sábado, 9 de janeiro de 2010

METÁFORAS URBANAS


SIMPLES TRIBUTO
Os Poetas-Cantores da minha vida


AS TUAS MĂOS APENAS
A Victor Jara


CIDADE DAS PALAVRAS


Pedro Assis Coimbra. Budapeste, 2008-2009
(Projecto - AS PALAVRAS CONTINUAM)

1. SIMPLES TRIBUTO

Os Poetas-Cantores da minha vida

A CURVA QUASE REDONDA

“Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
O amor malfeito depressa, fazer a barba partir”
Chico Buarque in “Deus lhe pague”

A curva quase redonda
Logo abaixo da cintura
Podia até ser industrial
Promoção comercial do mês.

Mas nem era universal
Nem saíu da oficina pequena
Não havia pedras sem picos
Nem água mineral destilada.

Até podia ser apenas benta
Nascente depois de Pentecostes
Dessse desejo de ser plural
Na recta final da sua glória.

A curva quase redonda
Que antecede a vida eterna
Branca pintada de branco
A dois palmos da cintura.

Logo abaixo do equador
Poço erva-alta da floresta
A subir sem gripar o motor
Muito perto da formosura.

Para lá dos montes mais verdes
Das curvas sempre a descer
Pois longe das mãos maiores
A lei é a dos braços mais fortes.

CULPA DA BAINHA

“Tu dors mais c’est triste à mourir
D’être obligé d’partir
Quand Paris dort encore”
Jacques Brel in “Fernand”

Bainha por emendar fazer descer
Rainha por enganar nas palavras do prazer
Bainha sem espada afiada por levantar
Rainha sem escolta masculina para proteger.

Não era a tal rainha magrinha a fugir
Dos flashes olho-vivo dos fotógrafos
Nem culpa da bainha que sem querer
Mostrava as calcinhas a descer do autocarro.

Ah! Nem princesas quanto mais rainha
Não anda de camião de bus de trambolhão
Pode mostrar as coxas se for coisa que se veja
Com as pressas do protocolo lá se foi a bainha.

Era imigrante avantajada só filhos eram seis
O homem militar ao serviço da nova pátria
A exportar democracia com o soldo reforçado
Fardada a rigor para limpar as retretes.

A varrer o lixo dos cães das senhoras
De algumas princesas com o cio alterado
Era uma tainha das Caneiras no Tejo pescada
Quando ainda no garfo era fataça na telha.

A sombrinha estava presa nas pétalas da florzinha
A malinha-de-mão vinda de Paris para a tainha
Com casinha e etiqueta cravada era a espinha
Tinha uma pipa de massa e julgava que era coisinha.

AREIAS NAVIO ESTUÁRIO SEM FIM

“Somos filhos da madrugada
Pelas praias do mar nos vamos”
José Afonso in “Canta Moço

No contra-relógio dos desejos de vitória
Favas cebolas e açafrão da poesia
Meninas de carvão nos nichos de mercado
Apresentação primeira da nova ferrovia.

As feitorias dos bem-mal-feitores
Eram fronteiras baluartes de arte falsa
Que o dinheiro grande tudo compra
Até o bom gosto e a má-inveja.

Brasil de ventre breve coxas imensas
Areias navio estuário sem fim
Seria arroz malandro de tamboril
Flor de acácia rosmaninho e alecrim.

Eram criadas de ricos homens
Desejos incertos do fumo digital
Mulheres a dias em casa dos remediados
Com folgas à sexta e feriado municipal.

O sabão raso do soldado a vulso
Tardes de sopa de cavalo cansado
Ração de guerra a dobrar na cantina
A visita nocturna à loja da albertina.

Dizia cada macaco no seu galho
Toda a injustiça para o chão
Acabei agora de sair do talho

Levo na mão o meu pedaço de pão.


CORACĂO DE PEDRA COISAS DE VERGA

“Mi amor, no es amor de mercado”
Silvio Rodriguez in “Por quien merece amor”

Quem iria pensar que aqueles dois
Com um cheiro forte a verão
Tinham para contar tantas histórias
De fivelas no cantinho das esplanadas.

Apressada decidida trabalhadora
Caminhava com os seus pés brancos
Como o formigueiro das formigas
Brancas nas asas e pretas no resto.

Pés pareciam pequenos enfiados à força
Nos sapatos encantados limpos pela cadela
Infanta que à lareira da cozinha se aquecia
A consolava e lhe secava todas as lágrimas.

A bichana vestida com pouca roupa
Era muita pele à mostra para a idade
Mas se quanto mais amor menos tecido
Assim diga-se até parecia uma freira.

Tal era a paixão sem princípio nem fim
Pelo filho mais velho do padeiro
Da melhor padaria do bairro de comer
E pedir mais antes mesmo de acabar.

Malvado coração de pedra coisas de verga
Que a trocou por uma finória altiva
Herdeira que trabalha no shopping para distrair
Filha do dono da loja dos relógios da Suiça.

ARRANJOU UM BOM EMPREGO

“Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe”
Chico Buarque in “Construção”

Arranjou um bom emprego
Pois sabia de folhas de cálculo
Do mercado das placas de latão
Da importância da água potável.

Era a cópia perfeita da criação
Já sem o contributo divino
Mão do mistério desconhecido
De ateu que só sonhava com sapos.

Andava de gravata o dia inteiro
Contava anedotas sem picantes
Falava de cabras e de carneiros
Gostava viajar dormir em beliches.

Que atire o primeiro olhar de pedra
Antes da ripagem do linho da seda
De súbditos submissos e beija-mão
Pescadores pais e filhos do contra.

Pegar cedinho na cana de pesca
Pescar o futuro e o depois tambêm
Em forma de sino e de aurora
Em forma de inverno e carapau.

Devia ser um prédio muito antigo
De um passado já esquecido
Deus de todos e só de alguns
Na via de um caminho sem regresso.

DE PATAS PARA O AR

“J’insulterai les bourgeois
Sans crainte et sans remords
Une derniėre fois”
Jacques Brel in “Le dernier repas”

O cão citadino do bairro arejado
De cabeça perdida ladrava furioso
Farto de engolir baba e saliva
Das provocações da gata da vizinha.

Dos desafios do lado de lá da vedação
Na rua pela trela o outro com a dona
Ar de gozão dentes à mostra mija no muro
Que eu ao menos passeio brutamontes.

Para que serve esse tamanho todo
Se estás aí fechado a vida inteira
E ainda vem o dono mandar calar
Com ameaças de um valente pontapé.

Vida de cão sem sorte e sem mulher
Sobre a qual bem poderia descarregar
A crispação acumulada raio da cadela
Gaja interesseira ó lá o que ela é.

Só a trazem faz o rei anos para a cobrir
Como se um reles barrasco ou galifão
Como simples operário pago à hora
Pelas leis de quem governa o mundo cão.

Amigo isto está tudo de patas para o ar
Não se pode dar uma boa coça a um gato
E os ossos são de borracha para entreter.
Só uma boa sublevação rafeira pode ajudar.

ENCOBRE OS MONTES DE PRATA

“Eu fui ver uma donzela
Numa barquinha a dormir
Dei-lhe uma colcha de seda
Para nela se cobrir”
José Afonso in “Cantigas de Maio”

Menina da calça branca
Não te percas no matagal
Prende bem a tua trança
E cuida-te no tomatal.

Menina da saia curta
Não perturbes o galinheiro
Guarda na gaveta a truta
Pôe-te debaixo do chuveiro.

Menina do vestido laranja
Não te ponhas assim na esteira
Levanta-o até à sombra
Não te queimes na frigideira.

Menina da camisa aberta
Não te esqueças do cordel
Encobre os montes de prata
Mas não durmas no hotel.

Menina de fato de banho
Não tenhas tanta vergonha
Utiliza o balneário público
Que não és nenhuma peçonha.

Menina do corpo ao vento
Na rua compõe melhor as pernas
E se caminhas contra o tempo
Guarda bem essas duas pedras.

DIA DE SOSSEGAR SEGREDOS

“Imagínate
Que hasta mi perro
Me busca en tu puerta
Cuando me lo pierdo”
Silvio Rodriguez in “Imagínate”

Hoje é dia dos silêncios
Dos licores feitos de ervas
Noite de todos os aromas
Que pintor pintas nas telas.

Havia uma pátria cercada
Mil vidas no charco perdido
A carteira menos pesada
À beira do ramo partido.

Na barriga das palavras
Baleia agreste e altiva
Sufocava a fera no fumo
Abria os olhos ao mundo.

Há saída da primeira cereja
Havia um guindaste parado
Junto à torre da igreja
O trânsito local cortado.

É uma ameaça à solta
Esse teu decote excessivo
Com perigo de chapa torcida
Travão a fundo é preciso.

Hoje é a noite das carícias
Consentidas só nos cabelos
Pratos de todas as delícias
Dia de sossegar segredos.

DANÇA DANÇA NO CAPIM

“Será que ela tá na cozinha guisando a galinha cabidela?
Será que esqueceu da galinha e ficou batucando na panela?”
Chico Buarque in “Morena de Angola”

No terraço ao sol era o tecido de cetim
Que escondia as ligas das pernas grossas
Morena de Angola dança dança no capim
Das orelhas do tacho faz uma das tuas graças.

Migas para despachar de pressa e à peça
Pois a sarda estava salgada pronta a comer
Como chicharro acabadinho de pescar
Para cozer com couves ou com nabiça.

O mármore-rosa mais caro de Portugal
Espalhou pelo rio as tranças e o oiro
O bacalhau desfiado pelas colinas de Lisboa
No feijão frade para bravo calmar o toiro.

A andar para trás como o caranguejo
E eu madrinha tenho tanto medo
Fiquei com os colegas assistir ao cortejo
Aí assim não chego a casa tão cedo.

Luanda cintas e os cintos da tentação
Junto à praia na ilha das águas fundas
Os peitos eram negros e das mãos negas
Na avenida marginal insubmissa a sedução.

Begónias algures longe de tudo e de todos
Na igreja com Deus dos mais abastados
Que divino não se ocupa de detalhes
Por detrás do tapume vivem os simples.

NUMA LOJA DE TAPETES

“Je vous ai apporté les bonbons
Parce que les fleurs c’est périssable”
Jacques Brel in “Les bonbons”

Tinha no bolso um livro de cheques
Como era poupado tinham cobertura
Vendia numa loja antiga de tapetes
Gostar dela só podia ser sua loucura.

Como um morcego perdido na noite
No refúgio fictício do tempo
Escondido na caixinha de costura
Assustado com os plágios do vento.

Do sotão com vista para as traseiras
Do pomar cuidado pelas freiras
Da caridade a mãe melro voava baixo
Com a lesma pendurada no bico.

Cem quilómetros de camioneta
Para passar a tarde de Domingo
Acompanhar até ao ensaio do coro
De volta vinha sempre sempre sózinho.

Em casa estava cheia a fruteira
Mas era outra a fruta que queria
Apenas que ela fosse a sua feiticeira
A montanha maior da sua alegria.

A água muda quase desvanecida
Corre sequiosa pelo corpo pelo carvão
Os silêncios pela pedra esquecida
Do que foi um dia o seu coração.

NĂO TE FIQUES PELA FONTE

“E quando os pais são feitos em torresmos
Não matam os tiranos pedem mais”
José Afonso in “Os Eunucos”

Não te fiques pela fonte
Sem antes passares a ponte
E como também és gente
se preciso ferra-lhe o dente.

Mas vá lá sê paciente
Tira a cara do trombone
Arrisca aperta o braço à ivone
Diz que estarás sempre presente.

Não te fiques com o açoite
Que as contas são por ajuste
Um dia tu estarás à frente
Serás água pura da nascente.

Chamam ao rapaz paquete
E à rapariga papas servente
Tudo tudo comida muito doce
Triste a alegria assim fosse.

Limpa bem o bocal do trompete
Como se fosse flor de ramalhete
Sorrisos não te vás por convite
É melhor preparar o canivete.

Pôe a boca no teu saxofone
Enfia a cabeça no capacete
Não não tenhas medo da morte
Que já se foi de furgonete.

MOUSSE DE CHOCOLATE DE ONTEM

“Tus piernas de tres a seis de la tarde
En la memoria de pronto me arden
Y cuando quiero aliviar mi locura
Sólo me calma comer aceitunas”
Silvio Rodriguez in “Aceitunas”

De joelhos comiam no divã
A mousse de chocolate de ontem
Com apenas uma colher para os três
Bem ficaram todos lambuçados.

Tiveram sem grandes demoras
Que lavar a blusa e as calças
Pois mais à noite na sociedade
De saias tinham actuação das danças.

Nem o esfregão humedecido
O rolo de papel de cozinha
Permitiu pelo menos disfarçar
Lástima sem pózinhos da varinha.

Antes da chegada atribulada
Dos senhores donos da casa
Do pobre divã de pele antiga
Curtida ao sol na pampa argentina.

Que lhes deram um grande abraço
Felizes ficaram tão contentes
De vez finalmente poderem trocar
Na salinha a mobília do passado.

Onde guardam as guloseimas
E quando sobejam outras doçarias
Do restaurante e da pastelaria ao lado
Geridos pela família vai para cem anos.

DESABOTOANDO O VITRAL

“Quando eles embarcam soldados
Elas tecem longos bordados”
Chico Buarque in “Mulheres de Atenas”

Desabotoando o vitral do sorriso
Dos dentes sem cárie desbotados
Tinham comido laranjas azedas a mais
Esqueçeram impérios e imperialistas.

As mamas madrilenas da jornalista
Legendadas e em directo via satélite
Metade delas pelo menos a olho nu
Ai seriam um senhor petisco para os dedos.

Nesta prosa do erotismo sem metáforas
Profundo se até o Tango se dança a dois
Com noites da semana e pernas de Domingo
E do liberalismo económico tonto sem calções.

Nos atalhos da metafísica um Santo
Ou quase de um quase muito grande
E nos becos mal iluminados da dialética
Montavam-se um no outro à louva-a-deus.

E se alguêm merece ser amanhã
Que se ponha ordeiro no fim da fila
Mande vir um pratinho de caracóis
E ainda duas imperiais fresquinhas.

Desabotoando as cascas do sorriso
Amoras azuis morangos vermelhos
Não sei o que Pitágoras sabia melhor
Se matemática se música ou se palavras.

TRAZ AS BRASAS DO FOGO

“Tu m’as gardé de piėge en piėge
Je t’ai perdue de temps en temps”
Jacques Brel in “La chanson Des Vieux Amants”

Nos arredores dessa grande paixão
Madrugadas do teu corpo meu amor
Na sementeira perdida do melhor pão
Não não te esqueças de levar a flor.

De a levar para a grande cidade
Alí onde todas as ruas têm nome
Pedras gastas no prazer do ciúme
Que eu encontrei dentro da nossa saudade.

Lá na vaga periferia do desejo
Do sorriso generoso do vinho fortificado
Perfume esquecido desse segredo
E não despertar do sonho frutificado.

Que a calma da manhã verde mar
Fervedor de mão e leite do dia
Frente ao espelho sem ti quem diria
Era sombra que já não sabia cantar.

Era um guarda-roupa de bom gosto
Com o doce profundo das suas uvas
Traz as brasas guardadas do fogo
Até às pernas às noites das viúvas.

Como os plátanos à beira dos caminhos
Pela distância dos olhos alongados
Perdição de cegonhas de amor de perdiz
Na cor difusa dos planaltos do teu país.

O PASSADO É PARA ESQUECER

“O mar é tão grande
E o mundo é tão largo
Maria bonita
Onde vamos morar”
José Afonso in “Canção de Desterro”

As ruas e as avenidas deste país
Estão cada vez mais desertas
Ausentes cada vez nais tristes
Sem barulho correrias malandríce.

Porque quase todas as crianças
Passam o tempo fechadas em casa
A ver televisão frente ao computador
Com lucro acrescido os oculistas.

As maiores empresas do mercado
O operador de telecomunicações escolhido
Perto vertiginosamente do mundo
Longe do vizinho do lado de lá do vidro.

Não há onde correr jogar à bola
Onde brincar aos polícias e aos ladrões
Onde descarregar energias renovadas
De muitos quilos livros e aulas a mais.

Os professores inimigos são perseguidos
Controlados pela burocracia do ministério
Em nome da eficiência e da avaliação
De como se limpa o cu em vez de ensinar.

Teorias e axiomas iluminados consultores
Importados do outro lado do Atlântico
Dizer porra o passado é para se deixar
Que o futuro será de quem o conquistar.

OLHAVA-ME O GATO PRETO

”Tu tiempo se metió en mi tiempo”
Silvio Rodriguez in “Que yá viví, que te vás”

Mesmo no meio da estrada
À minha frente parado
Com os olhos arremelgados
Olhava-me o gato preto.

Dizía-me em língua de gato
Codificada código actualizado
Qual é o problema? Se és capaz
Passa por cima passa-me a ferro.

Faz de mim espalmado palmeta
Espinha de pinho ministro sem procura
Tenta na loja de conveniência
Que nem no supermercado se vende.

Misturado confundido no asfalto
Eu zangado às oito da manhã
Bem podia buzinar nervoso
Quem dava passaporte era o gato.

Atenta a mulher polícia confirmou
Que quem mandava ali era ele.
Preto depois o pavão lá se decidiu
Enfiar-se pelas sebes do portão.

Estas e outras mentiras caseiras
Comprada pela grande maioria
Assim te fazias aos poucos cidade
Folha reciclada sem ventos de liberdade.

PEITO DE TERRA BATIDA

“Larga a minha mão, solta as unhas do meu coração
Que ele está apressado”
Chico Buarque in “De todas as maneiras”

Tinha o peito de campo de golfe perfeito
De relva de ténis rede de terra batida
Espalhado entre sobreiros e ravinas
Que íam dar à falésia dos seios ao léu.

Para ser um erotismo caro com classe
De condomínio fechado de muito bom gosto
Seios redondos de praia e avião particular
Ser uma paixão a jacto ainda mais cara.

Um gozo erótico redondo pouco católico
Medido em milhas acumuladas nas nuvens
Nas aterragens amenas sem vento lateral
Dentro do aeroporto feminino do seu peito.

Tinha seios duros de caixa-automática
Que engolia o cartão e devolvia o talão
E na fila saídos da areia à torreira do sol
Impacientes por ainda hoje lá chegarem.

Seios de auto-estrada com custos acrescidos
Para a vaca leiteira do contribuinte
Peito de triângulo que avaria anuncia
Com o reboque dos frangos de aviário.

Seios para o congelador do hipermercado
Talvez em forma de guiador e camião
No prazer de uma só mão! Perdão!
Aqui não são seios nas gajas são tetas.

UM CORPO DO DESERTO

“Moi je t’offrirai
Des perles de pluie
Venues de pays
Où il ne pleut pas”
Jacques Brel in “Ne me quitte pas”

Um corpo húmido no forno do deserto
Da África preta ou quase quase seca
Um corpo duro e rijo ao sol sem piedade
Dos ritos de onde é este meu irmão.

No solo mais duro e mais seco
Sem água e vinho sem cerveja
Chegava afinal fria gelada da vizinha
A arder da cordilheira ali junto ao Pacífico.

Corpo da floresta e da guerrilha
De corpos cansados de prisioneiros
Dos latinos comandantes manda-chuvas
Até aos lagos das pernas escravas.

Mesmo à lupa e a contra-luz
Um corpo de perfeição que devolvia
As dúvidas as contas e os recibos
Quando insistiam teimosos e brutos.

Lançavam-lhe gorilas de meter medo
Às canelas ao peito e às ancas e ela
Presenteava-lhes o seu mais genuíno
Franqueava-lhes por completo o arco-íris.

Tem sempre razão o freguês a freguesia
Até saldar a próxima divida por pagar
A próxima África irmã deixada de barco
A próxima refêm com sorte e televisão.

PAREDES E MUROS SEM TEMPO

“São os mordomos do universo todo”
José Afonso in “Os Vampiros”

Nas alamedas das palavras
Nos mapas-côr-de-morango
Já despedimos muitos tiranos
Nos ombros do pensamento.

Já velámos defuntas tiranias
Com a sublevação do vento
Rosas necessárias à morte
Da subserviência e submissão.

Voando sobre o marmeleiro
Frágil ansiedade triste da poesia
Eram paredes e muros sem tempo
Que o seu tempo já nos pertencia.

Nas vésperas da ementa preferida
Do peixe-frito e arroz-de-tomate
Às vezes até pensaram em cantar
Jogar futebol por amor os tontos.

A mota da gasolina super da lua
Na almofada onde descansava
À espera de entrar ao serviço
No primeiro turno da madrugada.

Roupas claras e rabos escuros
Com os saiotes para disfarçar
Nos cornos do veado primo e irmão
Para imortal ir ao encontro dos povos.

PRATELEIRA DO SORRISO

“Sueňa caballos cerreros
Suéňame viento del sur
Sueňa un tiempo de aguaceros
En el valle de la luz”
Silvio Rodriguez in “En el claro de la luna”

Para imprimir as palavras
Com alicates de corte
Deixa o amola-tesouras
Vira as costas à sorte.

Abre de súbito as portas à luz
Estranhos dedos de estanho
Prateleira do sorriso que seduz
Cascalho e casquilho castanho.

Aos enamorados das sombras
Na abundância dos alimentos
Junto ao lago as lágrimas
No conflito dos silêncios.

Na conspiração das flores
Que anunciam a claridade
Para o rimar certo das dores
Semeia no jardim da igualdade.

No jogo da cabra-cega
Escolhe a bolacha-maria
Deixa o frio na loja de pedra
E repousa no tempo da poesia.

Para mastigar as palavras
E recriar as metáforas
Para reescrever um tango
Usa a bossa nova do fado.

2. AS TUAS MĂOS APENAS

A Victor Jara

AS MĂOS E AS PALAVRAS

“Pongo en tus manos
abiertas"  Victor Jara

Finge fugir do toque e foge da paixão
e deixa-se apanhar preguiçosa
pelo barro pelo salitre das mãos.

Tocam a sua pele de formação recente
como quem chega do deserto de ninguêm
de um rio do mistério mais próximo.

Guardam na cave a aritmética das palavras
nas paredes o sujeito e o predicado do prazer.

A UTOPIA DAS MĂOS


Descendo a pé pelas encostas
da cordilheira inóspita da utopia
as metáforas chegavam frescas
dos bosques até ao sopé da poesia.

Era o mar salgado do Chile
de quase todos que trazia
nas palavras recolhidas pelo povo
com caracóis e ervas secas
raminhos de oregão e tomilho.

Trazia no bolso da camisa
barcos pequenos a remos
barcos de pesca com água forte
de pescadores pescando
e na pele queimada do mar alto
calças grossas de cotim bravio
navios navegando contra o vento.

As suas mãos profundas
caiando de branco as casas escuras
dos mais simples no bairro operário
dos mineiros das minas de sempre.
Trazia nas unhas nas mãos ainda sujas
e brancas da cal a camisa de flanela
da moda futurista aos quadrados.

Trazia polvos dos perigos das rochas
pimentos para assar na brasa e peixe fresco
acabado de pescar pelo irmão do destino.
Com cuidado dizem até as praias
da madrugada já clara após a noite
mais triste dos que pensam ter castelos
serem muralhas mais fortes que Deus.

A noite mais fria apesar do lume das mãos
da guitarra que oferecera ao seu povo.
Era o mar salgado do Chile
a noite mais longa por vezes iluminada
pelos seus versos proibidos
pela luz frágil da liberdade sincera
do farol da memória sem fim
na alegria destemida da voz.

Carlos Violeta Rodrigo Isabel
não sei se Victor Jara terá escrito
talvez não mas poderia ter cantado.

- Os trabalhadores sempre tabalharam
e quando não o fizeram é porque
estavam doentes ou no desemprego.

AS MĂOS DA MANHĂ

“Yo no creo em nada
sino en en calor de tu mano com mi mano” Victor Jara

Juntam conquilhas com nuvens
que arenosas descem o sol devagar
e crescem fortes com as chuvas
que anunciam o calor da tempestade
decorada com as tuas e as minhas mãos.

Sei dos teus dedos frios de inverno
que não trocaria por nenhuma primavera.

Os corpos iluminados pelo candeeiro
tão enrolados no papel de parede
da sala de visitas que desce liso do tecto
até ao pedacinho de madeira dos lábios
ao ritual dos cabelos espalhados na almofada.

São amor manhãs afectos e são carinhos
das colheitas plenas que as nossas mãos guardam.

AS MĂOS DO CORAÇĂO


Deixem-me com a luz do seu sorriso
arquitecto de todos os espelhos distantes
e de mensagens nos limites do milagre
partículas da densidade intensa
da erosão argila dos vocábulos finitos.
Deixem-me abrir uma rosa vermelha
habitada por muitas formigas brancas
de asas pretas na transparência das águas.

Eu deixava-me ficar pois era a sede
da serpente que se protegia no lodo
e se escondia nas margens
no casúlo esquecido da seda
a do feitíço perfeito do quarto vazio
de nadas junto ao coração das mãos.
As palavras passageiras da sedução
entre as folhas da sua boca tão sedutora

A NOITE E AS MĂOS

“Las manos parecían colgarle de los brazos en extraňo ángulo
como si tuviera rotas las muňecas; pero era Victor, mi marido, mi amor” Joan Turner

Prometo-te que um dia meu amor
um dia de sol ao fim da tarde partilhando
dores dos joelhos dores nas costas
as rugas vadías no oceano dos rostos
partilhando um copinho de aguardente
de uva fabrico caseiro não certificado.

Prometo-te que um dia meu amor
já com uma mão-cheia de netos
filhos das nossas filhas do vento
que como se fosse a última vez
seguro com as minhas as tuas mãos
pequenas cúmplices de tantos segredos.

Seguro as tuas mãos sedosas
ainda húmidas da maresia da manhã
pego em ti meu amor
como se faz a um ouriço perdido
a atravessar descuidado a estrada da vida
fora da passadeira do sonho.

Prendo-te entre os meus braços
de laranjeira recém-plantada
do próximo ano em flor
e nunca mais te devolvo à poesia
à nossa canção primeira
às palavras do futuro do passado.

Meu baguinho de arroz doce.
Quando repousei os meus olhos
fechados à força sobre a grossa manta
solidária que te protegia do frio da noite
meu amor soube então meu amor
sei que essas mãos eram as tuas.

Budapeste, Janeiro-Fevereiro 2009

3. CIDADE DAS PALAVRAS


“Bebemos sonhos pelo mesmo copo.
Fugiram das cidades em partilha.”  Natércia Freire

MANHÃ DOS NAMORADOS


Ao vivo num instante tão breve
de despedida foi talvez o beijo-oferta
terno o beijo-entrega mais lindo que vi.

Avantajada metida um pouco à força
de manhã nos seus jeans coçados
até parecia que tinham encolhido à pressa.

Gorduchinha agarra-te a ele formosa
mas deixa-o partir que ele vai voltar
abandona-te nas suas mãos grandes
de estucador engenheiro ou programador.

Poesia é fixar a felicidade dos outros
trazê-la com metáforas para as palavras
escolher algumas e levá-las para casa
no bolso que fica mais perto do coração.

CIDADES E DIOCESES

A Bognár Karcsi

As minhas cidades rimam com dioceses
mas são tão púdicas que do erotismo público
a biblioteca namoradeira faz de estrangeira.

Rapariguinhas grossistas e notícias de jornais
cerejas pretas que colecionavam na pele lisa
escurecida pelo sol na cúpula do mosteiro.

Apesar das águas termais referenciadas
da hotelaria luxuosa dos ombros e outras
portas entreabertas pelo desígnio dos olhos
não queriam tintas e quintas queriam banhos.

Em tinas com leite de burra como a mais linda
na plataforma continental do seu corpo
em imersão famosa a prima que vinha do tempo
quando ainda não havia petróleo para refrescar.

A MELHOR FOLIA TRISTE

A Jorge Luis Borges, tão injustiçado

A folia magra magrinha do mais belo
imagina não tem princípio nem fim
mais a mais como é muito pequeno
pensa que o mundo é mesmo assim.

Partiu no primeiro cavalo trambolho
ele que nem braços nem pernas tinha
bateu com o resto no metal do orvalho
só para sózinho poder pintar a pinha.

A desgraça histórica de longe a mais feia
foi ter andado sempre de tromba no chão
sem relógio nem sabia as horas da ceia
com fome palerma ficou à mercê do falcão.

Que pena nem um telefone nesta lonjura!
Por muito que faça o feitiço não perdura!

DOMINGO

A Ernesto Rodrigues

Da crista do galo a dançar a salsa
que nem um diabo ao sacrista do rapaz
um artista de bola no pé e copo na mão.
Seria agora um bom exemplo de cristão.

De homem grande não ser grande homem.
O sacristão tão humilde na sacristia comia
pão com dentes e tostas de hipermercado
abençoadas pelo bafo a mofo de outros santos.

Foi na primavera gostaria de recordar
esse domingo com a mulher e os filhos
tinha acabado de sair da missa da igreja.

Não teve cuidado foi contra o carro parado
olhou à volta e arrancou rápido e superior.
Pudera acabara de se entregar ao Nosso Senhor.

SÁBADO

Ao Pedro Pinhal

Levantate y mira la montaňa*
limpa varre o passeio em frente
endireita o guiador e enche o pneu
da bicicleta do teu filho pequeno.

Aproveita que é Sábado põe óleo
nas dobradiças das portas que chiam
trocas as lampadas que se fundiram
pregos na dispensa e na marquise.

Levanta-te pela manhã irmão que tens
muito tempo de dormir quando partires
faz coisas vulgares de pessoas comuns
de super homens está o mundo cansado.

Levantate y mira la montaňa*
antes que tapem de vez os olhos de todos.

* Victor Jara in "Plegaria a un labrador"

SONETOS E SONATAS

A Pál Ferenc

Como era possível soneto
cruzar assim as duas pernas
no ferro da cadeira sem costas
dessa maneira e sem medo.

Antes da sonata aos domingos
descer ao vale por entre serras
fronteiras e degustação nas encostas
que nos afastavam dos maus ventos.

Que nos separavam do tempo
e da promoção nocturna das uvas
do privilégio apenas de algumas ruas.

Abertas com o mar portugués ao fundo
na primeira tradução urbana a tua
da boca Pessoa nos lábios do mundo.

LORCA DE GALICIA

Ao Pedro Amendoeira

Foi na cave do armazém das aranhas
que tudo começou do que não ficou.
Havia algumas bem grandes duras e gordas
que nos recebiam de teias abertas
partilhavam o petisco das moscas varejeiras.

Começava assim Chove en Santiago
Meu doce amor escreveu-nos Lorca
ainda antes da chuva antes da morte
depois da Galiza depois do amor.
Antes de Santiago depois da liberdade.

As bruxas vestidas de gargalhadas maduras
não havia noite que não viessem guitarras
ofereciam a todos cigarros e raparigas
Que bom! Entre feitiços as ratinhas peludas.

SPORTING-GLASGOW RANGERS (1971)

A Vitor Damas

Era pela rádio um velho transistor
que o futebol me chegava a casa
hoje na televisão não vejo melhor.

Coração aos pulos os ouvidos colados
a pilhas eterno ecoava na cave na rua
o relato do Sporting força força vamos!

Eu dizia mas dali ninguêm me ouvia
- as regras mudaram são outras *
os penáltis todos nas tuas mãos Damas
aos saltos esquecido era só euforia.

O despertar foi na manhã do outro dia
ao café a torrada ligada a telefonia.
- Porra! Estão a ver afinal eu bem sabia!
tinha sido em vão tanta tanta alegria.

* Estava bem informado. Por comprar A Bola
às segundas e às quintas não comia a sandes do dia.

EM ALMOSTER – TINHA VINDO DE EGER (1998)


Pauta ou puta para Auto-da-Índia não é o mesmo
que se alguêm se engana nem com a melhor lixívia
se limpam as nódoas no layout corporativo
no acto público da acta lavrada no automóvel parado
em operação apoiada pelo corpo de intervenção.

Ó Constança Constança não te chega um marido longe
e a navegar queres logo dois passarões à disposição!

Uma jovem magiar do fim do mundo ainda fresca
com esta vida fora de mão em pouco tempo
e um chulo ribatejano a fazer-se amigo sem ninguêm
com coragem para lhe partir o tabaco dos dentes.

Pauta ou puta a falar tão bem a língua que aprendeu
em pouco tempo muito burro e algum bom gosto
por cima e por baixo de muito cavalo lusitano.

TAXI EM ZAGREB


Em Zagreb familiar meu amor
sem vinhedos eras a água fria
da sede colectiva das rolas
à procura do telhado em nós.

A ousadia de Amesterdão
começou porque inesperadamente
taça de uvas tu decidiste provar.
Na rua o vinho branco era meu.

Em Barcelona na lenta subida
às cepas do monte sei que sabias.
Imaginava que o autocarro eras tu.

E gosto muito de estar no Porto.
Porto é para sentir percorrer a pé
de não beber antes de chegares à noite.

PROPAGANDA MÉDICA

A Eckhardt Balázs

Um charme de don juan entre as enfermeiras
solteiras e divorciadas até que um dia Nossa
Senhora o enganado deu-lhe uma tal maquia
ainda hoje tem um pedaço de orelha a menos.

Um mãos largas agente de propaganda
um senhor de camisa branca entre médicos
clínicos de renome grandes especialistas
congressos mundiais corporate responsability.

Olha olha com a saúde do povo não se brinca
nem com os votos dos eleitores com mais idade
há cacau o estado paga e as gigantes lucram.

Na bolsa filantropia não rima com mercado
mas com gosto poderão patrocinar em parceria
um torneio de ténis com caridade e alquimia.

HOSPITAL SZENT JÁNOS


O meu omelete na linguagem de casa
quer dizer o meu sem-abrigo privado.
Um omelete e até podia dizer gemada
ovo estrelado bife com um ovo a cavalo.

Tenho o meu sem-abrigo particular
no semáforo do Hospital São João
a quem três quatro vezes por semana
dou uns trocos sem lhe tocar na mão.

Umas moedas para ele a seguir ir comprar
um dedo de pão e dois braços de aguardente
de se queimar para melhor suportar a noite.

Com brilho de gato no escuro da escuridão
o meu omelete tem uns olhos tão intensos que
mas cantigas assim só aumentam a confusão.

QUEIJO E ESCUTAR BRETON!

Ao António Faria

Agora troca as voltas à morte ó queijo
manda atentas as secretas à merda
a fingir oferecer maçãs descascadas
baratas compradas à madrasta malvada.

Antes de se perder de calores aí aí!
No ginásio de que não perde um só dia
o espelho dela e teu espelho partido.

Mudar de vida pensava como Rimbaud
a arder no amor sem a fada madrinha saber
dizia de Marx para transformar o mundo
e chegar a tempo de escutar Breton.

Era uma bela descapotável carrocinha
de uma família do norte que se esquecia
porra do azar! Pagar os salários às operárias!

ELÉCTRICO


Movia-se entre os carris como quem estava atrasada
caminhava apressada como quem gostaria já lá estar.

Assumir eléctrico a transgressão de cara levantada
correr o risco de ser apanhada a meio do projecto
ao libertar o coração em vez de correr para o emprego
como fazia todas as manhãs o ano inteiro menos agora.

De véspera com um dia de baixa médica para baixar
peça a peça a roupa toda e subir e descer e voltar a subir
às escondidas com a mansidão intíma à sua espera.

Logo à primeira esqueceu o pudor ignorou a cidade
pois cruzou os olhos o corpo com a igreja matriz
frente à janela com a raíz mais funda do plátano maior.

Queria apenas não ter que usar as escadas ir à farmácia
levantar a receita para o filho e voltar a correr para casa.

D’ORSAY BERTHE E MANET


Não saberia explicar mas só me vinha à cabeça
caminhos-de-ferro a magia da estação d’Orsay
“O tocador de pífaro” “A jovem loira mostrando o peito”.

Com a máquina da verdade e o repúdio das mentiras
que chegou no vagão das mercadorias delicadas
comboio Berthe Morisot sabias que partia de Paris?

Do filme a preto e branco com inimigos e aliados
o telégrafo da ilusão mastigada na pastilha elástica
agarrada à sola do sapato que perdeu o tacão
Edouard à entrada da gare na cabine do revisor.

Com impressão de já ter visto aquele cachecol
aldrabão a vender camas como chefe da estacão
que o dinheiro poupado dava para uma boa salada
meio-frango assado uma cerveja e duas fatias de pão.

METÁFORAS URBANAS


O teu corpo de pedra
é seta redonda de prata
no arco do lado de cá
alongada sobre a vida
e na postura como está!

Merece todas as promessas
as manhãs dos meus olhos
todas as metáforas urbanas.

No silêncio o pior é o resto
na dúvida vamos lá conversar
para saber chegar até ao mar.

Batel como usar a pasteleira
para que possamos embarcar
chegar a tempo e ficar à tua espera.

JARDIM DA REPÚBLICA


Foi calceteiro praça teimosa do povo
do pequeno negócio do quiosque do largo
do jogo da malha no beco preferido dos cães
Feira da Ladra no mercado do piolho.

Jardim enxada de pontas de dois bicos
forquilha de dentes muito amarelos
canteiro amanhado do jardineiro privado
com muitos goivos rosas e amores-perfeitos.

Foi água da inundação premeditada
o poço subversivo tapado na boca
calcário abandonado na fronteira da república
- basalto de ferro e arena de touros falida.

Estádio de futebol com as bancadas cheias.
Foi mensageiro das belas mamas das primas.

AVALIAÇÃO & PROMOÇÃO


Põe um lenço um pano uma colcha preta
mesmo se a traça já iniciou a viagem.

Com cuidado põe sobre o relógio de parede
liberta o cordeiro da prisão do tempo
que em coisas de morte o melhor é prevenir.

Melhor que fugir dela a sete pés primeiro.
Compra um bimotor que saiba aterrar
ao fundo do campo lavrado das cebolas.

Na inflamação da garganta de tanto negar
em silêncio que não se vende por uma sala
só para ela carro telemóvel e mais cartão.

Acabou por ajustar as roupas bem justas
apertar as carnes deixar que as nádegas
comunicassem com os olhos da promoção.

NAVIOS PARADOS


Dizia: são tantos os navios mercantes
no grande porto desse meu sonho
tanta pedra tanto coração afundado
por debaixo dos cascos castanhos.

Navios com guindastes e vidas desfeitas
parados a meio da subida com a visita
do inspector acompanhado pelas comissária
dos direitos das famílias e das minorias.

Quando poderia ir ao hospital para a prova
dos nove mais coisa menos barriga do mês
se foi com ele que ela se meteu na cama.

Dizia: são tão marcantes estes navios parados
na doca da saída colectiva dos marinheiros  
do vinho doce na boca onde de amor se entrega.

FAZER FESTAS A GATOS

Ao António Felizardo

Sobre a calçada em esforço pedala
de dorso inclinado ó máquina que a hora
não é de parar e de fazer festas a gatos!

De perguntar como se sente das pernas
de não responder se sente livre das espinhas
do peixe perigoso do jantar de ontem à noite.

Milena andava com a Estrela de David
ousadia solidária mesmo sem ser judia
ainda antes de encontrar a mulher da sua vida.

Triste época de um tempo ranhoso
que fazia de muitos cúmplices cinzentos
das tardes que na terra precediam o inferno.

Que não rima mas talvez sejado sabor
que se o ar do mundo não enferrujar de vez
se possa acreditar – o futuro será melhor!

NAGY UTAZÁS*

A Presser Gábor


Não não era pele de leopardo da marca registada que o feiticeiro
oferece às jovens outrora virgens e às vezes criadas modelo
que os pais com orgulho trocam por mézinhas e melhor destino
esse sentimento único de fazer parte de uma élite tão restrita
antes das filhas se lançarem na moda e na aventura da fama.

Eram as pernas divinas de uma leoparda de carne e pardal
que ali felizmente não tinha retrovisores olhos à retaguarda
começou a sentir a presença do observador internacional
de olhar atento colado até ao mármore do seu rabo sazonal.

Foi quando desabou de repente uma tempestade tropical
e a fera ficou tão preocupada com o seu pêlo de vitrine
que correu para casa mesmo sem levar a gabardine
mas debaixo do plástico que tinha guardado na limousine
e servido para embrulhar a cómoda comprada no caniçal.

*Grande Viagem. Título da composição
do cantautor e compositor Presser Gábor


SE A VIDA FOSSE A POESIA


Se começar a chover meu amor
cobre-me com o teu corpo dizia
para não ficar de roupa encharcada
molhada até ao mais fundo de mim
por favor põe-te por cima pedia.

Se a minha vida fosse a poesia
com a primavera de seda no bairro
por dentro dos abrigos da cidade
antes de descer às partes mais baixas
única a prioridade do sorriso queria.

Quando parar de chover meu amor
quando cheias as melgas e as lesmas
taparem o sol como nuvens tristes
estarei lá para te sublinhar em flor.

COIMBRA A RIMAR

Tributo aos meus amigos Praxis-Nova

Chegavam do litoral de avionete e às vezes de avião
por detrás do olival e de mota com raminhos de alecrim
à mão juravam cortados atenção com um grande facalhão
e os segredos devassados do rio luzes de farol e farolim.

Formigas adormeciam contentes na pedra do moinho
no porão dedos de cetim nos botões na blusa da laranjeira
nas guitarras bem guardadas e no tabuleiro algum vinho
para oferecer e cantar à inquilina ao coração da hospedeira.

Eram na mercearia o sal da fogueira a corvina bem cozida
com carvão e resina do pinhal a especiaria forte de Coimbra
lavadeira linda a quem se dava compota e se comia em petinga.

Irmão voar é preciso comer o caminho devolver a colher
a capa que ainda tenho como a puseram sobre os meus ombros
comprar o damasqueiro a máquina de lavar para a musa-mulher.

UM PANFLETO COSMOPOLITA

Ao Pedro Patrício

Uma esplanada junto ao rio. Um café uma cerveja
um gelado. A mulher a namorada o colega os amigos.
Em Budapeste. Um sol que na pele queima a sério.
Podia ser em Estocolmo Praga Roma ou Viena.

Pedia-me um panfleto europeu urbano e cosmopolita.
Contra o desemprego anunciado e o medo do futuro.
Contra a inércia e a lentidão. A apatia que é redutora.

Sabe logo manda! Detentor da tecnologia da obediência!
Querias querias batatinhas com enguias! Lampreias caras.
Assumidamente: Não à passividade! Sim à indignação!

Aditamento. Se não queres um adido do nada cuja vida
depende do velhaco bizantino do colérico basílio diz
comigo: Não à liberdade minimalista, à pouca cidadania!

POLÍCIA SINALEIRO


As suas mãos com devaneios de bailarina
habituadas aos refúgios secos das neves
convidavam-me adultas a subir a colina
a deixar-me perder na escuridão das luzes.

No vinagre do vinho húmidas as bocas roxas
do frio falharam o encontro à meses marcado
sabores de gambas frescas e alho picado.

Acima da linha de água no fundo da mina
as pedras que suportavam as sombras do ulmeiro.
Dizem que acabou o tempo de ser polícia sinaleiro.

Porque na paragem do autocarro da saudade
arranjava-se distraída no carvão a arder.
Poesia é decifrar as palavras da cidade
que nos recebe e nos mima de tanto nos querer.

Budapeste e outros mundos 2008-2009



(Projecto – AS PALAVRAS CONTINUAM)

É PARA TI A POESIA

“La beauté plaît aux yeux, la douceur charme l'âme.” Voltaire




CONFEITARIA CENTRAL


SÃO ILHAS DE PEDRA


PRÓXIMA AVENTURA DIURNA



Pedro Assis Coimbra. 2009
(Projecto – AS PALAVRAS CONTINUAM)

1. CONFEITARIA CENTRAL


“Há mulheres que colocam cidades doces”
Herberto Hélder

SE A VERDADE FOSSE VERDE


Se a verdade fosse verde
como as rãs paradas do charco
na noite mal dormida das folhas
seria apenas uma peça de roupa
escondendo sabida quase nada
num só momento de olhar fraterno.

Propaganda involuntária
do abre-latas da amizade
em embalagem reciclada
do sorriso suburbano distante.

Vinha alegre pois claro
em silêncio talvez para disfarçar
trazia duas fatias de pão
em cada palma da mão
cobertas com doce de tomate
e algumas formigas de estimação.

Para de perto desviar a atenção
do frigorífico ao fundo do quintal
dos corpos húmidos no estendal
por detrás da arrecadação.

Porque a peça escolhida
tinha submissa a dimensão merecida
insólita às portas desse amor intenso
nos corredores mais estreitos do prédio.

METÁFORA AMORA


Em idioma que não era seu
confundia remos com ramos
rendas e bordados do interior
com geografia da descontinuidade.

Confundia acessos de auto-estradas
com baías expostas e ilhas salgadas
impacientes à espera do fogareiro aceso
pelo sopro encarnado da boca.

Plátanos e salgueiros clássicos
que iluminam as ruas do bairro
acomodam legumes e ervas-doce
os desvios que levam à cidade.

Por ter um bom emprego graças a deus é feliz
de salto alto mini-saia o colar ao pescoço
parado nos contornos vizinhos dos seios
metáfora amora na terra dos montes claros.

Confundia ramos com romãs abertas
cidades costeiras com ilhéus abandonados
o sal das mãos com limões de estufa.
Petisco da vida para bem dos meus olhos

PELAS ESCADARIAS DOS CORPOS


No início da praia que devia ser vigiada
o espaço timído que já então procurava.
Mineral durante a viagem ferroviária
iniciada ainda da ilusão no século
que precedia o sonho de ser gente.

Olhava via e não acreditava
não sabia se merecia tanto.
Todo aquele latente esplendor
sobre as folhas castanhas
pelas escadarias dos corpos
bandeiras de duros invernos.
Fruta madura para oferecer à luz.

Seria uma égua um cavalo manso
um abrigo partilhado para descansar.
Era o siléncio mais forte do desejo
de aproximar à água aos nossos rostos.
Vestígios de penínsulas e marinheiros fenícios
no interior do fundo do mar abandonado
que sabe-se era em pleno o seu navio

AO FINAL DA TARDE DESSE DIA


Ao final da tarde desse dia
era a ansiedade que se cruzava
e se confundia com a sedução
que chegou do outro lado do rio
da margem oposta á morte.
Do engano que secava os lábios
que confusos despertavam a dor.

A ansiedade vestiu-se de sedução
lenta com movimentos calmos
enquanto a sedução se despia
da ansiedade com a certeza
de fazer bem e de ser tão bom.

A magia tão simples de poder
juntar exactos os trapos os corpos
aos pares como se fossem barro
antes do forno de porcelana fina
que poderia ser da China
se não estivesses tão perto de mim.

A ansiedade original da sedução
ao alcance também dos outros
que guardada cabia numa só mão.
Como uma bússula portuguesa
no caminho comum do desconhecido.

HÁ CIDADES AMENAS


Há cidades amenas
onde as mulheres se mostram
por serem muito ousadas
e midas as vidas prolongam
para nos fazerem felizes.

Há ilhas algumas muito pequenas
onde mulheres se deitam
por cima das pedras e ali
ganham côr e perdem água.
- Vejo a tua tambêm de calcário.

Se a mitologia fosse a vida
tu meu amor digital serias o mito
que perfeito me sossegaria
e me faria perder pela cidade.

Comer os doces sobre a ponte
com os olhos presos ao rio.
Depois embarcar nocturno no navio
e molhar as palavras nas tuas águas.

CONFEITARIA CENTRAL


Côr de chuva às vezes sentado
na intimidade das açucenas claras
cliente ficava como ausente
dos pequenos detalhes urbanos
com os espelhos da barbearia
e os vidros virados para a rua.

Dálias encarnadas a abrirem-se
no contentamento profano
de poderem chegar ao céu
pela escada de mármore
da confeitaria central.

Poderia ser cego surdo ou mudo
mas triste e paspalhão não era.
Sabia o que queria sabia pensar
e dizer com os dedos das mãos
às vezes com a saliva negociar o pecado
até à última petinga no prato.
Comprar o perdão a preço de saldo.

Ela por detrás do balcão
estava no limite da paciência
vendia ovos-moles e pão-de-ló
bolos cremosos e outras guloseimas
e de longe parecia inquieta.

O falatório do povo da cidade
e das freguesias rurais à volta da blusa.
Por debaixo do damasqueiro
O umbigo salente não resistia ao orvalho
daquele analgésico verdadeiro.

COM O CAÍR DA NOITE


Chegava com o caír da noite
abria a porta fechada
e fechava-a com as costas
debruçava-se observava com cuidado
como um médico de serviço.

Fazia tudo para merecer
- e já lá iam uns bons anos -
para prémio receber como prenda
as framboesas roxas côr de purpúra
que sem surpresas ainda cresciam
para regalo madressilva da boca
no gargalo justo da garrafa
bebidas frescas que pediam festa.

Porque dia sim dia não
ensonada que nem cinza morna
que de insonsa nada tinha
não se levantava da cama
sem os braços mecânicos do guindaste
o abraço apertado do operador.

TALVEZ NĂO FOSSEM DOCES


Em bicos dos pés
na persistente bica da fonte
sossegava do fogo
bebendo café amargo.

Contigo quebra-mar da cidade
os frutos secos do arbusto vermelho
provavelmente saberiam
a açucar queimado
que eu sentiria desfazerem-se
com o escorrer da língua
em local de acesso reservado.

As bagas côr de laranja
que à falta de melhor
entre caretas o melro comia
talvez não fossem doces.

Entre a lua e a denúncia afirmava
- são pedras senhora pedras pesadas
da multiplicação da fome
do cansaço paciente dos povos
por debaixo do avental
entre a cinta se bem apertada
e a pele solidária da cobra.

NEM SÓ BACALHAU


Se por acaso este fosse o local
alugado pela vida ao amor diria:
- nem só bacalhau se pesca a norte
lá onde as louras enchem as ruas.
Mais tarde quando lia Andersen
o fato novo do imperador entendi
finalmente as três moças desse país.

Elas lavavam os dentes branquinhos
em cuequinhas e sem sutiã.
Precisei de semanas e de chatice
para acertar com o pincel na cara
e a escova de dentes entrava
mais vezes no nariz que na boca.
- Aí Ai Dinamarca tanta malandrice

Tão perto das mãos sem tocar
assim camaradas tão paradinhas
talvez nunca mais tenha voltado a ver
a pôr em cima estes olhos de papagaio.
Ainda dizem que mais vale um pássaro
na mão que dois sem saber onde pousar!

Nem só de pão de sal ou de vinho
de maçãs assadas se alimenta o amor
tambêm de brincadeiras pequenas
de línguas a gozar fora da boca fechada.

DE REGRESSO À CASA DA CIDADE


De regresso à casa da cidade
depois do júbilo do reencontro
do peixe frito e do chá da manhã
do banho de sol na relva
que orgânico fazia recordar
o almoço impressionista de ontem
qual quadro água ou sensualidade
era de gata a felina surpresa.

Com tudo metido no tempo
de porta aberta ao mundo
dos olhos do fogo até às cinzas
da gata com bigodes de tia
que não acreditava nos olhos
na demência daqueles dois
dizia ao que nós chegámos.

A fava roçava as dobradiças
o pêlo o lacrado do corredor
encostava as patas ao azulejo
a servir de travão de mão
não fosse o vento desalmado
fechar a porta por dentro.

Contra a inércia em movimento
parecia ser a voz da mãe
- já era assim no meu tempo filha
e era tão bom tão bom
quem me dera estar ainda aí
onde há búzios de todas as idades
de todos gostos de todas as cores.

2. SÃO ILHAS DE PEDRA


“Deitada és uma ilha que percorro”
David Mourão-Ferreira

NA SOMBRA INCOMPLETA DA MÃO


Clara a mão descia segura
de microfone pela encosta
laboriosamente torneada
como se um objecto vitorioso
que se aproxima às escuras
da electricidade verdejante
antes do concerto adiado
sabendo bem o que queria
mas ninguém a entendia.

Talvez um troféu ou um espelho
um fruto reflectido
na secura líquida da água
que refrescante seria farta
se no último sinal não se enganasse
e na ravina caisse desamparada.
Ao fundo caminhava o rio
que para surpresa de muitos
escondia do sol a própria luz
na sombra incompleta da mão.

Ali onde toda a liberdade
provinha apenas de olhares comuns
de festas e carícias vulgares
a mim também a nada sabia.
A mão morena essa repousou tranquila
na palpitação escorregadía
entre as baixas margens do leito.

REGRESSOU À ILHA DE PEDRA


Marítima regressou alongada
com as águas salgadas do Adriático
onde os peixes em cardumes
apreciadores das coisas boas da vida
gostavam de vir nadar para perto da praia.

Regressou à ilha de pedra dura
onde a poesia com odor e paladar
se aloura em rodelas de cebolada
se envolve plasticina de vastidão
e se acomoda à pele mais próxima
da entrada escondida das rosas.
Por vezes de gelatina em repouso
sem estar livre das melhores surpresas.

Regressámos com os pedreiros
ao nosso amor erguido na pedra
no entardecer do planalto tardío
por detrás do véu leve da álgebra
ao sítio onde é costume passar a noite.
Pedra que ainda aqui estará
quando nós já cá não estivermos.

BOCA SALGADA LÁBIOS DE MAR


Boca de mar lábios salgados
que não permitem a livre-circulação
aos abelhudos caranguejos
que provam o vinho para iludir o sono.
Boca salgada que se oferece
como uma concha quase preta
e um búzio meio-cozido a abrir-se.

Beijo comum do mar beijo salgado
que faz bem à saúde e ao coração.
Que acerta no número da sua porta
quando meu amor de pedra
já não sabia das sombras dos lábios
na olaria do sorriso perfeito
que moldavam os meus dedos.

Os mesmos que esmagavam azeitonas
espalhavam o azeite pelo tabuleiro
do peito na travessia das costas
com amoras pretas porque os ventos
e as marés sempre me levaram
exactamente para onde eu queria ir.
Boca salgada lábios de mar.

NO SOPRO DE VIDRO


Quando concentrado no gelo
e no paraquedismo dos sábados
subiram o muro pintado de branco
e nem se queixaram do prego
que deixou um buraco nas calças
e um rasgão de sangue no joelho.

Com evidente coragem me lançei
sem asas diurnas de morcego
sobre o colchão macio de molas.
Sentia-me empurrado pelo medo
pela determinação do mundo.

Que acabariam por te encontrar
seguro de te rodearem de palavras
para me envolver com a tua liberdade
para sempre desde a primeira hora.

Juntar desejos e alguns sonhos
no sopro de vidro da noite
que são apenas os teus lábios finos
vestidos com roupas lavadas
a darem forma ao nosso amor.

PELO TEU CORPO ATÉ ÀS FALÉSIAS


Contador de histórias incompletas
que recolho nos sorrisos dos outros
como fotógrafo de olhar furtivo
na aventura de uma impressão apenas.

Prefiro ler nos teus ombros
interpretar os contornos da penumbra
dizer que é nas descidas acentuadas
pelo teu corpo até às falésias
a costa abrupta e definitiva do prazer
que gosto de me perder de cansaço.

As palavras ficam em silêncio
na margem insegura
que antecede as águas fundas
sobre as quais a cidade eu
e tu estamos suspensos da chuva
nos edíficios que não construímos.

Notícias do cais ao abrigo das vagas
que cedeu com a última tempestade
e se tornou perigoso quaseimune
para o telemóvel da bondade.

HAVIA UM NAVIO PARADO


Havia uma boca de pedra macia
aberta ao sol da erosão
e uma ilha de pedra picada
para provar antes da degustação.

Havia um navio parado
afundeado ao largo
a mover-se sobre si mesmo
a olho nú à distancia
à espera de coisa nenhuma.

Numa ilha feita de nada
dura só rocha só pedra
vinda não se sabe de onde
estrangeira talvez elevada
pela vontade de deus
pelo desejo vulcânico do fogo.

Um momento intenso assim
como o nosso de ontem
faz prolongar a vida
reescrever na pedra aa alegria.
Repousar na paixão.
Aprofundar a poesia.

AO SOL SALGADO DO SAL


Ao sol salgado do sal luminoso
no prolongamento do gozo guardado
detector dissimulado da ferrugem
e dos metais ancestrais do sonho.

Na previsão contígua da meteorologia
no vinagrete desse forte paladar
da paixão vigilante corpo que incendeia
que afaga e que nos faz renascer.

Dissimulada na ondulação do pó
nas águas da recusa e da entrega
nos nós cegos das cordas e das redes
onde peixe vivo é bom ser pescado.

Ali descansa resguardada na esperança
da dança na vida das tuas gargalhadas
vestidas de sal e tu sorridente ao sol
na pele amor de xisto ardente.

A POESIA NÃO ENTENDIA O SILĒNCIO


A poesia não entendia o silêncio
que aquela hora da manhã
deveria estar longe do pão
e da mesa das metáforas
que no armário tinham acabado.

Próximo do comedor dos pássaros
colocado com muita antecedência
debaixo da velha macieira
para quando gelado o inverno
não oferecer alimentos ao povo.

De tanta fome dissimulada tanta sede
não tinham resistência para mais
era o sono inerte sobre o corpo
até aos limites da quinta
do peso dos olhos sobre os lábios
que chuva cedem contentes
à pressão dos serviços postais.

E vida deslizava da dialéctica
como quem nem escondida
sabia caminhar nua na poesia
mas permitia à água potável
na mina de sal no céu do seu corpo
aberto para fazer crescer o desejo
e aumentar intensamente o silêncio do fogo.

BOA GENTE COMO SEMPRE


Quando amanhã como no ano passado
o outono preguiçoso se atrasar
malandro e brincalhão com aquele sorriso
explicar o que só pode não ser verdade.

De ter tropeçado num balde de zinco
tombado no meio das sombras
caído em cheio no barril de carvalho
quase ter morrido afogado
e ainda se sentir um pouco tonto.

Tu vais acreditar como aconteceu
quando a primavera de tão ousada
na acidez do vinagre de Modena
se meteu cuidadosamente
a fundo no meio do teu corpo.

Quase sem dor segundo se sabe
garantindo que só assim
poderia atravessar a ponte.
Para chegar até nós à beira da estrada
a vender ilusões e paises inxistentes
disfarçados de vendedores de melancias.

Certo é que se tu chegares
em primeiro lugar deitas-te e ficas
à espera que o céu desta vez ainda mais baixo
faça que não sabe que as outras árvores
não estão a ver e eu te abrace intensamente
e te transforme em basalto.

Como canta comovido o povo crente
boa gente como sempre
que acredita em tudo e se deixa levar
pelas falas mansas dos cantores.

SĂO ILHAS COM MUITA HISTÓRIA


São ilhas de pedra com muita história
caminhos de acácias e figueiras
os repolhos e os pimentões do mercado de Rovinj
que me fazem lembrar outras paragens
outros momentos de amor, diferentes do nosso.

O mundo finito ou é de deus
ou então não é de ninguêm
seja imperador regente ou regedor
sejam mercadores templários ou salteadores.

Aquele fazer que anda com camelos calmeirões
que vinham horas a fio quilómetros sem fim
não passava de um engano
para aguçar o apetite europeu
em Florença Génova ou Veneza
- se fosse agora eu tambêm queria.

Por essas rotas de seda
que até pêssegos e ameixas traziam
para aumentar a tentação da superfície lisa.

Por debaixo da seda até os sapatos
condiziam com a blusa azul-turquesa
da água mais funda dos teus olhos.
Muito para lá da Turquia
muito para cá do horizonte.

Ilsa mesmo longe de Casablanca
repete assim a preto e branco
esse beijo despedida de todos os beijos.

Do disfarçe e contra-espionagem
da paixão em tempos de guerra
no tempo de Rick não ficar em terra
de voar contigo e nunca mais te deixar
com as lágrimas do mundo nos teus olhos.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

3. PRÓXIMA AVENTURA DIURNA


“Eu escrevo versos ao meio-dia”
António Ramos Rosa

PARA A CIDADE NÃO ADORMECER


Haverá um dia bem sei
em que partirei de vez
e no meu coração quase seco
em mim tu partirás comigo.

Não sei se será logo na manhã
das horas refrescantes da maresia
se será pelas horas quentes
do meio-dia da vida lá fora
ou no interior da casa alugada.

Se será na calmia da noite
depois do trabalho o banho tomado
dos filhos todos na cama
as janelas abertas ao prazer
a falar em voz baixa
para a cidade não adormecer.

Haverá meu amor um dia
mesmo que não queira
em que terei de partir dizer adeus
e na ilusão virás comigo
nos recibos já pagos do sonho
que cresceu nas nossas mãos.
O último, o nosso primeiro património.

ENTRETIDA COM OS LOBOS


Ligeira e leve como o vento
salta à corda sem parar
a ponta atada à torre da igreja
entretida com os sintomas dos lobos
daqueles que só sabem fazer bem.

Salva de vez salta em declive
sobre os troncos de prata da caridade
das moedas recolhidas para os pobres
calor que refresca a casa fria
desse julho onde a superfície se inunda
do axioma, a profundidade do olhos.

Desconhecida solta o sonho alheio
talvez se arranje como uma galinha recheada
de condimentos e pão-ralado
comida à medida da mesa-de-cabeceira.
Esta semana a maior oferta da paróquia.

Solta das amarras das profecias modernas
desce a corda com cuidado pelo escadote
de metal do carpinteiro saltimbanco
que lhe faz a cama e para não ter medo.
Pega-lhe a cintura e salta com ela.
Salta para a outra margem do mundo.

CULTIVAR A ETERNIDADE


O seu sorriso de bronze
que inexplicavelmente se misturava
com o estanho colorido das nádegas
os dedos que recriavam o centro da vila.
Com as pontes antigas de pedra
das visitas guiadas a pé
pelos jardins privados do hospital militar.

O seu sorriso de prata
fetichismo visual adorno jovem
das nódoas no rosto mais lindo
iluminado a velas de cera
pelo perene chamamento da noite.
Chegava de manhã transpirada ao trabalho.

Sorriso polido pelas ferramentas
pelas luvas que protegiam as mãos
nem sempre fortes às vezes ousadas
na boa-aventura de quem gostaria
decifrar os segredos da soberania.
Recordar a primeira planície
para cultivar nas calmas a eternidade.

LONGE DE SABER OS SEGREDOS


No início longe de saber os segredos
da lua cheia para quem pensava
em se amar até ao último dia
e se prender na transparência dos fios.

Não era por causa dos convidados
contentes com a qualidade do serviço
a discrição perfeita dos olhos gratuitos
a postura doméstica dos criados.

A tensão que se sentia e perturbava
vinha nos troncos e nos braços dos cedros
para a construção a crédito do palacete
importados directamente do produtor.

Acasalavam-se nas águas da trovoada
nas brincadeiras sem fim das metáforas
com perfumes de ricas herdeiras
de areias douradas trazidas pelo vento.

Finalmente já muito perto de se saber
longe dos olhares curiosos e timídos
que na lua nova ou na lua cheia o amor
é o arquitecto paciente de todos os dias.

PRÓXIMA AVENTURA DIURNA


A água em cascata caía
sobre a pele de pedra verde
inesgotável intensa e acessível
sobre a barriga do mundo
que o poeta da ilha cantou
antes da falsa avaria do helicópter
da violação do espaço dos sentimentos.

Da mentira da noticia de abertura
num tempo que seria muito melhor
viver trabalhar e escrever
com as mãos pegajosas dos amantes.

Próxima aventura diurna
sem saber de patriotismos a vulso
a água em cascata caía doce
sobre os lábios molhados do bosque.

Mas quem sabe dar beijos assim
está livre de multas e coimas
de diplomacias de castigos corporais
está autorizado a pôr as mãos
as mesmas mesmo por limpar
em qualquer enseada do seu corpo.

PARA ESCREVER DO AMOR


Sabes para escrever do amor
que senti e que sinto por ti
para te descrever não preciso de ler
te designar interpretar os sinais da luz.
Não preciso de inventar nem de partir.

Basta fazer como hoje
com as aventuras do quotidiano
os automatismos que cansam.
Assumir a monotonia das semanas
que ilumina e supera as dúvidas.

Preparar os filhos para a vida
que é tambêm a nossa a prolongar-se.
Chega pensar na negação da morte.

Até porque se não fosse por ti
se não fosse por vocês diz-me
que andaria eu a fazer por aqui?

AREIAS PARA QUE SEJAM


Sem ler o texto a roda-pé
as instruções na planificação do sonho
sem medo nem consentimento
buscava em alvoroço para os dedos.
Os caminhos que levam as uvas
até a mulher dos seios de palha.

Pelas íngremes curvas fechadas
sem parar até à pedra fria
das coxas com sal a mais
transportadas no porão do avião.
Marinheiro sentia como ninguêm
na vertigem do naufrágio.

Para nós a vida fica redonda
junto ao muro na geometria dos pátios
e alguns rios do paraíso.
A sedução que não se acaba
quando os olhos que se conhecem
combinam discretos com a noite.

Depois em contacto com esse amor
infinito e irreversível escrevem do mar
da baía de linho, do céu dos joelhos.
Areias salgadas serão para que sejam
o próximo encontro na pedra
que aos poucos se desfaz em erosão.

COMO O ETERNO É MORTAL


Para interpretar as pedras anteriores
da subjectividade da história
da convicção inabalável dos deuses
fragilidade imperial do tempo
como o eterno é efémero e mortal.

Pela primeira vez na minha vida
à sombra das tílias passeava em Berlim
com as dioptrias dos meus óculos
que ajustava para ver melhor.

Imperial em Portugal é boa cerveja
ali caneca maior era ainda melhor
nem esperei pela argumentação do sol
da colecção das bases para os copos.

Ficou a lição da diversidade
que entendi por bem sublinhar
diluir com uma dose servida de paixão
e embrulhar em metáforas de gratidão.

Depois de tanto tempo parada junto ao rio
usava o sabão azul para despegar
o musgo agarrado aos joelhos
empenhada na pureza das margens.

Para limpar a alma até ao fim
usava o esfregão de arame com areia.
A hidráulica simples do seu sorriso
cruzou-se na irrigação dos canais de madeira.
Ali ficaram abrigados da chuva inesperada.

QUEM LHES DERA PROVAR


Quem lhes dera poderem provar
os queijinhos frescos de cabra
que submergiam o relevo
e acentuavam a morfologia.

Musgo nas pedras enfeitadas
que séculos depois talvez fossem
classificados de bustos e monumentos
património mundial do queixume.

Templos de tempos sem produtos
sem tempo para festas populares
pastores a pastar bezerros mansos
tão ao gosto doscapatazes.

Coma a bela Salomé a dançar
a melhor dança do ventre à mostra
um exclusivo do jovem rei republicano
que guardava as ilhas só para si.

Salmos provérbios e bom augúrio
de Mileto grávida de três gêmeos
todos rapazes dois de gesso
e um o último de ferro-forjado

Por muito que doa dizer
a infelicidade é uma das almas
que o sonho a vida finita
com gosto habita e escurece.

AS PALAVRAS DESFAZEM-SE


Caminhando pelo museu
observando o passado
anotava no papel amarrotado.

Sitiados na cidade os defensores
argila do rio de barro fresco
das redes do sistema defensivo.

Defendendo como ninguêm
como se fossem o último soldado
dessa razão que nos assiste
se fosse justo pensar assim.

Os nomes e os homens passam
e as palavras desfazem-se
na escuridão das ideias
no texto aldrabão da distância.

Enquanto a igreja sábia e previdente
decepava os sexos das estátuas
não fosse o diabo tecê-las
dar-lhes vida e sentimentos.

Com tanta fenda por aí
tanto telhado virgem de vidro
seria o bom e o bonito.

Nas acessibilidades da morte
no erro da avaliação do futuro
nem a escrita me faz imortal.
Mas é por ti que eu escrevo
é para ti a poesia.



Budapeste, Istria (Croácia) e Berlim, 2009
(Projecto – AS PALAVRAS CONTINUAM)

PALAVRAS À LUZ


CONTEMPLAÇĂO A TRÊS: DO CÉU DA LUA DO SOL
Às minhas filhas Gabi, Anna e Marta.


SETE ALIMENTOS DA TERRA - SETE PROMESSAS



DA ÁGUA ATÉ À LUZ : NOVE ELEMENTOS



Pedro Assis Coimbra. 2007-2008
(Projecto - AS PALAVRAS CONTINUAM)

1. CONTEMPLAÇĂO A TRÊS: DO CÉU DA LUA DO SOL


Às minhas filhas Gabi, Anna e Marta.

DO CÉU – INTENSA A LUZ DO CÉU


Quando intensa a luz do céu
iluminou as portas fechadas
junto às pontes de madeira
dos mastros do pensamento.

Recordei esse beijo de biblioteca
framboesa de cultivo delicado
e do livro que conta o segredo
da origem das chaves do céu
guardadas no cacifo de Pedro.

No céu de palácios suspensos
à imagem de coisa nenhuma
eram pontes portas e chaves
prados de papoilas e margaridas.

Janelas decoradas de giestas
para a salvação do Filho de Deus
celebrada com harpas e violinos
madalenas ousadas e alguns pecadores
na corrida ao ouro dos mal-amados.

Na contemplação furtiva do amor
olhos que iluminam a escuridão
com a cor que o céu espalha
e a luz libertadora da erva-sidreira.

Senti os ventos das palavras de Pedro
que traziam parábolas e metáforas
que atento o povo ouvia e seguia
quando à sombra de cedros e oliveiras
indicavam o caminho da alegria.

DA LUA - LINDA A LUA DESCE A RUA


Linda a lua desce a rua
lisa e nua lua tão bela
e baila lamparina linda
bailarina bailarina
sobre o rio com um fio.

Vai mais linda vai mais bela
no baile de rio sadío
no fio do amor de safío
pela rua com a lua.

Baila linda bela bela
como a luz forte da lua
que ilumina que ilumina
dentro da mina perto da rua.

Lamparina e candeeiro
mensageiro do coração
mel de princesa rainha
da ilusão do tempo inteiro
água lisa nas mãos da rua.

Linda de mel do mel
pois mel-linda lia lia
vêm mais linda vêm mais bela
baila baila bailarina.

Lia que queria e não sabia
ler o livro ser tão bela
era melhor Raquel que ela
mas Lia sorría sorría
feliz do país que tinha.

Sabia o seu tempo já era
de Raquel nova rainha
plebeia nua como a rua
caminhando pelo rio.

Véu aberto água lisa
veste linda o céu tardío
boca azul nas mãos da rua
vai mais linda vêm mais bela
a bailarina feita rainha.

DO SOL - FORTE O SOL FOI SUBINDO


Forte o sol foi subindo o tempo
devagar sem pressas até tocar
os muros as paredes da vida
com todo o tempo do mundo
como diria Gaudi de Barcelona.

Ao de leve com as palmas húmidas
as pontas das mãos nas pedras
quase secas nas areias douradas
do caminho marítimo desconhecido
até ao grande mar azul escuro
ao prefácio do sol na boca pintado.

Esse sol distante do pensamento
do calor intenso de diamante do mar
pérola brilhante daqui desta margem
com todas as palavras perenes
a claridade que indica pacientemente.
os vocábulos que da luz transparente.

Com o sol suavemente aquecendo
as costas esquecendo os ombros
misturando a vontade divina
com a simplicidade dos homens
no desejo de alcançar a vida eterna.

Pois esta chega do sol na paixão
com a brisa salina da madrugada
com a humidade espelho da prata
quando o sol fechado se faz escuro
e difuso pela neblina da felicidade.

Troca as urtigas das utopias
pelos tapetes de nuvens e lírios
que ao sol crescem ao sol recordam
ao sol desejam ter sol no sorriso.
De terem escritas nos rostos claros
as tardes das palavras mais lindas.



Budapeste, 2007-2008

2. SETE ALIMENTOS DA TERRA - SETE PROMESSAS

AZEITONAS

(Com azeite no prato azeitonas no pão)

Oliveira em flor do alentejo rural
oliva raiana junto à fronteira
do nordeste frio que arrefece
e diz-se que olívia era tradicional.
Gostava muito de refrescar a pele
na acidez do azeite extra-virgem
se perfumado com alho esmagado.

O tecido fino e suave no corpo
de paladares e gostos simples
que afinal o seu prato favorito
era comer pão de trigo já duro.
A pele dura como o pau às fatias
remolhada em azeite aquecido
sobre o tampo largo e liso da mesa.

Em tempo de ser comida sem pressas
no pratinho de barro bem azeitada
que era o melhor petisco que havia
Olívia no início da noite mais longa.
Limpava com os dedos com a língua
por isso chegou ao largo tarde demais
à procissão da paixão do menino.

Com o atraso da promessa por pagar
perturbada deixou a gata aluada em casa
e mal vestida mal comida mal amada
veio para a rua do oriente do sonho.
Passear devota quase nua no olival
com ramos de oliveira nos cabelos.
Com azeite no prato azeitonas no pão.

CEVADA

(Porque ali diluída a cevada)

A escrita é feita de sonhos
de audácias descontínuas
nas supresas dos sentidos.
A escrita é feita de silêncios
de frutos e pensamentos maduros
fruta verde colhida à socapa
sem ser acusada de ladra.

Na arca guardada das palavras
das ideias ao alcançe das mãos
na imperfeição recolhida nos textos
das vozes pela viagem da erosão.
Na luminosidade próxima dos corpos
parecia ser das mágoas da canção
ainda do tempo de águas antigas.

Porque ali diluída a cevada
e na eira a secar a castidade
criada para bebidas sagradas.
As promessas de povos escolhidos
faziam lembrar a primeira madrugada
escritas nos novos textos das searas
mesmo mesmo à entrada da cidade.

FIGOS

(os figos ainda quentes)

Antes do naufrágio virtual da história
do sonho da ilusão do século anterior
e para não ter que interpretar
as desgraças tardías e algum bem fazer.

Analisar com o cuidado da geografía
cada uma das palavras desenhadas
fora da página e do contexto da quinta privada
o mapa das alegrias de trabalhador que aprende.

Para surpreender cada metáfora distante
mesmo se na tarde fría mesmo se toda nua
desnudada na luz intensa dos sentimentos
no abandono que anuncia desejada a escuridão.

Deixem-me ficar de boca fechada
como se estivesse ainda debaixo da figueira-mãe
na sombra da minha escola primária da Portela
entre a ala das raparigas e a horta da Faustina.

Comendo sózinho sem fome nem pressas 
os figos ainda quentes lavados e limpos
nas palmas das mãos e nas calças pelo cuspo
antes de passear a dois até ao inverno do cais.

Sei que trocariam a longevidade dos sentidos
a forma do vento norte pelo colorau em pó
feitos à medida das águas da minha sorte
do milagre exacto na marginal dos teus lábios. 

Escrevem que há sapos no lago sem fundo
persiana opaca feita de flores aquáticas
daquele que foi amor à primeira vista
pelas sapas dos olhos sapudos de Voltaire.

ROMĂ

(lá na Terra Prometida)

Quando em casa à sobremesa
em vez de gelados ou chocolates 
com golpes curtos seguros e breves
abria uma ou duas romãs que dividia
em partes quase iguais pelos seis.
 
Romãs compradas no mercado
importadas da Itália ou da Turquia
solene dizia como parte da cerimónia
- não se esqueçam que a romã
é um fruto bíblico do Antigo Testamento.

Quando penso nas romãzeiras
primeiro em flor depois carregadas
dos seus frutos tão belos recordo
se as lembranças não me enganam.

Na ldeia onde nasci não havia 
frutos mais vulgares que as romãs
marmelos e figos eram os frutos do povo
todos podiam colher e comer logo ali.

Mais tarde imagens da ousadia juvenil
logo depois do mensageiro da salvação
escreveram sobre tintos muitos maduros
do profeta junto ao Muro das Lamentações
lamentam a taça perdida do vinho do passado.

O encorpado vinho de romã do Rei Salomão
que aumentava a fertilidade da terra
a desejada mãe lá na Terra Prometida
prometida a muito mais gente
que a lotação máxima permitida.

Graciosa despia-se sem pudor
junto à torre à praça-forte do sentinela
na encruzilhada dos dois rios muito famosos
um Tigre salgado e um Eufrátes mais doce
para adocicar na pele os desejos do prazer
e guardar as roupas para o dia seguinte.

TĂMARAS

(menina linda nome de tâmara)

Ainda agora meu amor
no largo dos sem destino
nem fado nem abrigo
tantos séculos depois

citam textos antigos
dos livros mal guardados
roubados ao alfarrabista
antes das cinzas eternas.

Mil milhares de formigas
peregrinas e devotas
caminham indiferentes
às armas dos salteadores

pelas pedras do caminho
indiferentes às feridas abertas
à negação profunda da vida
caroços verdes das tâmaras.

Na terrina terra de xisto
sobre a mesa decorada
em pequenos potes de barro
mel de pétalas das flores

onde se lava levanda
da poeira branca da tristeza
e do pó preto da alegria.
São em si a própria vida.

Inquilina do meu coração
ressalva doce em roda-pé
epílogo e dia de semana
te recordas das tâmaras

no sonho em chávenas de café
que algum dia pude provar
pois não há quem te não queira
menina linda nome de tâmara.

TRIGO

(Na esquina do trigo da manhã)

Na esquina do trigo da manhã
ao longo dos seios femininos
com ousadia o corpo baloiçava
com ritmo e evidente bom gosto.

Com o canto alegre dos pintassilgos
bandos que povoam as searas.
Baloiçava à esquerda e à direita
melhor que os cabelos do vento.

Seios de terra castanhos claros
talvez brancos por fora
brancos da blusa côr de trigo
da côr das mãos ali esquecidas.

Na demora prolongada da noite
a máquina de lavar roupa
moderna não parava de trabalhar
com detergente e amaciador.

Os seios esses repousavam a casa
pratos de comidas para pássaros
onde se amacia e se embebe
o trigo ou o milho ainda por apanhar.

Seios de palha quase seca
no farol inventado da ilha
lua da antevisão do fumo
após o fogo de alma cansada.

Pela seara imensa do trigo
com as primeiras águas do dia
os primeiros sons do povo
no trabalho amanhece a poesia.

UVAS

(e nos cachos de uva preta)

Pensam à noite voltar à vinha
fábulas de uvas e de gatos bravos
a picada profunda da serpente
da sede sedenta de água salgada.

Segundo os manuscritos sagrados
estão protegidos pelo oleado verde
das horas agrícolas da paixão.

Inventam à noite uvas de mesa
da natureza morta na tela pintada
das roupas arrumadas na cadeira
que queria como ausente querida.

Ficava quieta na quietude do silêncio
da tarde do verão mais quente
na cidade à beira rio erguida.

Calam à noite no lagar de pedra
o vinho do prazer colectivo
na liberdade da arte antiga
dos que trabalham as cepas e as parras.

Amantes do erotismo excomungado
saladinha de atum dentes de alho
e as folhas de rúcula da santa igreja.

Cantam à noite antes da vindima
depois do mosto grosso da alegria
e da visita às caves do coração
no regresso ao futuro adiado.

Escrevem à noite as passas secas
dos desejos para o ano novo que aí vêm
do lado de lá do mundo: o milho
do lado de cá do poema: a espiga


Budapeste. 2007-2008

3. DA ÁGUA ATÉ À LUZ : NOVE ELEMENTOS

ÁGUA

(dos seus olhos lindos da chuva)

Brincava com as palavras as de sempre
como quem despejava baldes de água
na areia seca da praia.

Construía sonhos e vertigens
castelos com essas palavras molhadas
património íntimo da paixão reiventada.

Contava os dias e as noites
todos os meses certos do ano
nos caminhos da nascente
de pedras por agora ainda verdes
até ao canavial do seu coração
ao sol o local mais próximo do poente.

Com o primeiro contacto do medo
escondia o sorriso envergonhado
das papoilas das tempestades
trazidas pelos ventos fortes
por cima das mãos gretadas
até aos lábios salgados das dunas.

Secava os seus olhos lindos da chuva
côr dos abetos-de-aquém-mar
para lá do condominio azul da água.

Brincava com as palavras
e não esquecia as metáforas
repetidas quase até à exaustão.

Depois deixava o bar em segredo
e regressava pela noite ao navio
com histórias de batota para contar
do dinheiro perdido do jogo do engate
das peças de roupa de contrabando
e das redes de pesca mais fortes do prazer.

A nudez transparente colhida do fundo do mar.
Quem poderia resistir a um chamamento assim?
Perguntava à poesia mesmo antes de a abraçar.

METAL

(Esqueciam a pele do metal mais duro)

A chuva de pedra da tempestade
pelas nuvens há muito prometida
grossa chegou de súbito furiosa
quando já ninguêm a esperava.

Caíu sobre as telhas sujas do beiral
a chapa de zinco do telheiro
com vontade de ser útil de lavar
e de moderno a terra a frio tatuar.

Esqueciam a pele do metal mais duro
o coração na laminação do ferro
húmido da dor pelas mãos moldado
aos novos tempos da inquisição.

Dizia que no mercado de reposição
das peças e ferramentas de corte
de metal do trabalho internacional
não se ouvia uma só voz solidária.

Como as viagens de comboio
que da emigração sempre associei
aos exilados e aos perseguidos
que nem a poesia defender sabia.

Longe do fogo-posto do passado
na contra-luz mestiça da metáfora
com mestria o chefe-da-estação
com a chave-de-fendas no bolso.

Recordava a campainha da bicicleta
roubado ao melhor cinema italiano.
Regressava com o sonho quase perdido
da consciência colectiva da cidade
distante do dia de merecer o futuro.