terça-feira, 23 de dezembro de 2008

I. AS PALAVRAS QUE FICARAM*

1975-1987

No Começo das Palavras (1975-1979)
A Poesia na Viagem – Metáforas do Vento (1980-1981)
Vai Palavra Vai (Agosto de 1980/Dezembro de 1980)
Últimas Águas (1981)
Corpo Comum (Setembro-Outubro de 1981)
Memória do Fogo (1981-1983)
Os Paradoxos da Água (Agosto-Setembro de 1982)
Mãos de Areia (1983)
Textos da Noite (1983-1984)
Amor e Metáforas (1984-1985)
Cinco Poemas à Luz (1986-1987)


*livro publicado em Setembro de 2008 pela editora PRAE.HU

NO COMEÇO DAS PALAVRAS

1975 – 1979


"Foi então que descobri as palavras"  José Gomes Ferreira
"Por que palavra começar, por que desordem"  Eugénio de Andrade

ABRIL

(Palavras em construção)

Palavras em construção
os sonhos de Abril tão próximo
para escrever na areia
os novos pensamentos do mar antigo.

Na fogueira das palavras
a chama ainda arde a ilusão
nas cinzas quentes raiz da liberdade.
Restam as ideias para a combustão.

ROSA

(Deixem-me abrir uma rosa)

Deixem-me abrir uma rosa
com a força dos meus olhos
como se fossem o sol.

O fascínio está em tudo
no relevo doce dos lábios
nos bicos pontiagudos dos seios
na sede suspensa das coxas.

Doce e fraterna como um enigma
a nossa poesia virá depois.

PEDRA

(À margem do coração do tempo)

À margem do coração do tempo
sentinelas de barro vermelho
moldam as setas com o vento.

Desenham no céu nuvens negras
os corpos do poema incompleto
a arder na pedra livre do canto.

Resta-me uma folha em branco
o cigarro de um sonho submisso
um não esquecido na algibeira.

REMO

(Minha audácia naufragada)

Minha audácia naufragada
terras de areias movediças
meu instante de regresso.

A tua mão como um remo
concha perfeita do mar
tapando a entrada do universo

NOVELO

(Querem fazer deste povo)

Querem fazer deste povo
um novelo de lã barata.

Querem fazer com este país
gente que também eu sou
uniformes batas para criadas
sapatos ao quilo sopa dos pobres.

Quem sonhará outras manhãs
no estuário de chibeque deste rio?

CIDADE

(Fecha-se um abraço de aço)

Fecha-se um abraço de aço
ao redor da cidade.

Quem te fechou à força
as asas da liberdade?

Corre-me navegável um rio
até à tua nascente.

Quem nos abrirá a poente
as portas às rápidas da corrente?

SEGREDOS

(As bruxas da noite afiam as unhas)

As bruxas da noite afiam as unhas
com as lâminas do silêncio.

Os dedos de vidro castanho moído
juntam as palavras já cortadas.

Queima como a liberdade iniciada
que morre quase colectiva na revolução.

Quando os ventos dos inimigos
sopram fortes deixam degredos.

Profetas de hoje proibidos de sonhar
amantes de guardarem os seus segredos.

ÁGUA

(A água do pensamento perfeito)

A água do pensamento perfeito
resoluta desce apressadamente
entre desfiladeiros verdes
das tuas pernas por enfeitar.

Nem o vento ousaria ir tão longe
na conquista melro desse ninho
protegido por sentinelas à espreita
no musgo que antecede o vinho.

AMOR

(Nem que o fim meu amor primeiro)

Nem que o fim meu amor primeiro
seja o último abismo sem fim
meu amor ter-te assim comigo
no momento de outra sublevação
é tocar no coração da luz do sol.

Os lábios são frutos e são espadas
os beijos da produção cooperativa
lábios e beijos emboscadas furtivas.

TERRA

(Os lírios da unidade popular secaram)

Os lírios da unidade popular secaram
porque as máscaras de guerra civil
do ódio e de soldados armados os vestiram.

O Chile de Allende na traição caiu
e na terra anónima e fria o rasgaram
com nitratos e muito cobre o cobriram.

SONHO

(Em silêncio a formiga)

Em silêncio a formiga
desceu pela solidão da luz
e aconchegou-se discreta
à insurreição das palavras
do azeite e de algum vinagre
à voz forte de Neruda.

Chegou a hora do sonho
do poema conquistar a cidade
ainda antes de cair a noite
na hora da festa interrompida.
Subiram até ao sol do povo
os lábios limpos da liberdade.

NICARÁGUA

(Daqui das margens do Tejo)

Daqui das margens do Tejo
com as ondas-curtas da esperança
vislumbro em segredo Esteli
povoação guerrilheira cercada
pelas forças leais ao governo
muitos seios de linho
muitos sexos de ferro a arder.

À distância tudo indica
ser possível que o massacre
da razão seja sinónimo de futuro.
Quando Esteli cair
as formigas da sublevação
serão sepultadas colectivamente
provavelmente numa mina abandonada.

Agora até o disfarce da morte
vem todas as tardes jogar futebol
brincar às escondidas nas ruas
com as crianças pobres do bairro.
Os sinos da igreja do Bispo de Manágua
dos padres filhos do povo sabemos
nunca mais ficarão em silêncio.

PALAVRAS

(Onde estão as palavras secas)

Onde estão as palavras secas
onde estão os amantes de ontem?

Porque faltam as metáforas
para tantas tantas ruas por inventar?

Que água que sol nocturno que prazer
merecem essas mãos esse corpo?

Figos de grandes figueiras rolas por provar
teu último tesouro por descobrir?

Que caudal te despedaça
que foz te acolhe e nos abraça?

A POESIA NA VIAGEM – METÁFORAS NO VENTO

1980 – 1981

"Era la sed y el hambre, y tú fuiste la fruta
era el duelo y las ruínas, y tú fuiste el milagro"

Pablo Neruda

"Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vêm-me não sei porquê, uma angústia recente"

Fernando Pessoa

AMIAIS

Estes são os primeiros passos da minha vida
os primeiros caminhos perdidos
da minha negação que nunca se encontrou.

Estes são os primeiros minuto verdadeiros
percorridos calmamente pelas ruas escassas
da minha aldeia dos marmelos galegos
dos figos maduros de outrora.

Este é o primeiro encontro real
o único encontro de mim com a minha ausência.
O primeiro café a primeira chávena aquecida
que bebi sem querer e parti por gratidão.

Este é o primeiro momento
em que não sou mais que a minha gente
a combustão lenta e final
da infância humilde e feliz algures abandonada.

Não! Eu nunca mais serei eu!
Nunca mais beberei a minha terra
com lágrimas de coelhos e gafanhotos.

Apenas a lâmpada ofusca para esturrar
o bolo da noiva que os fornos dos olhos
migalha a migalha amassaram e cozeram.

Amiais de Baixo, 06.07.1980.

CACILHEIRO

No cacilheiro para Lisboa

Há um baloiçar de criança
das ancas do sol
nos olhos cinzentos da água.

Nos meus olhos
só há luz para iluminar
os lagartos aquáticos
que povoam o teu ventre.

As taças de pudim caseiro
que tu cozinhaste
para os gatos gulosos
dos meus dedos nos teus seios
de açúcar queimado.

Lisboa, 27.07.1980.

CHOCOLATE

Com Zetho no Chocolate

E depois mesmo aqui continuo
anónimo a contar ao contrário
a minha história e a negar a negação.

Entre orelha de porco e salada de polvo
petingas e carapaus fritos em azeite
copinhos de ginja e de medronho.
Continuo a dizer sim a dizer não
a desertar o pseudónimo do amor.

Mesmo aqui este desejo permanente
de te encerrar na ilusão da poesia
na prisão mais húmida e mais sombria
da minha alucinação ibero-continental.
Esse bichinho de pêlo macio!

O gato da casa dormia serenamente.
Quem iria pensar que sonhava perdidamente
com o seu primeiro e único amor
bruscamente interrompido por uma rua
da cidade atravessada com pouco cuidado.


Santarém, 18.08.1980

*Zetho Cunha Conçalves. Poeta e amigo

BRASILEIRA

Na Brasileira entre amigos

Enquanto os sinos do Seminário tocam à desgarrada
asas pretas de corvos iludem a paixão às escondidas!

As lesmas descem lentas a parede infinita
do focinho dos cães e comem pasteis de nata
com as mãos domésticas dos amantes de papel.

Eu bebo uma gasosa nas pedras da foz
para curar uma bebedeira gelada de saudade.

A senhora verniz fora de prazo da mesa ao lado
é uma miragem barata de feiras ambulantes
de perfumes e cremes de colares de anéis
peles e varizes e muito pó-de-arroz. A caçadora!

Santarém, 22.08.1980.

ADEUS

Um comboio que parece uma tartaruga.
Uma carruagem espanhola do tempo de Franco.


Aqui o fogo já não é revolta
na insurreição permanente das gargantas
sapudas ou das agulhas dos dedos
e o suor a resina das teias de aranha.
Adeus mãe adeus cidade adeus adeus.

Aqui o tempo é a secura da cinza e do fumo
das folhas no adeus prolongado
à humidade do olhar no comboio fugitivo
do sonho nos sentidos da geografia
e acender uma vela no coração do vento
as chuvas mornas na despedida de Agosto.

Eu entro no silêncio viajante
a ignorar os outros e a dizer
adeus mãe adeus cidade adeus adeus
quando voltar hei-de trazer umas asas de pau
ainda maiores para voltar a partir
partir e regressar com um cordel na ponta.

Levo com os olhos-de-água
todos os recantos deste pequeno país
a frescura e as sombras das portas-de-sol
e as maçãs azedas como eu gosto.
Quando em contracapa te leio pátria
descubro tudo em ti pátria a única que tenho.

V. Franca das Naves, 25.08.1980.

CONFISSăO FERROVIÁRIA

Para Nour Ben Ali

1. Se um dia me libertar das vozes interiores
inquietação e amargura que fascinam
e me lançam no abismo da felicidade.

Então direi: Poesia o teu esforço
foi inútil. O silêncio é o meu destino.

2. Quis comprar um acordeon da marca
dos filmes do Comissário Maigret
para oferecer à lígia que inventei e me espera
já na próxima estação com um ramo
de bagas venenosas no canto verde dos olhos.

Para desgosto da namorada de lígia
tinham estado em saldo e esgotaram-se.

3. Tiro ovos cozidos do saco de plástico
pastėis de bacalhau e alperces pisados da viagem
sandes do sol a tempo já duras
em palavras simples insinuar que tenho fome.

Uma garrafa de água do fastio como se tinto
do Cartaxo hoje sem uma vénia especial.

4. A festa de Hemingway?
O amor de Éluard e Baudelaire maldito?
Ou a amarga-doçura de Edith a Piaf?

Paris! Paris quem és? Revolução primeira?
Fascínio europeu de intelectual de esquerda?

5. Não! Não tenho dúvidas: Éva
é no azul fogo dos teus olhos que dorme
o cais do último navio da esperança.

6. Amor vêm percorrer o meu coração!
Vêm cultivá-lo de ferrugem
desbravar os seus bosques cerrados
libertar os saltimbancos de madeira.

Descobre como ele é grande como é negro
como todo o prateado já estalou e resiste.

7. Eu queimaria toda a alegria
em troca de uma só laranja da baía
para que nunca deixe de ser agridoce
como a liberdade como a poesia.

Paris, 26.08.1980.

GDANSK E GDINIA DO POVO

Pregos espetados na indústria pesada
no fumo de ferro e na voz de aço
nas escamas de peixe estragado
dos estaleiros navais da classe operária
talvez agrícola se na debulha do milho.

Linhas infinitas de tesouros de Deus
único no céu de mármore fresco
de santos de gesso e anjos de barro.
Um Jesus tão próximo tão filho do povo
salgueiros de um Vístula luminoso
e uma Silésia densamente arquitectada.

A jovem mulher do ferroviário dormia
cansada das noites em branco dos gémeos
dos peitos e das mamadas de bocas a dobrar.
O comboio vigiado de novo atrasado
maquinistas de gravatas e muito poder
passageiros inconformistas que posso dizer?

Strasbourg, 27.08.1980.

CIDADE

Recordo Olga de ontem ainda
inca-peruana. Futura médica.

No local interior da boca
a cidade é um chafariz público
de águas tenras de pedras ternas.

Na ponte de madeira da língua
a fogueira é um chilrear profundo
de um gaio fascinante a cantar.

Os brincos azuis do corpo moreno
são as ginjinhas do café da esquina
nas asas felinas da amante das enguias
nas asas felinas das enguias da amante
ou nas asas enguias da amante felina.

Viena, 27.08.1980.

LÁNY DE ÁGUA

Eu pediria aos caroços da sombra
mais infinita e distante
da neve e da chuva invisível.

Os íris de água da luz natural
para fazer um véu transparente
do silêncio de cuco e de besugo.

Que fosse tão pequeno e tão lindo
que só desse para encobrir a roseira
dos teus joelhos e zonas suburbanas
quando impacientes as minhas mãos
fizessem turismo sonâmbulo e livre

Todos eles meus companheiros
da poesia não diriam que não
se tu rapariga aceitasses o véu.

Törökbálint, 05.09.1980.

DÁLIAS E DEDOS

Um punhal a duas faces de vidro
compota caseira e liberdade
leviandade e pão. Pêssegos maduros.

Um autocarro de beijos dos teus
são três capítulos do policial premiado
as folhas rasgadas dos bilhetes dos dedos.

Um ramo partido de pessegueiro.
Um passaporte de dálias proibidas.
Nas sombras beijos teus. Dálias e dedos.

Balatonszéplak, 08.09.1980.

VASAS – BOAVISTA

Jogávam futebol por amor
e faziam amor por dinheiro.
Havia que ir á loja todos os dias
comprar pão e margarina iogurtes e salsichas
às vezes detergente e papel higiénico.

Futebol? Ternura e palavrões na relva erótica.
Amor? O guarda desatento e frangueiro da baliza.
O Boavista ganhou dois zero ao Vasas
clube do sindicato dos metalúrgicos de Budapeste.
Era tudo o que te queria dizer poesia.

Budapeste, 19.09.1980.

FONTE

Quando mais te queria minha
mais te imaginava perdida
te desejava rebuçado e morango
água salobra da bica da fonte.
Terra cisne podre de amargura!

Falta-me tanta doçura
para me saber transmitir telefonia
amor. Tanta aranha enamorada
na tua nascente renascida
no meu estuário de conde besouro.

Budapeste, 22.09.1980.

FELSZABADULÁS TÉR

À ceguinha da Praça Felszabadulás
no seu banquinho a vender senhas
de lottó e bilhetes de autocarro.

Invadem os atalhos íntimos das novas palavras
com uma bandeja de tojo e de espinhos
nas unhas meigas dos olhos.

Uma bandeja de papelão
decorada com as tintas do sorriso mais triste
escurecido pelo ar tenso da capital.

Sentam-se em silêncio no primeiro banco
ninho de cobra na berma perfumada do luar
para se aconchegarem e esquecerem.

Talvez um dia o rouxinol do filho do sol
receba arenoso o apelo do infortúnio
e chegue urgente com dois molhos
de lilases e esmeraldas valiosas no bico
e as deponha sobre os seus olhos sem luz

Budapeste, 30.09.1980.

CHAPLIN

Mas eu espero espero por ti amor
rapariga que nem és minha nem dos amigos.
Alma contrabando do meu relógio de bolso.

Espero por ti minha estimada flor
a dezassete forints cada. Um senhor decote
dos desejos mais íntimos dos olhares
de entrega e rendição mais clandestinos.

Não nem palavras nem camas constipadas
pela instabilidade continental do clima
porque eu espero espero por ti gata brava
do monte a pilhar galinhas alheias.

Doçura-amor do filme incompleto
na candeia dos teus braços de lua cheia
no copo do vinho. Eu espero espero por ti!

Budapeste, 14.10.1980.

SUEńO CUBA


A Sílvio Rodriguez
A Arturo Portuondo

Sueño com serpientes Sílvio
serpientes de mel
lodo e colares de malmequeres
no silêncio vadio da pátria e do exílio.

Sueño com serpientes Sílvio
com beijos e borbulhas espremidas
por mãos cálidas de fadas boas com rum.

Sueño com serpientes Sílvio
serpientes de ardósia
com revoluções de plástico como a minha
lábios de pó e bairros sociais.

Sueño com serpientes Sílvio
com cimento areia tijolos de barro
o pão e o circo das casas abandonadas.

Sueño com serpientes Sílvio
serpientes de amor
que vazam os meus olhos de vidro
com as cascas dos limões da igualdade.

Törökbálint, 21.10.1980.

DE BUDAPESTE A MONTEVIDEU

Para Eduardo Bleier
Para Daniel Maňana

Mi hermana geografía mi hermana libertad!

Oferecem os garfos das veias colectivas
aos filhos da terra à guerra à medicina
uma caixa de bolachas de água e sal
aos miúdos inquietos do bairro insubmisso.

Em Budapeste os cantoneiros
dos paralelepípedos e passeios do betão
tem dores nas costas e mãos gretadas
os salários em dia dentes de tabaco.

Mi hermana geografía mi hermana libertad!

São operários vão de autocarro ao trabalho
e de volta comem batatas cozidas
carne panada e sopa e salada.
pão muita paprika banha e toucinho.

Só jogam às cartas se a dinheiro bebem
cerveja vinho e aguardente de ameixa
enchem de fumo as tabernas nas caves
e são adeptos do Fradi a toda a hora.

Mi hermana geografía mi hermana libertad!

Bebemos mate mascámos desejos
apaixonados nas nascentes naturais da água
com espelhos trazidos de Montevideu
e os desenhos de pequenas begónias da paixão.

Meu irmão Gerardo! Meu irmão Daniel!

Budapeste. 29.10.1980.

SOMBRAS DO POVO

A Nelson Mandela

Percorremos os pulsos das perdizes
das palavras nos cornos do vento
a nevar cinzas sobre as nossas asas
com a certeza de sermos gente.

Os caminhos não eram talco nem pó
mas a graxa era ainda assim
a entrada triunfal para a cidade conquistada.

Quando olhámos para o nosso lado
reparámos por acaso finalmente
nas nossas pequenas sombras do povo.
As moscas! As moscas éramos nós!

– A liberdade adiada dos outros.

Budapeste, 30.10.1980.

HOSPITAL

Por momentos até me convenci que era filho
do primeiro ministro e me escoltavam
com uma sopa de cogumelos e pepinos
envinagrados que só de olhar me agonia.

Descuidado comecei distraído a trincar
– o pepino não! – suave suavemente a enfermeira
de bombom com licor de cereja quando a doutora
me chamou à atenção – que não era permitido.

Pedi desculpa às duas beijei as mãos dedo a dedo
tinha uns olhos castanhos lindos de comer e chorar
por mais chamava-se Gyöngyi pérola de hospital.

Nesse momento chegaram com sonoro urgente
duas ambulâncias de papel carregadinhas
de caças efes cincos e migues vinte e tantos.

Estes amigos anti-pepinos que me rodeiam
trouxeram um ramo de malmequeres
e um par de calças lavadas e passadas a ferro
contra as melgas e os moscardos da guerra.

Budapeste, 02.11.1980.

ANTI-CICLONE

1. Dorme com bonecas de urânio e corsários
com espadas de pau antigo no submarino nuclear
sistema de segurança superior da nação.
Peça fundamental do sonho inofensivo do império.

Sente por ti um sentimento único – desdém!
Não és nada para ele sem mim
e o seu aspecto vulgar é isso mesmo
– tu és o meu precedente a ideia original!

2. Faz pesca submarina para te vender
o fato preto-funeral em segunda mão
que o anti-ciclone das canárias não quis
a preço único – com amante de cor incluído.

Em troca dir-te-á grátis o segredo
de inventar tranças e carvalhos robustos
com fardas de presidiários
e marcas dos outros ou linho dos teus.

Eis um diamante verdadeiro do Tibete!
Deita-o fora antes que os outros proíbam a festa

Törökbálint, 14.11.1980.

FILOSOFIA DE ESTUDANTE

À Maria João

Às vezes quero escrever e não sei!
Talvez seja do vazio inesperado das palavras
e da filosofia desmentida dia após dia
as muitas teorias – baratas – da conspiração
e a mitologia universal por interpretar.

Quero viajar na liberdade da poesia
com as metáforas do vento
na procura da luz verdadeira
que um dia talvez encontre e afinal
só pontapeio latas como aprendi em Charlot.

Nesses momentos é que eu sei
que um sapato mesmo roto é um sapato
não é um camelo de infinitas terras frias
que mesmo acompanhado mesmo sozinho
o caminho pelo deserto tem de ser meu.

Depois um camelo como eu era
como eu sou anda descalço e feliz
não dá pontapés nas pedras não interpreta
apenas as transforma e as canta
na emoção das histórias por inventar.

Às vezes quero escrever e não sei!
Até porque hoje o fascínio não chegou
dissimulado de surpresa como costuma
nas roupas lindas da novidade do luar
nas roupas intensas das asas do prazer.

Budapeste, 25.11.1980.

CANÇăO PARA TI

Só exijo um pedaço de pão trigo
para limpar dos teus lábios
a gordura do amor
e sonhar na viagem o meu abrigo.

São os teus olhos de cor nem sei
formigas avelãs de não dormir
penas de polvo tinta em perigo.

Voam neles meu sonho
um bando de pombas bravas gritos e algas.
Para quem é o ninho do campanário?
Para quem é o ninho do campanário?

Budapeste, 02.12.1980.

GOSTO DE TI A RIMAR

Gosto de ti quando arrefece
e quando de imprevisto amanhece.

Se o meu corpo no teu apodrece
gosto mais de ti mais de ti porque anoitece.

Budapeste, 29.12.1980.

ESPADA VEGETAL

1. A imensidão do tecido das sílabas.

Vêm vêm até mim traz-me manhãs claras
nas fagulhas das palavras
e resgates exigidos sem telefone
nas açucenas da boca.

2. E vem tão só. Uma espada vegetal
secreta e é tudo.

Não! Não bebo no rio não engano a sede
onde despesas oculta as águas ensaboadas
dos segredos mais íntimos da tua pele.

3. Os afluentes imprevistos da música popular
belos pedaços de histórias de alquimia ou tu.

Do alto da sua astúcia o lobo
aproxima-se da arvela sonolenta e domingueira.

De cesta no braço cheia de caracóis
agriões hortelã de Dezembro
e lagartixas para estufar.

Soube mais tarde que o lobinho
mais pequeno chamou-lhe um bombom.

Budapeste, 03.01.1981.