
de um verde grosso que coalhava
que não cantavas nem te abandonava.
em silêncio nos teus olhos de verdilhão.

Eu meu amor com a tua permissão
temperava com vinagre para adocicar
para avivar os sabores do teu corpo.
No prazer do fogo minha águia do deserto!

QUEM MUITO DORME


Trocava as voltas aos bigodes da gata
que à esquina da lua nas barbas da chuva
fazia insolente negaças ao passado.

Se o coração de madeira a arder
palpita que nem uma batata frita
não compre no talho que não compensa.

Use pré-mastigados made in usa-europe
que fabricam à medida de gordos e gordinhos
e de borla plastificam camelos e barrigudos.

Se quem muito dorme pouco aprende
não te deixes ficar dormente à espera
que não há pão que não dé em fartura.

Não confundas a Vénus partida de Mileto
de perna aberta e maminha ao céu
com a ninfa da ilha por cima da rocha.

HÚMIDA NAS MARGENS


Por baixo do frio da noite
do idioma mal-conhecido da pele
o rio já não corria para a foz
com a metáfora do nosso mar
que seria húmida nas margens
estranhamente seca na fenda.

Sabe-se que para fazer bem
era preciso arder fazer doer
e depois caminhar devagar
andar sózinho durante horas 
para bem-aventurado mais tarde
ir até ao bar mais próximo.

Depois de uma caneca de cerveja
voltar à rua inspirar e sentir o vento norte
olhar o frio do rio feito pista de gelo
respirar e ouvir propostas indecentes
e só pensar em a surpreender com flores.

Cansaço erotismo alguma criatividade poética
mas que importância tem alinhar as palavras
escritas como festas que se sentem no rosto?
Assim não nem de veludo há cabra que resista!

BAINHA DA ILUSÃO


Apesar da chuva a gabardine
estrategicamente aberta
mostrava as pernas perfeitas
aos que aquela hora ali passavam.

Nem a chuva oblíqua
de que escreveu Pessoa
ganhou coragem para as tocar
nem os olhos do homem
que matinal passeava o cão.

Nem mesmo quando este
rafeiro e matreiro juntou o pêlo
à pele brilhante das meias de vidro.

Ao mais simples cidadão
pareciam porcelana oriental
humedecida pelo bafo do passeio
pela vidraça oculta molhada
pelo culto divino do pecador.

Que vergonha! Ficou noite clara
quando cruzei o meu olhar
com os olhos do dono do cão.

Continuamos em frente
vontade de deixar a imaginação
a dar cavalos e força ao motor
projectos para a bainha da ilusão.

GUEIXAS E CONCUBINAS


No oriente as gueixas e as concubinas
estudaram aprenderam e cresceram
acabaram o liceu a escola superior a universidade.
Hoje em vez de servirem chá com panos mornos
em salas climatizadas montam micro-processores 
computadores montam tudo as papoilas.

As de cá chapim de pernas mais altas
fúcsias tristes com ramos de laranjeira 
em terra azul seriam aves com asas de borracha.
Anjinhos a ponto cruz bordados ao pé da sé
na toalha branca da mesa de jantar devagar
mas sem emprego alfacinhas não montam nada.

Em vez da farinha de trigo longe das searas
do vinho das uvas da vinha do médico
do azeite virgem do novo olival de van Gogh.
Acredita girassol foi a orelha direita
que já nos baldíos dos caminhos da morte
ofereceu a Rachel a puta amiga do bordel.

NAMOROS À CONSIGNAÇÃO

                                         A Leonard Cohen

Os dedos viajavam sem eira nem beira
por cidades vilas e outros lugares ermos.
Pelas ruas mais improváveis da alegria.
Continuavam pelos ombros a descer
até pararem no descampado da planície.

Continuavam a subir pela montanha acima
montados em bicicleta de competição
observando as marcas do assalto nocturno
deixadas ali por bandidos de lábios abelhudos
quando a maioria dormia que nem uma pedra.

Com receio da opinião pública juravam
que já não podiam com uma gata pelo rabo.
Dedos cinzento-escuro de tanto cigarro
gengivas castanhas apesar da escova
da cara cuidada e al dente da pasta italiana.

Dentes de lactícinio de tanto chocolate
comidos para ajudar a passar o café do tempo.
Do farnel de tanta azeitona preta para recordar
o local onde foram abandonados sem remorsos
no primeiro passeio dos namoros à consignação.

HOSPITAL PÚBLICO


Vinha sentada no autocarro
atrasado por causa do trânsito
que o carro tinha ficado em casa
mais barato e menor a poluição.

Vinha sentada no autocarro
junto à janela e era tão vistosa
que até de longe sem olhar se sentia
a pressa de chegar introduzir o cartão.

Entrar ao serviço e acompanhar
a primeira visita médica do dia
no hospital público da burguesia de Buda
que do luxo e bem estar privado parecia.
Quem não tém cartão usa a combustão.

Aconteceu no cruzamento tripartido
entre muito automóvel a passo curto
malabarismos de autocarros à pinha
e a curta-metragem da imaginação.
Novelas de encantamento e sedução.

SOBREMESAS EUROPEIAS


Depois de um bom Sholet e um tinto Villányi
com o Luis (Madureira Pires) no Fülemüle*

De algumas conjunturas e video-conferências
soube do especialista que aquelas personagens
vinham directamente do tempo em que os ilhéus
ignoravam o desenvolvimento regional estruturante.
Sem os custos da insularidades nem subsídios
e solidariedade para reforço da coesão nacional.

Vinham e traziam para vender no mercado mundial
com qualidade garantida canela bastante em tijolos
cravinho aplicado em palitos no toucinho magro
e aos sábados condimentavam as patas de ganso.
Enriqueciam a ementa com nóz-moscada e pimenta
enquanto serviam as mulheres como contrapeso
entrecosto para as sobremesas das elites europeias.

Agora é a hora dos cremes dos novos mercadores
plebeus que andam de comboio e também de metro.
Os de outrora mais classissistas deixavam os camelos
e os cavalos com corridas por ganhar a descansar
a fazer em frente ao antigo palácio do imperador
e é hoje residência oficial do presidente da república.
*No mês anterior tinha sido no Carmel

O MOTORISTA O MENINO E O SINDICALISTA


A Cseh Tamás, muito mais que um cantor
e a quem já em 1982 escrevi em texto que começava
- Vá parte o copo Tamás, vá lá parte os copos!

Ave ausente a irmã gémea era mais discreta
mais siléncio por isso ninguêm se lembra dela.

A mãe-flor afinal em vez de cravo encarnado
já um pouco murcha era malmequer de estufa
com beiços muito pintados para compensar.
A língua azul de ladrilho ou azulejo nacional
de vaca tresmalhada porque o funeral inoportuno
lhe estragou a ida à ópera com os amigos.

Não podia ter morrido um dia mais tarde?
Fazia alguma diferença? Estes indígenas!

O menino precoce socialmente comprometido
quando for grande será libertário como é tradição
na família e da escola dos intelectuais em Paris
com o coração à esquerda e canivete a carteira
bem recheada no bolso da camisa à direita.

O menino de oiro formatado em tapas e mapas
e em ciência politica ficava parado à espera
- com uma grande carreira à sua frente.
Esperava coitadinho que o motorista
lhe abrisse a porta e ele saciado de mansinho
finalmente pudesse abancar o traseiro.

O sindicalista reformado que continuava
com o hábito saudável de não se calar
e mandar à merda com todas as letras dizia

- Olha lá! Foi para estes meninos-tótós
copinhos de leite aquecido em micro-ondas
que corremos com a ditadura fizemos a revolução?

AVIÃO AEROPORTOS E ALGUMAS HOSPEDEIRAS


Arturo (Portuondo) Carlos (Sánchez x 2) Daniel (Mañana) Guille (Blanco)
Jorge (Bernal) Ricardo (Farrú) Victor (Medina)

Saudades de quê? Das noites com chuva a mais?
Da despedida para sempre da minha aldeia?
Da catequese voluntária e a primeira comunhão?
Da vida pela causa e da saída do adeus definitivo?

Saudades de quê? Do taller literário dos amigos no exílio?
Das viagens de comboio e algumas de avião?
Do sorriso onde se metia a libertinagem marota?
Das manhãs com aguardente para passar no exame?

Passar a dor de cabeça porque no Hary à noite há mais?
Passar o meu coração à sua legítima proprietária?
Saudades da única tarde do primeiro milésimo de beijo?
Todas as noites e dias as alegrias que vieram depois?

Da visita obrigatória à feira das farinheiras curtidas em casa
dos queijos de cabra curados fortes os cheiros e paladares?
De algumas vaidades à mostra a falar alto a dar nas vistas
à custa do prestígio do passado da sagrada conspiração a três?
Do avião aeroportos algumas hospedeiras e muitos comboios?

Do indicador direito a indicar o caminho errado do cais
a insolvência da idade e a coerências das calças cingidas
a evidência do tronco liso da primavera de peitos à solta
- Diego sem música acima da nascente da reserva protegida?
De incêndios e invasões militares o inoxidável do pescoço?

Não. É o caos pré-programado pelo cálculo da álgebra
a côr do nacionalismo que pode ser preto como castanho
vermelho como côr de metal e ás vezes de olhos em bico?
Quem não têm cão caça com gato e escreve para esquecer!



A PELUDA DE VARSÓVIA PORTUGUESA


A José de Almada-Negreiros

Na hidráulica do pensamento chupa-perfeito
que se quebrava ao sentir próximo o peso da morte
a poção de veneno para trilhar o caminho do poder
era mais nem menos que a cartilha magna da bosta
de boi agora baptizada competividade bocal-dentária.

Oficial enviava telegramas encriptados ao quilo 
sobre as perpétuas que cresciam indiferentes 
à penúria engajada das camélias do bairro anti-social.
Da renda mensal e as rendas íntimas do Vístula
e do condomínio dos que tinham muito cacau.

Particular escrevia à mãe do colesterol elevado
da prima gioconda pois mina lisa minha irmã
dela era propagandista dizia vegetariana militante.
Para nosso penar a peluda de Varsóvia era portuguesa.

Entre o requinte e a elegância titular e vozeirona
a senhora era a mais ruidosa entre os homens
e a mais avantajada entre as mulheres.
Sentia-se a meio-palácio que não era dali.

Na cidade de Szpilman do café Sztuka e de Chopin
da Igreja Católica do povo têm alguma importância
interessa a alguêm quem era esse queijo amanteigado?

O COXO CARTESIANO E A DULCE DULCINEIA


Tudo aconteceu num instante de alta cilidragem
estavam mortinhos de sede, parou de repente
como se tivesse levado um valente coice dos cavalos  
entre a berma do viaduto e o separador de cobrição.

Resultado de um furo violento nem artesiano
nem cartesiano como gostava de sublinhar
doutorado na Sorbonne e de matemática sabia
que dividir por zero o poderia levar ao infinito.

Na esperança com a ajuda de deus e da física
de fazer parte clube dos que citam Aron e Barthes.
Ela doce de bolo de bolachas bem se fez ouvir
saltou mesmo sem praga que nem um gafanhoto.

No momento seguinte estava dobrada
não para escrever um poema no asfalto
mas leoa sobre o macaco para mudar o pneu.
A velha Europa farta de guerra fria agradeceu.

Um mulher deste calibre é um diamante
com rimas na cabeça talento e força nas mãos
assim podem ir de carro até Caracas a Hong-Kong.
Ele se não fosse ex-professor seria cosmonauta.

Piloto-aviador em honra das sardas sardentas
da mocinha que viajava horas e horas e vinha
só para o ouvir falar da metafísica e de Descartes.
Quando se punha inocente e ousada ao seu colo.
a perna mais curta tremia que nem varas secas.

FALAVA COM A BOCA CHEIA


Cuspindo comida e gafanhotes
transpirava banha e confiança
sardão era daqueles que se metia
com tudo no meio da estátua viva
sentada à sua frente bem comportada.

Peitos volumosos e paradinhos
rabinho redondo saliente e retocado
não havia nada nada para deitar fora
deitar só com ele anunciava vencedor.

De calendário boca de tão apetitosa
mais parecia um quilo de cerejas maduras
sainha curta levantada e apertada
é agora é desta sentia lá se vai o coração.

Esbracejava da expessura dos seus braços
dos seus músculos de partem tudo
da largura força armário dos seus ombros
misturava no intestino grosso a carne
mal mastigada com cerveja da Baviera.

Falava comia com a boca cheia
e enquanto ruminava à bruta
deitava-lhe uns olhos deus a valha!
Nem navalha tinha nem a astucia de David.

Provavelmente seriam apenas
mais uns estalos que roupa tão boa
tanto tempo a fazer menos de nada
no ginásio piscina solárium pelas curvas
tem um preço minha cabeça de galinha.

O EXEMPLO DO PAI


À luz do dia tinha uma compressa no joelho
às escuras uma mais acima fundas feridas as duas
associadas às lágrimas verdadeiras vindas da alma
do ventre da planície e que ninguêm pode acudir.

Até um cego quanto mais as colegas a quem dizia
ter tropeçado na cozinha sobre um frasco partido
e ao caír o vidro ter-se espetado até ao osso.

Não não foi! Diziam entre lamentos e um gozo
mal contido no cabeleireiro as colegas do trabalho
de longe a mais linda com sucesso entre os homens
que paravam para ver e muita inveja nas mulheres.

Foi um pontapé mal parido quem diria!
Sempre bem vestido bem barbeado delicado
com modos de gente fina lidera a empresa
que tinha ganho o prémio do melhor empregador.

Estava convencido ao crescer tinha aprendido
com o exemplo do pai que quanto mais castiga
mais submissa fica dependente mais dele gosta
depois do sêlo garantia do prazer acrescido.
Nunca adormece sem a ter levado directamente
do    inferno ao gozo do único paraíso que conhece.

PÉS DE BARRO E INICIATIVA PRIVADA


Reformista na aplicação cautelosa da lei
em vigor e do primado da iniciativa privada
molhava os pés de barro no poço
que se desfaziam em lama e orçamentos.

Foi quando a imperatriz coberta de ouro
e de safiras se pôs de pé a negociar
o que lhe restava dos rubis e esmeraldas
e pelo peso devia ser uma boa dose.

Vinha apenas embrulhada num cobertor
porque o lençol e a camisa de dormir
tinham ficados sujos outros tempos
com as marcas certas da mensalidade.

Receitas decantadas de caminhos fáceis
de respostas redondas e evidentes
sempre em nome dos interesses do povo
como pacotes de TVs em sinal aberto.

Em nome da inovação dos tempos modernos
dos produtos financeiros que nos afogam
rupturas e derrames trágicos de crude
de pretensos geniais de fraldas sem cú.

Dizem que os deuses se sentem envergonhados
traídos por alguns sacerdotes que passam a vida
a pregar fruta natural e hortaliça fresca
e só se contentam com a carne mais tenrinha.
Será que com terços e avés-marias serão perdoados?

PRAÇA DO TEMPLO


Ao entrar na praça do tempo sagrado
acalorado quase desfalecia de emoção.
Estava finalmente onde sempre sonhou estar
ali junto às colunas decoradas de toscana
muros ladrilhos e paineis da renascença
história de pedras de talha-mar das palavras.

Faziam sem comissão apenas por amor
pedreiros livres que nunca dormem.
Com palavras mansas esperam deixam
os que não são adormecer e combinam
debaixo do alpendre taxímetro da partilha
os sofás e outras cadeiras almofadadas.

Seria possivelmente um pensamento
de ontem a telha-vã sobre barrotes ripas
pelas costas direitas dos irmãos.
As vigas do sonho inútil de imaginar
acreditar em caminhos mais amplos
uma manhã mais clara e talvez mais justa.

Se insiste muito as fantasias acabam depressa
não com pedra dura de ébano nem tão pouco
com um habano puro incluido no preço.
A recepcionista foi contratada para isso
lá onde o amor se faz em salvas de prata
e se desfaz em pinças de escorpião. Que merda!


Budapeste. Baleal, Lisboa e outras cidades. 2010