sexta-feira, 3 de setembro de 2010

MAIS PALAVRAS






1. RUA DA SAUDADE


2. AS PALAVRAS POR EMPRÉSTIMO


3. HISTÓRIAS PÚBLICAS E ESCRITA PRIVADA 


Pedro Assis Coimbra. Budapeste. Lisboa e outras cidades 2010
(in projecto: As Palavras Continuam)

1. RUA DA SAUDADE

Ary dos Santos nas minhas palavras


"Minha laranja amarga e doce
Meu poema."  in "Cavalo à solta"

Ideia que começou a tomar a forma de palavras
durante os dias que estivemos no 1. Dto do Nr. 23
prédio de Ary (de Alexandre O’Neil e Fernando Tordo)
em Lisboa na Rua da Saudade.

PRAÇA DA CIDADANIA


"Em Lisboa vendendo a minha fruta
de azeite e mel de ódio e saudade" in "Cidade"

Os seus seios de cinza   gravados na cortiça
no vestido de rainha   moldado ao corpo da desalmada
com bicos de carvão   serviam nocturnos às mesas.

Champanhe com gravatas sintéticas   da cor dos collants
trabalho todo feito   pelo paciente proletariado chinẻs
explorado e muito mal pago   feliz por ter emprego.

Radiografia negativa e perpicaz   do fascínio da liberdade
de trabalhar e dormir   ás vezes cobrir e ser cobertor
furão o camarada maior   comia as melhores melancias.

Parava para refazer contigo   sem medo do senhorio
a casa da luxúria e da ousadia   a voz baixa transformada
e no sábado cortar a relva   onde crescia sensual a poesia.

Poderiam ser dos espelhos   das suas partes inferiores
sombras que ajudam o faro do cão   a não se perder
e a encontrar o caminho   para a praça da cidadania.

Conquista última do século   que agressivo o avaliador
como um cilindro de nojo   herói sedento de dor
quer destruir e aplanar   por conveniência e conivência.

TECE A TECNOCRACIA


"Terra onde o mar é bastante
para guardar os teus segredos"
in "Tempo da Lenda das Amendoeiras"

As matas e as florestas   dos ataques surpresa
das emboscadas furtivas   do direito à indepêndencia
seriam das guerras   se não fossem da paixão.

Se não fossem dos amores   interditos por lei à rendição
pelos brandes costumes   trocavam os lençois brancos
por um desvio intenso   de duas horas sem queixumes.

Tece tece tecedeira   que o Bom Deus tudo perdoa
aos que com acácias   ordeiros se submetem ao poder.
Tece enquanto podes   há trabalho e há máquinas.

Ainda não foram vendidas   tece enquanto há fios
salários baixos emprego precário   o coração apertado
quase fora do peito   tece pequeno o teu desespero.

Se o óleo fígado de bacalhau   do purgante acabou
prega-lhe de castigo    com terramicina a dobrar
com a justa epistomologia    tece tece a tecnocracia.

Paises de delatores e denuncias   pátrias de merdas
que entregam os vizinhos   ao degredo e à morte.
Haverá futuro?   Vale a pena escrever da má sorte?

RUA DA SAUDADE


"Que ficará na memória
das naus que de Abril partiram"  
in "As Portas Que Abril Abriu"

De cobre e estanho  antes se invadiu a guerra
e hoje se semeia o corpo   se fabrica o pão
se transforma bronze   o mais duro da nossa terra.

Entre pressa e vagares   sente algum pudor adulto
despe-se com cuidado   que as janelas estão abertas
e os pardais telhado atentos   espreitam descarados.

De tão abandonada   por dentro dos pensamentos
de entrega ao prazer que se aproxima   deixa distraída
esquecido o último obstáculo   sobre as teclas do piano.

Na rua lá em baixo   com a ternura não se sabia
se o que se ouvia   era uma das melodias famosas
que assumiam o amor   às vezes a luta de classes.

Se o gozo perfeito   a festa linda do seu coração.
Morrer? Morrer agora?   Morrer asssim canção?
Só quando não tiver mesmo   mais nada para fazer.

NA BARBEARIA CLÁSSICA


"Para a cauda avestruz do teu andar de vereda
o decote intenção da tua voz agulha
recorto este poema num papel de seda"
in "A Casaca" Para Natália Correia

Na barbearia clássica   a barbeira de Salamanca
cantava de olhos fechado   frente ao espelho maior
longe como estás homem    nem de foguete ou foguetão.

Cantava descalça   assentes nas tamancas grossas
as pernas lisas da hidráulica   das nádegas rijas
apoiadas na cadeira alta   do ferro de marca cromada.

Tinha na mão direita   sobre a pedra da ilusão
onde amolava cortante   a lâmina da navalha
se fosse mais abaixo   seria marítima rocha do cais.

Preparava a máquina zero  adiantava serviço
do próximo cliente   cabelo eriçado à ouriço
remoinhos de areias secas   cortados às escadinhas.

Bendito não há ouriça  que não goste de chouriço
que não convide no olhar   ao envolvimento precoce
do soldado valente   á civil sem armas de fogo.

Cantava descalça na barbearia   a linda barbeira do mar
a mão direita afiada    segurava a tesoura militar
que cortava o tempo os dias   ter com quem amar.

NOVIÇAS AO BALCÃO


"Vá de Metro
vá de burro passear
mas não leve o alfabeto
que se pode constipar " in  "O esplanador"
Exmo Sr. A. Ramos Rosa Faro

Em agosto a água fresca   quase quase gelada
parecia ser das fontes   ainda te lembras?
Meu amor   dos fontanários eternos de Roma.

A água marinheira que lavava   terna o teu rosto
se juntava em poças pequenas    em bocas acesas
e percorria desperta   o corpo muito muito devagar.

Em barro te moldava   e de pedra te esculpia
com os dedos que pedira   emprestados à noite
e nos custos incluídos   todos serviços bancários.

A melhor cerveja preta   a copo para turista
era servida no mármore   pelas noviças ao balcão
no pátio recuperado   novo design das Carmelitas.

Estavam pressionadas   que o diabo não dorme
preocupadas com o retorno   do dinheiro investido
é que Deus foi sempre   o melhor na contabilidade.

ONDE A CIDADE SE BANHA


"Vou pelas ruas da noite
com basalto de tristeza"  in "Rosa da noite"

Escreveu a correr   que só por dentro da noite
percorrendo a pé   a argila seca do pensamento
seria possível fingir   ignorar tamanho mistério
vestindo as metáforas   nas cercanias dos lábios.

Bordando a sombra   com as luzes da ilusão
recolhidas à pressa   durante o intervalo para almoço
rematando com fios   a madrugada da inquietação.
A ordem milenar   com barbas de consentimento.

Frente à deusa seria?   Sempre nova da paixão
sem a censura do pudor clerical   e nada a esconder
humana assim responderia   em texto ao amor
com as cores profundas   do erotismo e fascinação.

Levar-te comigo   convencer-te a ficar para sempre
na minha casa   com o arranjo verbal das palavras
o vinagre dos sentimentos   ensopados em vinha d’alho
e o violino húngaro nocturno     do teu sorriso mais claro.

Guardar na mala   as vozes doces do rio grande
onde a cidade se banha   e nós mais tarde um no outro.
O motorista de longo curso   com horários a cumprir
já devia estar na estrada   e ainda estava sentado à mesa.

PEDRAS DE GELO


"Por ti morro e ninguêm sabe
mas eu espero o teu corpo que sabe a madrugada"
in "Amêndoa amarga"

Em esboços a lápis negro   de pedreiro arquitecto
declara que inventou país   o teu nome minha raíz
pescador no umbral   desse mundo dito novo
onde as pedras de gelo   chafurdavam transpiração.

Assessores ocupam gabinetes    pensam ser gente
que podem decidir por nós   sobre o futuro dos outros
seguros das suas verdades   que a madrugada do mundo
antes da sua nomeação   era uma arca congeladora.

Meu botão de rosa    não os posso mandar à merda  
poderia levar   com um processo sumário em cima
e no tribunal do trabalho   o medo a confirmação
despedimento com justa causa   a prestação da casa.

Valeria talvez a pena lembrar   a estes rapazinhos de caca
que mesmo imperfeita em democracia    a festa da vitória
na noite eleitoral    é o primeiro dia da próxima derrota.
- Boas indemenizações    depois chegam outros iguais.

O TEJO A DORMIR


"a mulher é de granito
os seus braços duas pontes
entre o ventre e o infinito"  in "Fado transmontano"

Que sejas tu    com o teu olhar de bandolim
a tua voz contra-baixo   a parar a força do vento
e mandar para outras paragens    o grande vendaval.

Onde longe não faça estragos   nem às crianças mal
se ventania que seja   para limpar o céu redentor
o ar puro e fresco   no abrigo morno onde te espero.

Os poderosos há muito   que compraram o mundo
os seus herdeiros de sangue   os mui fieis servidores
tem-se limitado à gestão   assuntos correntes do lucro.

Para que nada mude   enquanto o mundo for mundo
sem a claridade da manhã   o saxofone do casino
quando o sol entra feminino   pela janela da sala.

Te ilumina acordeão   eu ponho a mão no teu rosto
nos teus lábios em tudo   para papel quimico do futuro
te reproduzir e guardar    na gaveta do meu coração.

- Subiamos até à rua   de Tordo e Ary dos Santos
a dois em esforço   pelas escadinhas de São Crispim.
O Tejo ao longe   calmo até parecia estar a dormir.

A LÍNGUA É DA SERPENTE


"É de linho o teu verso fiado no destino
dum país ao luar dum fio de azeite"
 in "Retrato de António Nobre"

As palavras embebidas   em aguardente caseira
aquecem e desfazem-se   na escuridão dos sentidos
no alçapão transparente   das ideias mais profundas.

Mas não negam aquilo   que na verdade sempre foram
cumplicidade e entrega   troca de curtas mensagens
o enxofre da vinha   o martelo da madeira mais dura.

Para bater a carne   espalhar pelo tampo da mesa 
do tempo da fome sem força   para morrer
dar nas canelas   dizer que não ao Grande-irmão.

E então não era   que sentada no barril de carvalho
na cor turva cultivada   no azeite fino dos seus olhos
não resistia   e dócil se deixava comer pelo leão!

Sagrado que enquanto comia   não falava nem ouvia
os seios euforia   debaixo da bata bem apertada
a dar de si    os bicos não poderiam estar mais tensos.

Nem o melhor detergente   do mercado grandalhão
a luz perversa dos olhos   a lei cega do olhar.
Não importa o que pensam   a língua é da serpente.

PÉ NO ACELERADOR


"Já suei o suor de oito séculos de mar
o tempo de onze meses de ordenado"
in "A Máquina Fotográfica"

A aristocracia popular   dos sábios lãzudos
da revolta lançada borda fora   sem um gesto de piedade
bateu em cheio no rosto     à bruta com todas as costas.

A doer no asfalto   no cimento mal-armado
do desterro das ideias   da caridade de plástico
impunemente mentirosa   com tiques de beata tonta.

Enquanto a poluição  se encaminha para o mar
as dúvidas por perguntar   há muito que tinham sumido
pela abertura da banheira   pelos canos da desilusão.

Como o esquecimento anónimo   do exílio prolongado
porque para subir   ao pico mais alto da montanha
precisava apenas de um carro  o pé no acelerador.

Lisboa, setembro 2009 – Budapeste, 2010

2. AS PALAVRAS POR EMPRÉSTIMO

POR COMPAIXÃO


Aquela hora à saída dos empregos
da cidade pequena a rosa caíu ao chão
por cima da lagartixa bem parecida.
Prolongava os olhos de fusco-fusco
esticava de perfil o busto de mármore.

Espalhava baba pela casca ressequida 
com umas cervejinhas e era caso
para dizer sim o petisco é bom
mas a cozinheira é ainda melhor.
Produto nacional de qualidade europeia.

Sem as pernas de outras épocas
a rosa murcha morria de sede
pela falta da gasolina antes barata
com mais chumbo e menos pulmão.
Saudades do tempo das vacas leiteiras.

Com alguma discrição era normal
por compaixão passarem por cima dela
e deixarem uma nota de gratidão
uns trocos que dessem para o fumo
até à tardinha ao dia seguinte da solidão.

CINTURA DE LIBERDADE


As mangas da camisola vermelha
em nó-mudo sobre a cintura
onde começa a melhor poesia
contornavam os lírios da fonte.
Pendiam em desígnios de liberdade.

Em esboços de movimentos e negas
por cima e no meio das pernas longas
que sem o ilusionismo das palavras
pumas pareciam ter sido apanhadas
em flagrante excesso de velocidade.

Pareciam ter escapado do catálogo
da nova colecção Primavera-Verão
passadeira feita praia até às rochas
à ponte de madeira mais próxima
e montinhos de areia ao natural.

As mangas da camisola vermelha
caíam sobre o formatação do peito
como dois braços à espera de vez
universo ao qual nunca chegarão.
Sentimentos muito perto do infinito.

Dois ramos pintados da côr do desafio
do novo moço da loja dos petiscos
percorrendo sem remorsos asnádegas
do sucesso do pão em molho picante
descodificando a mensagem no sorriso.

ENTRE MUITO VERBO CALADO


"Talvez houvesse uma flor
aberta na tua mão"  David Mourão-Ferreira

Na selva da solidão rasteira
onde se procuravam à toa
por sortilégio da flôr não se viam 
em desencontros de pouca sorte.

Entre muito verbo calado
e tanta palavra adiada
montes de restolho a secar
para melhor flagelo dos pés.

Como as toutinegras de ontem
as mãos perdiam-se intactas
na topologia dos segredos.
Perdiam-se aos poucos na chuva.

Escrevia com um pau na terra
fica comigo até à eternidade
que termina na próxima noite
no dia do mito do nosso reencontro.

Ao longe em palavras e torresmos
quase pretos de tanto mexer os dedos
a saudade despia-se portuguesa
na torre a sul de todos os ventos.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

CARTOGRAFIA E CALCÁRIO


"Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta" 
David Mourão-Ferreira

A cartografia mais vulnerável
de todos os desejos de barro
e dos sonhos mais inquietantes
estava sinalizada no calcário branco
na maresia marítima da nossa história.

A geografia da mais ténua sedução
vinda do mar navegava de barco à vela
com as ondas pelo sal húmido do teu corpo
entre os dedos das minhas carícias.

Com a sabedoria das tuas mãos
da sua entrega lisa em pedra dura
na distância e no silêncio do bosque
longe da nogueira mais velha da praça.

Enquanto os olhos da tempestade
encostavam a porta vagarosamente.
no quarto ela cantava de boca fechada
como mais ninguêm sabia fazer.
Como se fosse verdade o que se ouvia.

BELA CIDADE A INSINUAR-SE


Foi a falsa injúria pela vingança gratuita
o mal fazer pelo prazer da dor no próximo
a entrada brutal às pernas o joelho desfeito
a fuga pela janela com a morte no horizonte.

A suspeição das teorias da conspiração
das mentiras dos inimigos externos e internos
que pena que não estejam a pisar ovos
como Santa Jacinta com pés de púrpura.

Glícinas e gerânios silvestres de Bethânia
do tempo quando ainda havia água com fartura
sem a pólvora desvastadora da indiferença.

Se não há número suficiente de serralheiros
recrutem madeireiros serventes e calceteiros
os mais finos cavaleiros tesos que nem um carapau.

Sem o cerco das tripas à moda do Porto
o polvo à lagareiro que não se come
em mais lado nenhum como na tua Ribeira.

Dessa bela cidade que aprendi a gostar
a sentir-me bem a saber insinuar-se 
e que tinha na Foz tudo a ver contigo.

HÁ RIOS CITADINOS NAS PALAVRAS


"Há rios que chegam subitamente
atraídos pelo fulgor dos dedos" Eugénio de Andrade

Há rios citadinos nas palavras
esquecidos sem querer no banco traseiro
do último autocarro da noite.
Palavras grossas que falam por si
impressas nas costas do pulôver.

Falam de poemas de ideias e resumos
com a roupa urbana bem justa
alongada sobre o corpo moreno
de sapato alto para subir e destacar.
Coxas que incendeiam a fotografia.

Da nudez captada pelo olhar
quando se vestia pela manhã
com as cortinas levantadas
pois com audácia digital da televisão
tinha aprendido as exigências do mercado.

Que se cultiva da abundante imaginação
das vendas paradas na loja de malhas
da torrada antes de saír de casa
já sem tempo nem alma para se arranjar.
A correr atrasada para o emprego.

A VIDA ETERNA


"Antes que eu rasgue estes versos
como quem rasga um vestido" Pedro Homem de Mello

Passeava descalça pelo mundo
pelos livros de vidro com morangos
desenhados e colhidos em Murano
comercializados com estilo em Veneza
sem um único corte na sola dos pés.
Passeava com um sorriso de escola toda.

Sem querer saber das igrejas profanadas
pelos guerrilheiros iluminados da razão.
Da excelência do marketing revolucionário
que garantia o melhor dos céus na terra
e a vida eterna na bala duma espingarda
para quem duvidasse de tamanha filantropia.

Passeava com botas e uniforme verde-oliva.
Esmagava as vidrarias e os morangueiros
altiva como os outros filhos da revolução
ao serviço do estado pai-benevolente
que por vezes tinha de usar o cinto-chicote
para o povo saber o que era o melhor para ele.

Diz-se que mais tarde quando sem botas
quis plebeia meia-nua voltar a andar descalça
como aprendera a fazer com a mãe-galinha
no novo mundo não podia porque os livros
tinham sido proibidos e o vidro derretido.
Apodreciam de podres as ideias dos inimigos.

ELECTRICIDADE DO PRAZER


"e o teu amor que espalha tinta"  Natália Correia

Era um vestido de água interior
lavado e tingido em tinta
doce por dentro e por fora
colado à noite na esquina
camisas estendidas sobre espelhos
das varandas com sardinheiras.

Diziam ser a senha dos amantes
a mensagem-morcego da sedução
no disfarce de canoas pequenas
nessa água onde dançavam as lobas
em beijos de teimosia fluvial-lascíva
provérbios que não os deixavam mentir.

Sejam a luz da alma o desígnio da palavra
da mímica do olhar reflectido na água.
A metáfora da nudez do vestido engomado
passado a ferro pela electricidade do prazer.

MARCAR O GOLO CERTO


"Um navio que não tenho
num rio que não existe"  Natália Correia

Gosto da dança dos tornozelos
e do baloiçar dos calcanhares
da pressão alta dos joelhos
e do voo planado dos seus cabelos.

Gosto de assistir de perto ao vivo
às surpresas do seu bom jogo
ir ao estádio por ela pela vitória
e sonhar sair com ela de braço dado.

De verdade verdadinha pensa somente
como driblar sem faltas as ancas
equacionar a leitura a olho desarmado
as linhas rectas e profundas do passe.

Estar à vontade a meio-campo
e remexer o figurino da relva curta
ser decisivo em plena pequena área
de baliza aberta marcar o golo certo.

Era junto das plantações antigas de algodão
ali nascia o nome de um rio que no verão
não corria para mim nem desaguava no mar
e nem tão pouco prendia o jogo do teu coração.

OS TEMPOS SÃO DE INDIGNAÇÃO


"e a noite cresce por dentro
dos homens do meus país"  Manuel Alegre

Lágrimas de basalto de calcário rude
do sal a mais mesmo sem água por perto
antes da idade de chorar a valer e de saber
que a época dos jogos no recreio acabou.

Poesia os tempos são de indignação
de não ficar em casa a ver televisão.
De sair mas não se sentar na esplanada
feito homem-cego à espera de ver o país arder.

Agora que as palavras perdem as ideias  
 a força e o perfil vertical que antes tinham.
- São banha da cobra e fast-food em promoção.

Custa aceitar irmão que as metáforas
que toda a vida tratei como nossas
secas já não sejam cumplices da ilusão.

LITURGIA DA CARNE PANADA


"Quero o teu nome escrito nas marés"  Manuel Alegre

Apesar de ter olhos e gostar de te olhar
não poderia imaginar que o mar atento
mais pequeno que na fotografia original
estivesse tão parado e tão calmo
no local mais improvável do teu porto.

Na liturgia da carne panada da marmita
transportada no xelim aveludado da biclicleta
novinha em folha no pão não havia melhor.
Só pensava em comer encher a barriga.

Tinha um laço na cabeça a prender
o cabelo com os brincos caídos a condizer
o cinto preto à cintura segurava o culto
passageira a saia curta era da mesma côr.

Do desígnio de deus e da filantropia do rei
do direito social à condição do contrato-promessa
e ao desporto a cavalo da nobreza sem tostão.
Com olhos de ver é bem melhor que a eficiência
a aliança estratégica do clero com o poder secular!

DESFRUTANDO O SOL


"Das minas do sonho a que descemos
mineiros sonânbulos da imaginação"  Alexandre O’Neil

A água de tão escura mais parecia
um corvo macho de asas abertas
recriando mensagens de voos antigos.
Momentos de outros olhos furtivos
que um dia se cruzaram a correr
na cidade portuária dos sonhos proibídos.

Eu fiquei sem saber se armazenavam
o perfume do pessegueiro em flor
com o teu cabelo castanho muito claro.
Sabiam que no sossego da noite
dormias no porão do navio parado no cais
do que seria a imaginação súbita do prazer.

Sem os dedos eu fiquei sem saber
se trocavam de mãos de propósito
pois tu gostavas muito de colher groselha.
Cá por mim deitado sol se tu deixasses 
gostaria de limpar os teus lábios frutados
e descansar à sombra com sabor a cerveja.

CORPO ACESO


"Uma palavra tua, uma só, e abandono tudo"
Casimiro de Brito

Havia desejos espalhados pela casa
quando na tarde de todas as preguiças
da cada capítulo plagiado do corpo aceso
na vila piscatória do teu peito arenoso.

Havia desejos em silêncios saciados
a rimar com a transmissão de rádio
na avenida do teu pescoço de antena
a contornar o teu flanco redondo.

Nos espaços do teu peito arenoso
avião costeiro do teu rosto lunar
em meados de setembro nada mais eram
que os nossos pensamentos em metáforas
perdidos no parque das merendas.

Na cidade do bar ao anoitecer
no desencontro infímo da sedução
brisas cálidas na lentidão do sol.
Os versos curtos dos teus olhos à solta
submergiam no ocidente das minhas mãos.

JUNQUILHO DE SAUDADE


As verdades verdes ramos dos seus dedos
entre o sol e o frio e o beijo apressado
com o queijo da serra e o contentor de calçado.
Por baixo da caixa o soutien em preto
novo paradigma na estimativa dos negócios.

Para isso descem ao fundo do canavial
junquilhos de saudade da transpiração.
Para lá das lágrimas os olhos meigos
da dor viúva de dália branca a fechar-se
sobre a ausência da sua própria vida.

Perto o anúncio luminoso era apelativo:
- esticar algumas peles mais enrugadas
e a diminuição do pneu no baixo ventre
novo desenho para o circuito motociclo do rabo
e a implantação de peitos mais abundantes.

Assim se conquista a alegria do protagonismo
se consolida a uniformização da imagem.
Bebem uma bica sem açucar para estimulo.

DISTẬNCIA DA GEOMETRIA


"Regressa, meu amor, é quase verão”      Rosa Lobato Faria

Era a lenha seca dos sentidos
no calor das minhas mãos adversas
o vazio fechado das palavras perdidas
na distância àvida da sua geometria.
A lua cheia na noite da negação.

Para resolver a nova equação
do seu dorso de fósforo a arder
um poema por deitar ao lixo.
Se dormias percorria-te sem horários
sem pressas nem compromissos.

Fazia como se estivesse perdida
que nem a minha língua falava
na ponte baixa do seu rio estreito
onde nem saber nadar era preciso.

Apenas queria escrever sobre as palavras
molhadas na imensa mansidão da noite
decorada com a fadiga que faz bem.
Verdade era a fotocópia do nosso amor.

IDADE DO SABER


"deixar que a tua pele me guie os dedos" Pedro Tamen

Talvez fosse dos aguaçeiros repetidos
do própio sol sentindo-se corno
de tanto esperar a sua vez de entrar
amolecer o pescoço e o resto
para depois vitorioso sair poder partir.

A verdade é que o seu corpo
está cada dia mais sedutor
e eu não desviava o olhar fazia-me
despercebida que não entendia.
Confesso não fazia nada para resistir!

Contava na mesa ao lado dando voltas
ao açucareiro à chávena do chá
com entusiasmo maduro mal contido
a bela mulher com idade e porte do saber.
Ouvia-se: chupava em seco cada desejo.

DORMIR A TARDE


"A história da noite é o gesto dos teus braços"
Sophia de Mello Breyner Andersen

Enquanto vagabundas as palavras
assumem solidárias as nuvens brancas
em silêncio as despedidas à poesia
acertam a hora com as correntes do vento
frases perdidas sem saberem da escrita.

Enquanto isso a pele azul do lago
a bater à porta por um primeiro beijo
transparente na margem se rejuvenesce
com o fogo nocturno da paixão.

Do milagre no outono da eternidade
na desordem errante dos sentidos
nos paliativos da meia verdade
e dormir pausadamente a tarde.

Os amantes sem jogos nem sinónimos
para cantar juntam para rimar 
os fios do erotismo do linho
ao verde da velha cama de pinho.

A mistura da terra com as cinzas
com as ruas limpas das carícias
da casa de todos os rostos
por fora dos novos caminhos
no regresso às colinas dos sonhos.

PAREDES DO TRIBUNAL


"e devagar tornei-me transparente"
Sophia de Mello Breyner Andersen

Escrevia nas paredes do liceu nacional
envolvida no disfarce e embrulhada
na túnica transparente da pouca sorte.
Aqui antes da morte ninguêm se rende!
E nem com deus o povo desiste!

Dizia com a alegria das certezas absolutas
enquanto extendia os braços à lua
pegava nas mãos da nossa negação
e com a ponta salgada dos dedos
fazia uma festa demorada de mar calmo.

De envelope e correio postal
quase em segredo espalhava
as últimas novidades do litoral.

Desde a fronteira entre o abismo
da bruxa descoberta pela bússula
até ao bilhete de avião por validar.

À noite cresceu ficou mais linda
no fundo dos seus olhos imensos
envolvia o verão de contentamento.

Escrevia a vermelho nas paredes do tribunal
exigindo a verdadeira justiça popular
nas madrugadas sadías do seu coração.

UM CORPO INCERTO


Um corpo incerto que parecia
vir a descer de pára-quedas
mesmo ao encontro do inferno privado
desse vulcão livre imoral e pagão
que não acorda nem deixa dormir.

Um corpo incerto seguido
pelos radares de defesa da pátria
caças de combate prontos a avançar.
As televisões interrompiam as emissões
colocavam no ar imagens não editadas.

Um corpo incerto desalinhado
vítima dos excessos da notícia
da busca constante do crime
que leva a privacidade à morte.
Os malvados só podem ser os outros.

Se fosse possível voltar atrás haveria
um inferno de pecados abençoados
uma cratera de bebidas e entregas
corpo de raíz que traria a vida de volta.

Um corpo certo de mulher em chamas
que nos chama para a cidadania da paixão
para a soberania da liberdade da escolha.
Arderia se não fosse de talha dourada?

ESPELHOS COSMOPOLITAS


Os bicos escondiam com amoras pretas.
sem tu saberes minha flôr
os espelhos côncavos e cosmopolitas
do nosso coração apaziguador.

Com a chuva impiedosa de janeiro
em interiores de sonhos incompletos
em ervas medicinais cobertas de seda
pelas escadas envelhecidas do tempo.

O seu rosto da dor mal se reconhece
não se sabe se é da tempestade de ontem
ou do pó fino do que resta da memória.
Se é da neblina da distància ou da escuridão.

Não sei se os teus olhos são resposta
se apenas uma pergunta deaté logo.
Sei isso sim que os teus lábios tão íntimos
nunca estiveram tão próximos do fogo.

HÁ UM OLHAR NOCTURNO


"Vejo o meu último dia
pintado em rolos de fumo"  Mário de Sá-Carneiro

Há um longo olhar nocturno
dos que nunca deixaram o dia
sintomas claros de salmoeira seca
com a tinta-da-china-mais-negra.

Sem os guardas dos bons costumes
doutores da revolução que descobrem
negando maresia desse mar riscado
que a culpa das desgraças e tragédias
é das carnes à mostra das mulheres.

Há um olhar nocturno infiel de injúria 
com as cores intensas do luto
da intolerância avassaladora do dogma
que nos deixa cada vez mais inquietos.
Saibam é que eu tenho vários filhos.

Que diram os poetas da poesia antiga
se soubessem pela vida ser preciso
escurecer a noite tapar a cara ensaiar a fuga
aos castigos-chicotes-da-punição-pública?

AO AMOR DA PEDREIRA


Por muito que custe escrever suportar
não se devem fechar os olhos
pedreira ao primeiro amor que partiu
com a aflição a rebate dos sinos
antes do profeta do tempo cantar.

Na cidade apenas frangos de aviário
galos só congelados ou no forno
modelo do corpo que antecedia a estátua.
Tinham pêlos a mais as irmãs-gêmeas
filhas paridas do peito da mesma mãe.

Muitas tetas e tanta noite louca tanto cão
à coca sim cegos da fome do apetite
pelo céu da carne no talho asseado.
Deitados como víboras no chão-das-putas
nas traseiras redondas dessa velha igreja.

Era em Amesterdão nas tetas do gado
e na libertinagem ilimitada das vitrines.
Dos excessos cometidos a estátua
foi removida pedra a pedra pela cidade.
Foi pintada e devolvida ao amor da pedreira.

ERA BONITA DEMAIS


"Lábios húmidos do amor da manhã
polpas de cereja”" António Gedeão

Era bonita demais para ter chegado
empoleirada nos postes de luz
dissolvida na floresta do passado
e arrastada pelo robusto navio mercante
com óculos escuros e rosto de meio-dia.

Trazida em pacotes de batata frita
bem ao gosto da multidão criadas de casa
com as asas do ferro pesado do delito
finança a mais e economia a menos.
Poesia hoje já ninguêm quer ser pobre!

Ele falava vários idiomas estrangeiros
pássaro tardío militar sedento de paz
de tanta batalha na folha de serviço
tanto homem tanta morte tão pouca mulher.

Do fundo da alma no confronto dos corpos
ouvia-se – tu falas muito acertas pouco
merda não comes nada nem ninguêm
nem peixe-faca corvina ou facalhão!

CHOCOLATE SE DERRETIA


"Desde que nasci que todos me enganam
em casa, na rua, na escola, no emprego, na igreja, no quartel"
António Gedeão

De longe pareceu que comia chocolate belga
com cheirinho envolvente a licor proíbido
anis azul de bordel a mais e avé-marias a menos.
Eram as fadas verdes dos artistas e dos pintores.

Deram agora lugar a mesas limpas sem moscas
bem comportados almoços de auto-estrada
para a rentabilidade objectiva da gerência com lucros
sem necessidade de recurso à fuga aos impostos.

Assim fossem as broas e e os pudins d'avó.
Sabia-se de fonte segura da decisão
pelo analista do risco a subir na hierarquia
de negar o pedido de empréstimo bonificado.

Este mau fígado da poesia de combate!
A culpa é do chocolate que religiosamente
que ela comia com um tal requinte feminino
comodamente sentada em frente ao retrovisor.

Daqui à distância de um olhar não sabia
devo dizer se era ela que comia o chocolate
se era o chocolate feito homem que a comia
e por ela e por dentro em fogo se derretia.

VESTIDO DA CIDADE


Importavam berinjelas de Goa
em vasilhas de vinte litros
mirra da terra da sabedoria
com promessas de canela e arroz-doce.
Ainda assim eram capazes de escrever
que as viagens com muitas curvas
não davam volta ao estômago.

Sabiam lá eles do que falavam.
Ficariam calados que nem mudo-azeviche
se soubessem como era bom andar
a subir e a descer e a contornar o perigo
das ravinas e alisar as quedas do tempo.
No fim descansar de olhos abertos
por debaixo do vestido da cidade.

Eram consumidores de fabrico artesanal
no jardim interior do prédio posto à venda
ao fundo do rio livre do pensamento.
Protegidos contra a falsificação da liberdade
da topografia do amor melro virtual
de basalto afastando os números da má sorte.
O mau olhado da noite na lotaria da vida.

Florista Polícia ou Sacristão


Era segundo o cobrador do gás
a neta mais velha da relação-solipampa
da feiticeira-tesoura da Praça do Chile
da capital sem fronteiras de Portugal
e do chefe-de-mesa da Galiza
do melhor restaurante da Corunha.

Livre e sabida solteira e sedutora
tinha a escola toda lá isso tinha
pois a professora do ensino público
metia baixa coitadinha na hora certa
para não ter a bruta trabalheira
dos exames nacionais no fim de ano.

Previa um futuro colectivo melhor
substantivo raro na história dos homens
para ricos e pobres magras e gordas
e sempre com um sorriso no olhar
que abria a carteira e o coração-cliente
fosse ele florista polícia ou sacristão.

LES FEMMES DE PICASSO


Talvez um dia seja capaz
de copiar em palavras
redondilha as curvas redondas
das mulheres de Picasso
na rua das laranjeiras de todos.

A geometria inicial do pescoço de girafa
a escadaria imperfeita que vai da boca
até à cisterna no meio das pernas
umas mais curtas outras mais grossas
a volumetria negra dos púbis.

Interpretar as mamas com história
muito leite de cabra virada ao céu
como se fossem pedras altas
prontas a enfrentar a história
pedras ou mamas a desfazerem-se.

Com a chama fria do Inverno
a negar as bombas-aviação sem piedade
a acertar contas Gernika com o passado
que condiciona as lajes do futuro
e os arquivos queimados da República.

LAS DONAS DE PICASSO


Reconstruir as mulheres redondas
corpos que apetecem mesmo tocar
na tinta com a ponta da língua
mexer com os dedos de esteira seca
maria de los remédios y hematomas.

Armar paredes à volta do chapéu-de-sol
pelas areias das praias da Catalunha
com o pincel e o mata-borrão
das metáforas malditas da censura
da liberdade que não se deixa vencer.

Com sombrinhas encarnadas
guloseimas ao melhor preço
das raparigas espalhadas pelas ruas
à espera de serem pagas para em permuta
serem as flores da primeira penetração.

Corpos áridos de balões de sopro
e do toldo alugado ao dia por Olga
com a pele branca e indefesa
as pernas do mel fácil de ontem
abertas ao rebuliço do formigueiro.

Do mal que faz pelo bem que sabe
o absinto a escorrer pela barriga abaixo
tremores dos pés do velho piano
da santíssima trindade e do chumbo de caras
do malfadado exame de álgebra.

LAS MUJERES DE PICASSO


Sem segundas intenções afirmava
que o pano que servia
para secar as mãos e a testa
poupando usavam para limpar o sexo.
Parece que as mulheres de Picasso
já sabiam se lavado fica como novo.

Desenhar as bocas cruzadas
no cabide tonto da luz de madeira
os beijos de falso marfim
pendurados no bengaleiro austero
na messe oficial da noite franquista.

Colava língua como ninguêm
com cuspo condimentado de carteiro
na nudez distante do modelo
os morangos vindos da Galicia
nos bicos carregados de begónia cansada.

Pôr o sol a brilhar no bolso na carteira
do cavalete entre as pernas de pau-preto
local onde as enguias acasalavam Pablo
por debaixo das intimidades precoces
da folhagem expessa verde do feijão.

Para ajudar a festa do polegar em riste
do giz a poltrona de Paris partiu-se.
Ainda bem que a areia do corpo dela
era macia húmida e acolhedora tão boa
como o sofá das tardes às quintas-feiras.

AS MULLERES DE PICASSO


Porcelana a perdiz azul-azul esguia
a saltitar ao espelho fazia lembrar
da antiguidade uma galinha-de-água
na sensual embriaguez Dora do ciúme
que o vinho francês multiplicava mais.

Era nos fortes cheiros que ficavam
notícia as noitadas das insónias repetidas
para provisórias guerreiros fazerem as pazes
e a perdiz rosa-rosa a penetrar-se de prazer
entre épocas e cubas cheias de uvas azedas.

Seriam musas das que falam pouco
e fazem muito da fase da tela para vender
no bar da invenção das virgens
com búzios e caracoletas a subirem
as costas de bronze as paredes do quarto.

Cama alugada com os maços de dinheiros
que ganhou no concurso de dança
do retrato moderno da princesa eslava
que trazia a luz curva pela mão tão amada
e valiosa pele de arminho sobre os ombros.

Budapeste   , 2010

3. HISTÓRIAS PÚBLICAS E ESCRITA PRIVADA




"Ele, num gesto último, fechou-lhe os lábios co'as pontas dos dedos, e disse a finar-se: — Chorar não é remédio; só te peço que não me atraiçoes enquanto o meu corpo for quente. Deixou a cabeça nas esteiras e ficou. E Ela, num grito de garça, ergueu alto os braços a pedir o Céu para Ele, e a saltitar foi pelos jardins a sacudir as mãos, que todos os que passavam olharam para Ela
Pela manhã vinham os vizinhos em bicos dos pés espreitar por entre os bambus, e todos viram acocorada a gueixa abanando o morto com um leque de marfim.


A estampa do pires é igual."

José de Almada Negreiros

Escrito em 1915.
Publicado in Orfeu n.° 1


NOITES DAS FLORES


Foi nas noites longas das flores
- era assim que deixava de ser puro
aos olhos das bruxas velhas
dias de luzes e gemidos contidos
da malícia finita e sedução de fêmea.

Com as luas no corpo e o sol nas pernas
as cebolas roxas de Sansão e Dalila.
Minarete talvez fosse um pouco bizantino
em pequeno insonso tinha sido mordido
pelo cão-patriarca do avô-templário.

Os olhos mortiços de aprendiz
princesas às ordens do deus colérico
de Medina e d'Avignon da santa fé.
As embalagens clássicas de pó-de-arroz
sacas e sacos de chá pau-de-marmeleiro.

Assembleias gerais legalmente manipuladas
accionistas referência em postura de camaleão.
Seriam os testas-verniz de contraplacado
de bocas bem ditas e ámen-convincentes
nas longas noites da negação das flores.

SEM ABRIR OS OLHOS


Mesmo sem abrir os olhos
deixa espalhadas umas pinceladas
na transpiração viva das cores
pelas altas temperaturas do alcatrão.

Ali onde às telas inacabadas
se acomoda o seu peito de pedra
em traços rápidos de mais unos dibujos
os últimos retoques dos corpos
para merecer um bom almoço contigo.

Mesmo sem abrir os olhos
recorria a todas as forças para decifrar
os segredos forrados de veludo
por detrás da sua janela fechada.
Sorriso ousado de trapezista sem rede
desenhado no dourado das cortinas.

Só muito mais tarde soube
mesmo sem sair da penumbra
que conhecia o histórico do seu olhar.
Os sinais da biblioteca o livro proibido
entregue por debaixo do balcão
por cima das saudades da tua mão.

À pressa a fugir dos olhos abertos
do competéncia dos agentes nunca ausentes.
Assim o calvário da liberdade
do mito da dita ditadura do proletariado
da vitória bruta do ferro sobre a insubmissão.