sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

3. PRÓXIMA AVENTURA DIURNA


“Eu escrevo versos ao meio-dia”
António Ramos Rosa

PARA A CIDADE NÃO ADORMECER


Haverá um dia bem sei
em que partirei de vez
e no meu coração quase seco
em mim tu partirás comigo.

Não sei se será logo na manhã
das horas refrescantes da maresia
se será pelas horas quentes
do meio-dia da vida lá fora
ou no interior da casa alugada.

Se será na calmia da noite
depois do trabalho o banho tomado
dos filhos todos na cama
as janelas abertas ao prazer
a falar em voz baixa
para a cidade não adormecer.

Haverá meu amor um dia
mesmo que não queira
em que terei de partir dizer adeus
e na ilusão virás comigo
nos recibos já pagos do sonho
que cresceu nas nossas mãos.
O último, o nosso primeiro património.

ENTRETIDA COM OS LOBOS


Ligeira e leve como o vento
salta à corda sem parar
a ponta atada à torre da igreja
entretida com os sintomas dos lobos
daqueles que só sabem fazer bem.

Salva de vez salta em declive
sobre os troncos de prata da caridade
das moedas recolhidas para os pobres
calor que refresca a casa fria
desse julho onde a superfície se inunda
do axioma, a profundidade do olhos.

Desconhecida solta o sonho alheio
talvez se arranje como uma galinha recheada
de condimentos e pão-ralado
comida à medida da mesa-de-cabeceira.
Esta semana a maior oferta da paróquia.

Solta das amarras das profecias modernas
desce a corda com cuidado pelo escadote
de metal do carpinteiro saltimbanco
que lhe faz a cama e para não ter medo.
Pega-lhe a cintura e salta com ela.
Salta para a outra margem do mundo.

CULTIVAR A ETERNIDADE


O seu sorriso de bronze
que inexplicavelmente se misturava
com o estanho colorido das nádegas
os dedos que recriavam o centro da vila.
Com as pontes antigas de pedra
das visitas guiadas a pé
pelos jardins privados do hospital militar.

O seu sorriso de prata
fetichismo visual adorno jovem
das nódoas no rosto mais lindo
iluminado a velas de cera
pelo perene chamamento da noite.
Chegava de manhã transpirada ao trabalho.

Sorriso polido pelas ferramentas
pelas luvas que protegiam as mãos
nem sempre fortes às vezes ousadas
na boa-aventura de quem gostaria
decifrar os segredos da soberania.
Recordar a primeira planície
para cultivar nas calmas a eternidade.

LONGE DE SABER OS SEGREDOS


No início longe de saber os segredos
da lua cheia para quem pensava
em se amar até ao último dia
e se prender na transparência dos fios.

Não era por causa dos convidados
contentes com a qualidade do serviço
a discrição perfeita dos olhos gratuitos
a postura doméstica dos criados.

A tensão que se sentia e perturbava
vinha nos troncos e nos braços dos cedros
para a construção a crédito do palacete
importados directamente do produtor.

Acasalavam-se nas águas da trovoada
nas brincadeiras sem fim das metáforas
com perfumes de ricas herdeiras
de areias douradas trazidas pelo vento.

Finalmente já muito perto de se saber
longe dos olhares curiosos e timídos
que na lua nova ou na lua cheia o amor
é o arquitecto paciente de todos os dias.

PRÓXIMA AVENTURA DIURNA


A água em cascata caía
sobre a pele de pedra verde
inesgotável intensa e acessível
sobre a barriga do mundo
que o poeta da ilha cantou
antes da falsa avaria do helicópter
da violação do espaço dos sentimentos.

Da mentira da noticia de abertura
num tempo que seria muito melhor
viver trabalhar e escrever
com as mãos pegajosas dos amantes.

Próxima aventura diurna
sem saber de patriotismos a vulso
a água em cascata caía doce
sobre os lábios molhados do bosque.

Mas quem sabe dar beijos assim
está livre de multas e coimas
de diplomacias de castigos corporais
está autorizado a pôr as mãos
as mesmas mesmo por limpar
em qualquer enseada do seu corpo.

PARA ESCREVER DO AMOR


Sabes para escrever do amor
que senti e que sinto por ti
para te descrever não preciso de ler
te designar interpretar os sinais da luz.
Não preciso de inventar nem de partir.

Basta fazer como hoje
com as aventuras do quotidiano
os automatismos que cansam.
Assumir a monotonia das semanas
que ilumina e supera as dúvidas.

Preparar os filhos para a vida
que é tambêm a nossa a prolongar-se.
Chega pensar na negação da morte.

Até porque se não fosse por ti
se não fosse por vocês diz-me
que andaria eu a fazer por aqui?

AREIAS PARA QUE SEJAM


Sem ler o texto a roda-pé
as instruções na planificação do sonho
sem medo nem consentimento
buscava em alvoroço para os dedos.
Os caminhos que levam as uvas
até a mulher dos seios de palha.

Pelas íngremes curvas fechadas
sem parar até à pedra fria
das coxas com sal a mais
transportadas no porão do avião.
Marinheiro sentia como ninguêm
na vertigem do naufrágio.

Para nós a vida fica redonda
junto ao muro na geometria dos pátios
e alguns rios do paraíso.
A sedução que não se acaba
quando os olhos que se conhecem
combinam discretos com a noite.

Depois em contacto com esse amor
infinito e irreversível escrevem do mar
da baía de linho, do céu dos joelhos.
Areias salgadas serão para que sejam
o próximo encontro na pedra
que aos poucos se desfaz em erosão.

COMO O ETERNO É MORTAL


Para interpretar as pedras anteriores
da subjectividade da história
da convicção inabalável dos deuses
fragilidade imperial do tempo
como o eterno é efémero e mortal.

Pela primeira vez na minha vida
à sombra das tílias passeava em Berlim
com as dioptrias dos meus óculos
que ajustava para ver melhor.

Imperial em Portugal é boa cerveja
ali caneca maior era ainda melhor
nem esperei pela argumentação do sol
da colecção das bases para os copos.

Ficou a lição da diversidade
que entendi por bem sublinhar
diluir com uma dose servida de paixão
e embrulhar em metáforas de gratidão.

Depois de tanto tempo parada junto ao rio
usava o sabão azul para despegar
o musgo agarrado aos joelhos
empenhada na pureza das margens.

Para limpar a alma até ao fim
usava o esfregão de arame com areia.
A hidráulica simples do seu sorriso
cruzou-se na irrigação dos canais de madeira.
Ali ficaram abrigados da chuva inesperada.

QUEM LHES DERA PROVAR


Quem lhes dera poderem provar
os queijinhos frescos de cabra
que submergiam o relevo
e acentuavam a morfologia.

Musgo nas pedras enfeitadas
que séculos depois talvez fossem
classificados de bustos e monumentos
património mundial do queixume.

Templos de tempos sem produtos
sem tempo para festas populares
pastores a pastar bezerros mansos
tão ao gosto doscapatazes.

Coma a bela Salomé a dançar
a melhor dança do ventre à mostra
um exclusivo do jovem rei republicano
que guardava as ilhas só para si.

Salmos provérbios e bom augúrio
de Mileto grávida de três gêmeos
todos rapazes dois de gesso
e um o último de ferro-forjado

Por muito que doa dizer
a infelicidade é uma das almas
que o sonho a vida finita
com gosto habita e escurece.

AS PALAVRAS DESFAZEM-SE


Caminhando pelo museu
observando o passado
anotava no papel amarrotado.

Sitiados na cidade os defensores
argila do rio de barro fresco
das redes do sistema defensivo.

Defendendo como ninguêm
como se fossem o último soldado
dessa razão que nos assiste
se fosse justo pensar assim.

Os nomes e os homens passam
e as palavras desfazem-se
na escuridão das ideias
no texto aldrabão da distância.

Enquanto a igreja sábia e previdente
decepava os sexos das estátuas
não fosse o diabo tecê-las
dar-lhes vida e sentimentos.

Com tanta fenda por aí
tanto telhado virgem de vidro
seria o bom e o bonito.

Nas acessibilidades da morte
no erro da avaliação do futuro
nem a escrita me faz imortal.
Mas é por ti que eu escrevo
é para ti a poesia.



Budapeste, Istria (Croácia) e Berlim, 2009
(Projecto – AS PALAVRAS CONTINUAM)

PALAVRAS À LUZ


CONTEMPLAÇĂO A TRÊS: DO CÉU DA LUA DO SOL
Às minhas filhas Gabi, Anna e Marta.


SETE ALIMENTOS DA TERRA - SETE PROMESSAS



DA ÁGUA ATÉ À LUZ : NOVE ELEMENTOS



Pedro Assis Coimbra. 2007-2008
(Projecto - AS PALAVRAS CONTINUAM)

1. CONTEMPLAÇĂO A TRÊS: DO CÉU DA LUA DO SOL


Às minhas filhas Gabi, Anna e Marta.

DO CÉU – INTENSA A LUZ DO CÉU


Quando intensa a luz do céu
iluminou as portas fechadas
junto às pontes de madeira
dos mastros do pensamento.

Recordei esse beijo de biblioteca
framboesa de cultivo delicado
e do livro que conta o segredo
da origem das chaves do céu
guardadas no cacifo de Pedro.

No céu de palácios suspensos
à imagem de coisa nenhuma
eram pontes portas e chaves
prados de papoilas e margaridas.

Janelas decoradas de giestas
para a salvação do Filho de Deus
celebrada com harpas e violinos
madalenas ousadas e alguns pecadores
na corrida ao ouro dos mal-amados.

Na contemplação furtiva do amor
olhos que iluminam a escuridão
com a cor que o céu espalha
e a luz libertadora da erva-sidreira.

Senti os ventos das palavras de Pedro
que traziam parábolas e metáforas
que atento o povo ouvia e seguia
quando à sombra de cedros e oliveiras
indicavam o caminho da alegria.

DA LUA - LINDA A LUA DESCE A RUA


Linda a lua desce a rua
lisa e nua lua tão bela
e baila lamparina linda
bailarina bailarina
sobre o rio com um fio.

Vai mais linda vai mais bela
no baile de rio sadío
no fio do amor de safío
pela rua com a lua.

Baila linda bela bela
como a luz forte da lua
que ilumina que ilumina
dentro da mina perto da rua.

Lamparina e candeeiro
mensageiro do coração
mel de princesa rainha
da ilusão do tempo inteiro
água lisa nas mãos da rua.

Linda de mel do mel
pois mel-linda lia lia
vêm mais linda vêm mais bela
baila baila bailarina.

Lia que queria e não sabia
ler o livro ser tão bela
era melhor Raquel que ela
mas Lia sorría sorría
feliz do país que tinha.

Sabia o seu tempo já era
de Raquel nova rainha
plebeia nua como a rua
caminhando pelo rio.

Véu aberto água lisa
veste linda o céu tardío
boca azul nas mãos da rua
vai mais linda vêm mais bela
a bailarina feita rainha.

DO SOL - FORTE O SOL FOI SUBINDO


Forte o sol foi subindo o tempo
devagar sem pressas até tocar
os muros as paredes da vida
com todo o tempo do mundo
como diria Gaudi de Barcelona.

Ao de leve com as palmas húmidas
as pontas das mãos nas pedras
quase secas nas areias douradas
do caminho marítimo desconhecido
até ao grande mar azul escuro
ao prefácio do sol na boca pintado.

Esse sol distante do pensamento
do calor intenso de diamante do mar
pérola brilhante daqui desta margem
com todas as palavras perenes
a claridade que indica pacientemente.
os vocábulos que da luz transparente.

Com o sol suavemente aquecendo
as costas esquecendo os ombros
misturando a vontade divina
com a simplicidade dos homens
no desejo de alcançar a vida eterna.

Pois esta chega do sol na paixão
com a brisa salina da madrugada
com a humidade espelho da prata
quando o sol fechado se faz escuro
e difuso pela neblina da felicidade.

Troca as urtigas das utopias
pelos tapetes de nuvens e lírios
que ao sol crescem ao sol recordam
ao sol desejam ter sol no sorriso.
De terem escritas nos rostos claros
as tardes das palavras mais lindas.



Budapeste, 2007-2008

2. SETE ALIMENTOS DA TERRA - SETE PROMESSAS

AZEITONAS

(Com azeite no prato azeitonas no pão)

Oliveira em flor do alentejo rural
oliva raiana junto à fronteira
do nordeste frio que arrefece
e diz-se que olívia era tradicional.
Gostava muito de refrescar a pele
na acidez do azeite extra-virgem
se perfumado com alho esmagado.

O tecido fino e suave no corpo
de paladares e gostos simples
que afinal o seu prato favorito
era comer pão de trigo já duro.
A pele dura como o pau às fatias
remolhada em azeite aquecido
sobre o tampo largo e liso da mesa.

Em tempo de ser comida sem pressas
no pratinho de barro bem azeitada
que era o melhor petisco que havia
Olívia no início da noite mais longa.
Limpava com os dedos com a língua
por isso chegou ao largo tarde demais
à procissão da paixão do menino.

Com o atraso da promessa por pagar
perturbada deixou a gata aluada em casa
e mal vestida mal comida mal amada
veio para a rua do oriente do sonho.
Passear devota quase nua no olival
com ramos de oliveira nos cabelos.
Com azeite no prato azeitonas no pão.

CEVADA

(Porque ali diluída a cevada)

A escrita é feita de sonhos
de audácias descontínuas
nas supresas dos sentidos.
A escrita é feita de silêncios
de frutos e pensamentos maduros
fruta verde colhida à socapa
sem ser acusada de ladra.

Na arca guardada das palavras
das ideias ao alcançe das mãos
na imperfeição recolhida nos textos
das vozes pela viagem da erosão.
Na luminosidade próxima dos corpos
parecia ser das mágoas da canção
ainda do tempo de águas antigas.

Porque ali diluída a cevada
e na eira a secar a castidade
criada para bebidas sagradas.
As promessas de povos escolhidos
faziam lembrar a primeira madrugada
escritas nos novos textos das searas
mesmo mesmo à entrada da cidade.

FIGOS

(os figos ainda quentes)

Antes do naufrágio virtual da história
do sonho da ilusão do século anterior
e para não ter que interpretar
as desgraças tardías e algum bem fazer.

Analisar com o cuidado da geografía
cada uma das palavras desenhadas
fora da página e do contexto da quinta privada
o mapa das alegrias de trabalhador que aprende.

Para surpreender cada metáfora distante
mesmo se na tarde fría mesmo se toda nua
desnudada na luz intensa dos sentimentos
no abandono que anuncia desejada a escuridão.

Deixem-me ficar de boca fechada
como se estivesse ainda debaixo da figueira-mãe
na sombra da minha escola primária da Portela
entre a ala das raparigas e a horta da Faustina.

Comendo sózinho sem fome nem pressas 
os figos ainda quentes lavados e limpos
nas palmas das mãos e nas calças pelo cuspo
antes de passear a dois até ao inverno do cais.

Sei que trocariam a longevidade dos sentidos
a forma do vento norte pelo colorau em pó
feitos à medida das águas da minha sorte
do milagre exacto na marginal dos teus lábios. 

Escrevem que há sapos no lago sem fundo
persiana opaca feita de flores aquáticas
daquele que foi amor à primeira vista
pelas sapas dos olhos sapudos de Voltaire.

ROMĂ

(lá na Terra Prometida)

Quando em casa à sobremesa
em vez de gelados ou chocolates 
com golpes curtos seguros e breves
abria uma ou duas romãs que dividia
em partes quase iguais pelos seis.
 
Romãs compradas no mercado
importadas da Itália ou da Turquia
solene dizia como parte da cerimónia
- não se esqueçam que a romã
é um fruto bíblico do Antigo Testamento.

Quando penso nas romãzeiras
primeiro em flor depois carregadas
dos seus frutos tão belos recordo
se as lembranças não me enganam.

Na ldeia onde nasci não havia 
frutos mais vulgares que as romãs
marmelos e figos eram os frutos do povo
todos podiam colher e comer logo ali.

Mais tarde imagens da ousadia juvenil
logo depois do mensageiro da salvação
escreveram sobre tintos muitos maduros
do profeta junto ao Muro das Lamentações
lamentam a taça perdida do vinho do passado.

O encorpado vinho de romã do Rei Salomão
que aumentava a fertilidade da terra
a desejada mãe lá na Terra Prometida
prometida a muito mais gente
que a lotação máxima permitida.

Graciosa despia-se sem pudor
junto à torre à praça-forte do sentinela
na encruzilhada dos dois rios muito famosos
um Tigre salgado e um Eufrátes mais doce
para adocicar na pele os desejos do prazer
e guardar as roupas para o dia seguinte.

TĂMARAS

(menina linda nome de tâmara)

Ainda agora meu amor
no largo dos sem destino
nem fado nem abrigo
tantos séculos depois

citam textos antigos
dos livros mal guardados
roubados ao alfarrabista
antes das cinzas eternas.

Mil milhares de formigas
peregrinas e devotas
caminham indiferentes
às armas dos salteadores

pelas pedras do caminho
indiferentes às feridas abertas
à negação profunda da vida
caroços verdes das tâmaras.

Na terrina terra de xisto
sobre a mesa decorada
em pequenos potes de barro
mel de pétalas das flores

onde se lava levanda
da poeira branca da tristeza
e do pó preto da alegria.
São em si a própria vida.

Inquilina do meu coração
ressalva doce em roda-pé
epílogo e dia de semana
te recordas das tâmaras

no sonho em chávenas de café
que algum dia pude provar
pois não há quem te não queira
menina linda nome de tâmara.

TRIGO

(Na esquina do trigo da manhã)

Na esquina do trigo da manhã
ao longo dos seios femininos
com ousadia o corpo baloiçava
com ritmo e evidente bom gosto.

Com o canto alegre dos pintassilgos
bandos que povoam as searas.
Baloiçava à esquerda e à direita
melhor que os cabelos do vento.

Seios de terra castanhos claros
talvez brancos por fora
brancos da blusa côr de trigo
da côr das mãos ali esquecidas.

Na demora prolongada da noite
a máquina de lavar roupa
moderna não parava de trabalhar
com detergente e amaciador.

Os seios esses repousavam a casa
pratos de comidas para pássaros
onde se amacia e se embebe
o trigo ou o milho ainda por apanhar.

Seios de palha quase seca
no farol inventado da ilha
lua da antevisão do fumo
após o fogo de alma cansada.

Pela seara imensa do trigo
com as primeiras águas do dia
os primeiros sons do povo
no trabalho amanhece a poesia.

UVAS

(e nos cachos de uva preta)

Pensam à noite voltar à vinha
fábulas de uvas e de gatos bravos
a picada profunda da serpente
da sede sedenta de água salgada.

Segundo os manuscritos sagrados
estão protegidos pelo oleado verde
das horas agrícolas da paixão.

Inventam à noite uvas de mesa
da natureza morta na tela pintada
das roupas arrumadas na cadeira
que queria como ausente querida.

Ficava quieta na quietude do silêncio
da tarde do verão mais quente
na cidade à beira rio erguida.

Calam à noite no lagar de pedra
o vinho do prazer colectivo
na liberdade da arte antiga
dos que trabalham as cepas e as parras.

Amantes do erotismo excomungado
saladinha de atum dentes de alho
e as folhas de rúcula da santa igreja.

Cantam à noite antes da vindima
depois do mosto grosso da alegria
e da visita às caves do coração
no regresso ao futuro adiado.

Escrevem à noite as passas secas
dos desejos para o ano novo que aí vêm
do lado de lá do mundo: o milho
do lado de cá do poema: a espiga


Budapeste. 2007-2008

3. DA ÁGUA ATÉ À LUZ : NOVE ELEMENTOS

ÁGUA

(dos seus olhos lindos da chuva)

Brincava com as palavras as de sempre
como quem despejava baldes de água
na areia seca da praia.

Construía sonhos e vertigens
castelos com essas palavras molhadas
património íntimo da paixão reiventada.

Contava os dias e as noites
todos os meses certos do ano
nos caminhos da nascente
de pedras por agora ainda verdes
até ao canavial do seu coração
ao sol o local mais próximo do poente.

Com o primeiro contacto do medo
escondia o sorriso envergonhado
das papoilas das tempestades
trazidas pelos ventos fortes
por cima das mãos gretadas
até aos lábios salgados das dunas.

Secava os seus olhos lindos da chuva
côr dos abetos-de-aquém-mar
para lá do condominio azul da água.

Brincava com as palavras
e não esquecia as metáforas
repetidas quase até à exaustão.

Depois deixava o bar em segredo
e regressava pela noite ao navio
com histórias de batota para contar
do dinheiro perdido do jogo do engate
das peças de roupa de contrabando
e das redes de pesca mais fortes do prazer.

A nudez transparente colhida do fundo do mar.
Quem poderia resistir a um chamamento assim?
Perguntava à poesia mesmo antes de a abraçar.

METAL

(Esqueciam a pele do metal mais duro)

A chuva de pedra da tempestade
pelas nuvens há muito prometida
grossa chegou de súbito furiosa
quando já ninguêm a esperava.

Caíu sobre as telhas sujas do beiral
a chapa de zinco do telheiro
com vontade de ser útil de lavar
e de moderno a terra a frio tatuar.

Esqueciam a pele do metal mais duro
o coração na laminação do ferro
húmido da dor pelas mãos moldado
aos novos tempos da inquisição.

Dizia que no mercado de reposição
das peças e ferramentas de corte
de metal do trabalho internacional
não se ouvia uma só voz solidária.

Como as viagens de comboio
que da emigração sempre associei
aos exilados e aos perseguidos
que nem a poesia defender sabia.

Longe do fogo-posto do passado
na contra-luz mestiça da metáfora
com mestria o chefe-da-estação
com a chave-de-fendas no bolso.

Recordava a campainha da bicicleta
roubado ao melhor cinema italiano.
Regressava com o sonho quase perdido
da consciência colectiva da cidade
distante do dia de merecer o futuro.

CORPO

(Madalena madalenas chocolate branco)

Vestida de branco na bicicleta
naquela hora terna da manhã
esguia pedalava à minha frente
com energia para aproveitar
o sinal aberto da passadeira.

O perfume devia ser de rosas
hálito e gosto de capuccino
sabores de madalenas doces.
Mas eu distraído não sentia
tinha os vidros fechados
e atento ouvia Haydn na rádio.

Em casa no sofá da televisão
e a família numerosa por perto
pensava - cão que ladra não morde.
Que atire o primeiro olhar
quem não tenha telhados de madeira
ou guiadores de papelão

De reencontrar na pesca
nas margens brancas do rio
a minha preferida Madalena
da Pimentinha de Elis Regina
de véu de túnica ao vento
na voz do anel apertado no dedo.

E ainda havia bem sabia
outra Maria ou Madalena Pecadora
que não tinha sido mulher de Cristo
não tinha nascido nem chegado pagã
dos livros do Livro Sagrado
- abençoada ousadia do olhar.

Esta gostava vestir-se de branco
por cima e por baixo eu via
na transparência opaca da luz
para prazer visual ou multibanco.

 Não era nada má não senhora
os brincos de cereja pareciam
e o baton intenso da mesma côr
a gata mansa de unhas perfeitas.

Mais tarde eu soube aí soube!
Madalena madalenas chocolate branco
junto ao mar serrote funcho ou punhal
a pouca distância da terra
da nossa Madalena do Mar.
- Deus que susto anjo me guarde!

Do gelo formatado dos olhos
ao fogo as setas de peito aberto
quem nos dera fosse o dela
- dizia sábio Pedro ao meu lado.

Era o gelo de boneco-de-neve ao sol
derretido no tremor tenso dos lábios
assim que abria a bela boca pequena
e fazia ouvir a sua voz afiada de tesoura.
Ó Madalena da encosta a lenha que pena!

FOGO

(Se do fogo nasce a luz)

Se a longitude da noite deitada
sobre o tecido mais fino das sílabas
sem lençóis leves nem cobertores
no tapete vadío de cão sem dono
jamais sofria da fome e das rugas do frío.

Espojadas no chão as palavras
com as pulgas de estimação
água bebiam nas poças das chuvas.

Se do fogo nasce a luz
e com a liberdade das mãos
se fecunda a terra do povo
castidade cativa na catedral do prazer.
que é afinal cópia perfeita da criação.

Na deserção dos dedos de carvão
cortina escura da mina afirmava:
irmão eu sou assim e outros nem assim são.

Sazonal lentamente o fogo
aquece as paredes da casa
das sílabas da barríga vazía
da malícia da palavra perdida
com o refogado condimentado.

Na nave central da nossa alegria
de tanto texto tanta declaracão de amor
escrevia de Matilde primavera francesa.
Nome de musa. Flor de poesia.

MADEIRA

(A madeira povoando o nosso coração)

Aqui estrela de pinho em fogo-posto
o fogo-morto já se apagou de vez
no casco no sub-solo salino
da traineira marítima do sonho.

Era feito do carvalho mais resistente
da madeira cúmplice da cumplicidade
das cinzas do povo que ilumina
e que nos indica na noite o caminho.

Como a rota do vinho a rota do vento
a brisa da impossível paixão eterna
do rapaz criado da cavalariça
pela formosa filha mais nova
do dono de todos os cavalos
de todas as éguas mais lindas.

Paixão que crescia sem parar
como a famosa árvore do tal rei
que acabou árida sobre as rochas
das mais antigas palavras redondas.

Madeiras duras e macias
como esse ventre morno
de aparas e colas prensadas
no forno a altas temperaturas
essa pele pintada da amada
a óleo pai de pintor anónimo.

E nós do lume por vezes pela manhã
escrevia Eugénio de Andrade
somos mais frágeis que o vidro do sorriso
do que a pedra ou o vidro do silêncio.

Neste último assomo de país-floresta da ilusão.
de mudar voluntário de cidade e de insurreição
escrevo ao ar livre a secar perto da serração.
A madeira da cama povoando o nosso coração.

AR

(Era o ar puro da liberdade)

Enquanto a terra se cobria
de mil mares de água salgada
o frío de pescar à linha o futuro
percorria os bairros insurectos
recolhia cada um dos pensamentos
sem medo do falatório e da má-língua.

A água que subia depressa
na casa clandestina da conspiração
apagava a chama o fogo intenso
essa maldição madrasta da fogueira
com algumas pedrinhas de sal
que fazia do ar as cinzas mais opacas.

Perto da devoção da praça de toiros
do abismo jovem da luta final
enquanto a terra se mexia
com a colher de pau das ideias
pelas janelas abertas da cozinha
o almoço que mais parecia uma canjinha.

Perto da casa da papoila-mocinha
mais formosa de década da utopia
era o ar mistério da igualdade
servida em pratos de ingenuidade
os pacotes-mãe de bolacha maria
e as nêsperas das nespereiras do povo.

Quando este país Portugal
mostrava à Europa ao mundo
que ainda não estava morto.
Era o ar puro da liberdade
que inundava o largo principal
que envolvia a nossa cidade.

TERRA

(Terra de todos e mais alguêm)

Terra de todos e mais ninguêm.
Terra de poucos e mais alguêm.
Terra extensa de pastos e baldíos
charruada gradada e destorroada
pelos torrões e dedos desnudadaa
no erotismo do feno aos molhos.

Talvez o passarinho rabo-de-palha
da erva recolhida quase seca
e armazenada ainda verde
para a formiga do longo inverno
do amor que a terra fértil cultive
com o fertilizante dos primeiros amantes.

Terra quente terra aquecida
pela fogueira do formigueiro
por terras que seriam movedíças.
Terra fértil fertilizada e renascida
pelo fertilizante inóspito da química
do prazer dos primeiros amantes.

Terra de vespas de veludo perigoso
pragas insectos e ervas daninhas
que crescem sobre o formigueiro
que escrevem com comichão
nas costas nos dedos nas mãos
na árvore da formiga feiticeira.



Sedução jovem de pão preto

do amor alado da única rainha.
Formiga de asas brancas caídas
de princesa nascida ainda virgem
amada vir à praça ser fecundada
pelo formigão que não resiste.

A água-benta de acasalar a formiga
a rainha com o plebeu mais negro
o mais robusto do formigueiro
triste a morrer deserdado da paixão.
Em fila um e depois outro e outro.

Mas a hora era da rainha e do formigão
para que a dinastia se mantivesse azul
nas terras de sequeiro e de regadío.
Terra de formigas escolhidas.
Terra de poucos e mais alguêm.
Terra de todos e mais ninguêm.

PALAVRA

(se tiver pão e circo)

A condessa segunda
sem dar nas vistas
discreta e distraída
mas com as medidas
certas nos olhos
roçava sem ninguêm ver.

A pele da barriguinha lisa
ao tecido da farda
das calças coçadas
de fecho fácil de abrir
do motorista da empresa
mais novo que o filho doutor.

Eram as primeiras frases
do guião já aprovado
pelo director de ficção.
A história prometia êxito
grande sucesso de audiências
mais receitas publicitárias.

Pudera com um caldinho assim
- mulher madura podre de rica
mas ainda uma brasa a arder
cá com umas curvas um corpinho
um par de pernas de catálogo
e uns lábios carnudos
que qualquer revista masculina
pagaria uma fortuna
por uns semi-nus exclusivos.

Assistir ao lançamento
de mais um jovem talento
no papel de motorista
de serviço all-inclusive
das compras ao escritório
da garagem à cama da viúva
as cenas tórridas hardcore
para gula dos outros olhos
do lado de lá do filme.

Sabem se tiver pão e circo
o povo ficará grato
e se o pão não chegar
haverá circo a dobrar
que virtual esta vida
é um show cada vez maior.

Metáfora que antecede a poesia
e que passou ao lado da vida
entre paredes e muros de pedra.
A poesía extraída da pedreira
onde se constroem com gasolina
as estradas mais longas da ilusão.

LUZ

(a luz dentro de nós um dia)

Na mais comum das madrugadas
que anunciava a manhã
os barcos e braços da poesia
procuravam os caminhos da luz.

Do vermelho do sangue diziam
ser por vezes água do mar
de não saberem a tabuada
tabu de não saberem navegar.

Mas quando a luz naufragou
todas as mulheres do povo
cobriram-se da côr da noite
desde a ponta dos pés até ao céu.

O povo em mim é metáfora
não é vaca sagrada malhada
nem vitela nem bezerro
de basalto ou de granito.

Não é filosofía alemã
renascimento italiano
capítulo categoria da história.
Aqui o povo é apenas metáfora!

E na poesia meu amor
densa leitura há um dogma
ainda que vulgar frase feita
de vitrine da cidade terna

na sede da formosura não sei quando
mas em que simplesmente acredito
- um dia a luz da nossa cancão
será mais forte que a escuridão.

Budapeste, 2007-2008

FADOS DESTINOS E ALGUMAS PALAVRAS



"La tristesse durera toujours" Vincent van Gogh

GOSTARIA QUE FOSSE UM FADO

Ainda agora meu amor
algures longe do mar
longe das origens do vento
é sobre a mesa decorada
com pequenos potes de barro
do mel que as mãos esquecidas
repousam sobre a toalha
no tecido azul das palavras.

Ainda agora meu amor
tantos séculos depois
no largo dos sem destino
onde sem abrigo nem fado
citam textos muito antigos
dos livros mal guardados
roubados ao alfarrabista
antes das cinzas eternas.

Mas quando a luz naufragou
todas as mulheres do povo
cobriram-se da côr da noite
dos pés até às portas do céu.
E é bom sentir os meus dedos
nos teus dedos de inverno
e sei que não os trocaria
por nenhuma plena primavera.

POR DENTRO DO NOSSO PASSADO

Que seria de mim sem ti cantavas
tão perto do mar tão longe da serra
muitas promessas de alegrias eternas
as mentiras finitas do xaile de pedra.

Na esquina do sol havia uma praça
onde os cães vadios dormiam a tarde
vestígios dessa ousadia tão nossa
quando em mim ainda eras tu a cidade.

Percorre a luz na sombra da rua
da sedução aberta pelas mãos do acaso
e junta com cuidado os dedos à porta
fechada por dentro do nosso passado.

Esconde os bem silêncios na boca
e levanta os sentimentos do chão
senta-te à mesa na minha casa
mas não troques as jóias do coração.

E uma vez mais te recebi com paixão
com promessas de carícias gratuitas
dividimos a festa a cama e o pão.
Que seria de mim sem ti cantavas.

MEU AMOR MEU DIOSPIRO

Se um dia soubesse escrever
as palavras de um só poema
com as metáforas mais intímas
usando a rima perfeita

Sei que não seria um poema
serias meu amor tu mesmo
comigo quem sabe por perto
para te aquecer as mãos

Para me proteger do frío
e te oferecer um fado
meu refúgio sorriso claro
meu amor meu diospiro.

Eu que fui mina e fui de pedra
tenho ainda mármore nos dedos
e na voz guitarras de prata
memórias de muitos segredos.

Se um dia pudesse cantar
no verso frágil um único fado
serias tu eu estaria por perto
amêndoa doce amor perfeito.

OS TEUS LÁBIOS SALGADOS

Vêm e traz as tuas mãos verdes
colhidas com ramos e folhas
e aves bebem juntas às vezes
na fonte das pedras húmidas.

Traz os teus lábios salgados
do sal do saleiro das dunas
que juntei para ti nas ondas
ao sol e nas redes alguns mitos.

Vai e leva a luz matinal
bem lá no fundo dos teus olhos
marmita do amor intemporal
que ilumina os meus sonhos.

Leva os meus lábios salgados
do sal que bebem em ti as aves
que saboreiam ainda os teus olhos
nas asas das minhas mãos verdes.

A ALMA CELTA DO FADO

Diz que seria da nossa cidade
sem as festas sem a tua ternura
como poderia viver viver sem ti
a vida toda à tua procura.

Sim sorri assim sorri para mim
pássaro azul saído do mar
toutinegra do meu país a sul
nesse voo que prende o meu olhar.

Quando naquele dia sonhei
que chegavam barcos doces e beijos
na abundância da água provei
o melhor medronho dos teus lábios.

Entreabre as portas do destino
à alma celta do fado antigo
no litoral no cais do violino
vertigem da noite passada contigo.

Sorri assim olha assim para mim
em viagem prolongada sobre o mar
andorinha da nossa primavera
lua nova que apetece cantar.

GENTE BOA DE LISBOA

Há paises com muita história
e outros com muita geografia
há sonhos perdidos nas águas
e fados esquecidos na poesia.

Pois a vida chega do sol da paixão
com a brisa salina das madrugadas
olhos que iluminam a escuridão
ervas pecadoras e outras madalenas.

Com as primeiras mãos da maresia
com os sintomas seguidos do fogo
o amor é teu é meu e se fosse nosso
braços fechados e laços de seda teria.

Ali seria sem ninguêm esperar
na demora da noite tardía
do farol sonânbulo da ilha
os sinais abertos do verbo amar.

Nas avenidas novas da cidade
na textura da minha alma profunda
de tanta gente boa de Lisboa
do barco preso nas mãos da tempestade.

Há povos com muita geometria
e outros com muita matemática
há fados com saudade da poesia
e poesia desenhada mesmo para o fado.

PALAVRAS MAIS ÍNTIMAS

Foi ainda antes do meio-dia
quando o sol brilhava azul
no rio dos seus lábios.
Fraterno o sol brilhava
como não nao seria possível
em nenhuma outra parte do mundo.

Cúmplice temporário do fado
acariciava as promessas
de amor eterno dos amantes.
Palavras das ideias mais intímas
no sol da fascinação primeira
que subia azul nos seus lábios.

O sol pelo corrimão da tarde
que estava apenas a começar
seduzido brilhava na água
do lago verde do seu sorriso
entre as pedras lisas da noite
e barcos parados à espera.

Junto ao beiral da casa fluvial
fado surpresa da madrugada
o sol brilhava na terra preta
do seu sorriso mais aberto.
O sol crescia nos seus lábios
como em nenhum outro sítio.

Ainda antes do meio-dia
o sol brilhava nos seus lábios
em todas as terras do mundo
azul e fraterno sedutor e verde.
No último canto da terra preta
tu eras a visita que iluminava o sol.

TRISTE SERIA LISBOA SEM FADO

Sei que sem hesitar trocariam
a traineira marítima do sonho
mão-morta abre a janela da vida
pela voz tecida pela luz fina
para guardar com muito cuidado
no fundo do coração do oceano
pelo fado que conta o segredo
das chaves do céu no cacifo de Pedro.

Sei que sem hesitar trocariam
as palavras mais lindas da tarde
a longevidade dos sentidos
a forma exacta do vento norte
pelos tapetes de nuvens e utopias
as varandas decoradas de giestas
pelo colorau em pó dos teus lábios
feitos à medida das águas da sorte.

Sei que sem hesitar trocariam
as amêndoas amargas do silêncio
feito ternura da madeira mais dura
pelas guitarras macias dos dedos
os rostos mais claros da madrugada
pelas cinzas povo que ilumina
e a nós nos indica o caminho.
Que triste seria Lisboa sem fado!

NOITE NUNCA MAIS TE SONHEI

À saída sub-urbana da noite
dessa estação quase vazía
que tinha sido da alegria
olhei uma ave sózinha
na escadaria da tristeza.
Em voz baixa em teu nome
dizia que era a mim que queria.

Mas na noite desse dia
que era já da solidão
de quem como nós com paixão
nos habituámos a partilhar
cada batida mais rápida do coração
entao eu ainda não sabia.

Que o comboio onde ía
mais moderno que o amor
e mais antigo que a dor
tinha um destino único
e nunca mais iria voltar
para te voltar a encontrar
para te poder abraçar.

Sonhar o teu amor só meu
pássaro morto antes da vida
intensa de noite acesa de dia
fria de inverno quente de verão.
Mas a estação estava vazía
tão vazía como o meu coração.

Na verdade do nosso amor
na hora exacta dos sentidos
e no jardim em verso da tristeza
nem a tua sombra encontrei.
No coração do meu fado do nada
já não vi nada nem ninguêm.
Noite escura nunca mais te sonhei.

NAVEGAVA CONTRA O VENTO

Junto com a maresia
do prazer das palavras
cantava com alegria
as histórias do nosso fado.

Com a metáfora mais pura
das marés vindas do mar
avela enfeitava o navio
que navegava contra o vento.

Já na cidade a do destino
que cedo deixou à porta
do lado de fora da luz
do lado de dentro do sonho.

Era povo e era diva
era dor e era noite
encontro ao fim do dia
símbolo maior da paixão
da eterna canção de Lisboa.

Deixou-se prender nas vagas
desse povo amor verdadeiro
que nem é preciso cantar
pois está tão perto de nós
que até dói mas faz viver.

NO BAIRRO ALTO DO POVO

Enquanto a terra se cobria
de mil mares de água salgada
o barco deixou-se caír nos braços
contra as rochas sem uma palavra.

Brava a água depressa subia
pelas mãos lisas a secarem ao sol
e apagava as chamas do fogo
com algumas pedrinhas de sal.

Era o mistério da igualdade
era o ar puro da liberdade
que enfeitava a praça principal
desejo que envolvia a cidade.

E percorria tabernas e bares
os bairros insurrectos do sonho
ali no Bairro Alto do povo
onde ainda hoje se canta o fado.

O fado é feito também de silêncios
de frutos e pensamentos maduros
fruta verde colhida à socapa
lua nova sem ser acusada de ladra.

Com as primeiras luzes do dia
com as primeiras palavras do povo
na voz fadista amanhece a poesia
no trabalho anoitece o fado.

A FOME DA TUA BOCA

Juntámos os ventos do vento
que misturam o sol e a sombra
quando trazem morno o sonho
e cultivam as terras da terra.

Porque o trigo da tua boca diurna
aproxima-me aos poucos da vida.
O barco chega na voz que navega
nessa água que queres mais pura.

Breve veste-se frágil da ilusão
dos desejos da paixão que perdura
no silencio da sede da sombra
de tanto beber na fonte nocturna.

Na frescura d'areia com sabor a sal
e na baixa-mar deixa o amor cantar.
Por vezes há silêncio nos segredos
que nem a dormir se deve sonhar.

Amor janela aberta do teu corpo
e enganar a sede profunda da fonte
na seara doce da fome ma tua boca.
A imagem mais clara do nosso fado.

FADO JOĂO E MARIA DA CONCEIÇĂO

Com os dedos secos quase gastos
toca sem parar arranca a melodia
da concertina francesa que um irmão
da Maria da Conceição comprou
a um bom preço em segunda mão
quando passaram a viver juntos
em Alfama numa casa arrendada.

Boa ajuda no ganha-pão dos dois
poder comprar o pastor-alemão.
Desafinada como a sua voz rouca
arrastada que podia ser de palhaço
de circo pobre sem eira nem beira
de trapezista sentado na escuridão
de voz conhecida da rua de Lisboa.

Junta algum João da Concertina
leva-a a passear de comboio foguete
até à cidade do Porto ao rio Douro
do bom vinho e do melhor futebol
para três dias sem a grande a lotaria
onde não tenha que vender a sorte
sem sorte nenhuma para ela diria.

Saí com ela de barco da Ribeira
com bar e restaurante manda vir
uns torresmos pataniscas uns rissóis
pede ainda um cimbalino à maneira
que a ginginha é oferta do capitão
da mãe da tua poesia do nosso fado.

Pela bengala branca do destino
mesmo no escuro não te esqueças
o homem dela és tu João da Concertina
que entre plágios e tanta seduçao
o único brilho do sol que ela quer
é aquele que aquece a tua mão.

AMADURECIA NAS TUAS MÃOS

Amadurecia nas minhas mãos
como se não houvesse ramo
nenhum tronco de árvore sombra
do pomar entre altos muros
visita frequente do meu sonho
que descansa bem lá ao fundo.

Amadurecia quando distante
porque se afastava ousado
no bico desse pássaro tão belo
que se imaginava dono de tudo
dono até dos caminhos e campos
baldios perdidos de frutas e frutos.

Amadurecia nas tuas mãos
que conseguiam parar o vento
onde se confundiam abraços
meu amor apenas minha flor
frutos e ilhas repletas de chuvas
ilhéus no coração dos caminhos.

AO AMOR DA NOSSA CIDADE

As mãos ternas da liberdade
passavam horas a fio
nas margens brancas do rio
ou perto do campo das cebolas
na mais comum das madrugadas
que anunciam a manhã.
Os barcos e os cais da tarde
segredavam na noite secreta.

Se da luz nasce a vida
com a fraternidade das mãos
se fecunda a terra do povo.
Na Rua da Madalena
se acomodam às pedras
ao coração de mármore
na erosão do vento
ao amor da nossa cidade.

E nós por vezes escrevia
para depois eu poder cantar
se lume somos mais frágeis
que o vidro do sorriso
que o vidro do silêncio
que o silêncio do fado.

NA TABERNA DA DIAMANTINA

Na taberna da Diamantina
ao vinho chamavam bela pomada
e à água-pé linda menina.
Na mercearia da esquina
cheia com os fregueses de sempre
juntavam as palavras ao fado
a jogarem à bisca mandada.

Na Praça da Figueira ao fim da tarde
com o sol na eira e chuva no nabal
eram na emissora nacional
as notícias finalmente sem funil.
Andava de véu na túnica ao vento
na emoção jovem dos sentidos
cativos na catedral do prazer.

Escondia a vergonha disfarçada
não bate a bota com a perdigota
e peças de roupa de contrabando.
Pois sabia que estava à espera
estaria sempre à sua espera
com a água do lago bica da fonte
afluente que ao céu quer chegar
do rio que não desagua no mar.

Budapeste, 2007-2009
(Projecto – AS PALAVRAS CONTNUAM)