segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

NAVEGANTES

A primeira palavra da felicidade dos navegantes
já começou mascada na mansidão do cabo.

Uma onda incendeia-se nos teus olhos a gratidão.
Um cortinado moveu-se mas são minhas as amoras.
Uma nau perdeu-se no interior imenso do amor.

A penúltima palavra do vento já se sumiu
nas bocas do fogo. Abrem-se as portas da poesia
estava agora mesmo – acredita – a pensar em ti!

Budapeste, 11.01.1981.

OS DEUSES DE AVIĂO

Os deuses andam de avião e em discos voadores
com direito a combustível subsidiado
e como se mortais agarrados ao sexo
fazem amor com as empregadas do templo.

A mulher mais bela do mercado central da cidade
faz pose gratuita para o pintor flamengo
que está à espreita nos meus olhos.

A saia e a blusa estampadas de rosas e cobras
são convites maduros bicos e picos adultos
e os laços são tão finos transparentes tão intensos
que não há hipnose ou princesinha que os destrua.

Budapeste, 13.01.1981.

BOCA AZUL

Tantos dias rasgados à euforia
as espadas nas bainhas as mãos no asfalto.

A boca azul rente às pedras do corpo
ao diamante fluído da neve na rua.

Papoila: a raposa fugiu com os teus olhos.
Quem sou eu para pedir a sua extradição?

Budapeste, 14.01.1981.

TÁXI

Amada perdeu-se um táxi nos teus olhos
era eu que te queria abraçar sem permissão.

As flores alimentadas pela maresia da música
cresceram marítimas como tangerinas doces.
Foram os únicos potes de mel que não provei.

Amada dói-me o coração de tanto te querer!

Budapeste, 21.01.1981.

MÁRMORE-ROSA

1. Escondi-me na carruagem do corpo
com os lábios inquietos da má sorte
com as mantas de nuvens antigas
e uma taça de café para não dormir.

Oferece um cigarro para não te esquecer.

2. Nas autonomias do coração nunca imaginei
juro por tudo o que me é mais sagrado
que os teus seios pequenos e duros
me soubessem na boca a mármore-rosa.

Era tão boa a aguadilha das romãs
o fogo da manhã que humedecia a língua.

Sófia, 25. 01.1981.

AMOR PERFEITO


Em Sófia com o Zé Esteves*

Esqueci-me mas tenho a certeza
que foi já há muito tempo.
ofereci um verso comprometido quase infantil
a uma menina em botão do teu
e do meu Ribatejo. Como era linda
como se assemelha às imagens
que hoje já povoam os teus sonhos.

Esqueci-me mas tenho a certeza
que foi apenas há momentos.
Eram rodelas de luz e tecidos de seda
pão e água lábios e línguas.
Baton e perfumes importados do ocidente.

Estava quase tonto de sono
quando me recordei dos figos secos
e das passas das nozes e avelãs.
Sim é nas mãos que começa a festa
os caminhos últimos da tentação.

Esqueci-me mas sei muito bem
às vezes mesmo sem navalhas afiadas
ou moto-serras cortamos definitivamente
os troncos das metáforas que são nossas
as raizes e a memória das próprias mãos.

No momento das despedidas
ficam para vos iluminar os laços da fantasia
desse farol persa da estrela da madrugada.
Ficam na música longínqua dos búzios
se encostarem como só vocês sabem com muito
muito cuidado aos ouvidos marítimos do amor.

Sófia, 27.01.1981.
*O espectáculo já começou nos teus olhos
a inquietação da poesia da fascinação
vai despertá-los todos os dias pela manhã.

ANTÍTESE


A José Afonso

Este poema é muito mais que um poema
que uma nau pequena à aventura
ou uma emboscada furtiva.

Este poema é muito mais que um poema
é a minha dúvida quase esquecida
o silêncio inaceitável a entrega
fraterna das minhas ideias igualitárias
a destruição final de todos os dogmas.

Este poema e o meu sangue nocturno
o teu nome o grande edifício construído
com o barro diário da minha ingratidão.

Este poema é muito mais que um poema
é uma época incerta e provisória
talvez na aurora de um grande amor
que não cabe nas palavras na poesia da paixão
a desvanecer o tempo a diluir-te no tempo.

Este poema é a afirmação convicta que o futuro
não é propriedade privada de ninguém
e adormecer inquieto com a minha antítese.

Belgrado, 30.01.1981.

PASSA A PALAVRA

Os enigmas no coração do vento
tradução literal dos teus olhos
chegaram cedo de carta-expresso.

Passa a palavra a mensagem
tenho bacalhau do bom e um litro de bagaço.

Amor dá a coroa de búzios que encontrei
perdida na areia à curta-metragem premiada
à alegria aos silêncios da ternura.

Lembra-te daqueles dias daquelas noites
tão curtas para nós e tão longas para a inveja?

Dá a mão aos crentes aos insubmissos
à revolta em fogo brando às urtigas
e depois acorda com a lua nos meus braços.

Mas não abras os olhos - tanta malícia
tanta letícia - sem antes alimentarmos o sonho.

Budapeste, 10.02.1981.

POETA HÚNGARO


Para Eugénio Pinto Braga

1. Há dias fui fazer uma reportagem no aquário.
Estava agitada a peixaria do cardume.
Assisti a curiosa e violenta discussão.
Amores desavidos e vidas na rua. Escamadas.
Vai para a truta que te traiu! Já disse.
Vai para a truta que te traiu!
Gritava alterada e delambida uma sardinha
toda enfarinhada em pinturas de conserva.


2. Na fonética perfeita da capitalização
do sonho dos cursos de águas dos loucos
e dos amantes sem direito à indignação
os pingos da sopa de abóbora-menina
feita por ti já caíram no meu pulôver novo.
Todas as manhãs te vou despertar com um beijo.


3. O homem já chegou à Lua
e qualquer dia vai a Marte ó Marta cozinheira
com um bitoque no prato e um ovo a cavalo.
Até parece que nos tempos que não passam
umas luvas de cabedal valem tanto
como um par de nádegas avulso.


4. Foi com um giz encarnado comprado
a prestações no armazém do povo
que desenhei ontem à noite para ti
o louva-a-deus do materialismo histórico
enquanto o Nuno pescava uma bela tainha.

Mas é a meiguice das palavras
pois a farinha da vizinha é melhor que a minha
que eu tenho sobretudo para oferecer
ao teu sorriso secreto e pedir
que sejas como cerejas quanto mais as como
mais vontade tenho de te comer mesmo crua.


5. Último flash meu bicho-da-seda.
József Attila é um dos melhores poetas do mundo
para toda a vida o meu poeta húngaro.

Budapeste, 21.02.1981.

FIM DESTA VIAGEM

Foi na curva do Danúbio entre choupos e salgueiros
exilados e apátridas que o itinerário se desvaneceu
ao rimar o lixo doce da paixão com ocupação
das coxas o turismo sonâmbulo e livre dos meus dedos
com os únicos potes de mel que me ofereceram.

Azul eram as vitrinas da pele o Metro de papel
a emboscada furtiva nas noites da avenida
baratas do bolor mais a aguadilha das romãs
dos que andaram como eu no rabisco da azeitona.

Frequenta a universidade no caminho da tentação
sem apeadeiros para poetas o tontinho da cidade
e as lesmas que descem lentamente a concertina
corpos de cinza e carvão a comoção mal contida.

É a nadar que o rio também é vertigem é viagem
nas metáforas do vento com cortiça do Alentejo
que as bocas e os olhos dos teus malmequeres
se despedem do cais na nau no navio dos mosquitos.

Hoje para dizer a verdade só queria ler A Bola
ver um grande jogo de futebol ganho pelo Sporting.
De verde acender uma vela que iluminasse o céu
com o teu sorriso finalmente descendo da lua
para adormecer na minha casa que é toda a tua rua.

Budapeste, 25.02.1981.

VAI PALAVRA VAI

Nazaré, Agosto 1980
Budapeste, Dezembro 1980

"Voici des fruits, des fleurs, des feuilles et des branches,
et puis voici mon coeur, qui ne bat que pour vous."

Paul Verlaine

ABRO AS MăOS

Sim poesia! Um momento de pinhões
impreciso de conchas e búzios azuis
noites de conspiração grainhas
e malvasias. Um pôr-de-sol
anti-paraíso anti-rosto entre-bocas
lentas dispersas solarentas.
Uma ponte feita de pétalas e de navios
as paredes da catedral dos embarcados.
O farol aconchega-se mais ao linho.

Mas que momento a cobiça
qual noite qual sol que azul profundo?

A minha ousadia de inquilino?
Fecho os olhos na emoção
na tempestade de aquêm-mar.
A festa da submissão
foguetes de pedra e de quase nada
no céu aberto do fogo preso.

Pautas e papeis de embrulho
limpa-chaminé no rosto indecifrável.

Abro as mãos de par em par
com as palmas imperfeitas das mãos
a desvanecer a água em repouso.
Recolho as folhas-de-amoreira
do teu rosto. Meu amor?
Sabor a laranja dos teus dedos solares.

Ninguém? Mas tu quem?
Que nome ou álibi que mar fascinante?

NAMORADOS DO SUL

A insatisfação dos teus olhos
de traineira e bailarina
distância e movimento
algas roupa de mariposas.
Os teus olhos fascínio
descem aos meus lábios
de carvão e cortiça
que flutuam insensatos às portas
húmidas e vegetais do abismo doce.
Abismo mel abismo abelha.

É um pedaço sólido de sal?
Um botão de begónia?
Um cavalo veloz marinho
bicho-da-seda da próxima alegria?

A resposta vem mansa
vem estranha vem colada
nas palavras pelas rochas
dos nossos corações de gaivota
afinal bandos de gatos voadores
nos teus olhos quase perfeitos.
Vens em silêncio das terras de xisto
terras de fados e de destinos
com os besouros da luz
com os ventos dos namorados do sul.

DA POESIA E DO AMOR

A esta hora Madly
penso sempre em Brel
quando quero falar da poesia e do amor
escrever dos outros e de mim.

É a hora em que as estrelas
se esquecem do jogo da cabra-cega
da canção sonâmbula do despertar
e de namorar com a magia.
A hora em que as estrelas convidam
e me deslumbram
lançam cordas de luz desfiada
degraus feitos da pele mais fina do musgo.

Não! Só te quero a ti.
Só a ti te aceito te nego o abraço.

Náufrago sei onde estás
que importa pois se já sou homem
se sou apenas remo
caranguejo mau amante.
sei onde estás e vou ao teu encontro.

No fundo luminoso do oceano
candeeiros de areia a meia azeite
mil braços de lume redes artesanais
ao redor da bem amada
do canavial na maresia da vida.

VEM AMOR VEM COMIGO

As águas doces agitam-se
correntes transportam pipas de vinho
vidros madeiras gaiolas e mastros.

Loureiros com ninhos de pintassilgos
folhas e bicos línguas de prata.
Olhos e que olhos! Açúcar em rama
amêndoas descascadas ramos de amendoeira.

Eu demoro em ti resisto em ti
descubro-me sem ti rosa pequena!

Navego por entre as ranhuras
cálidas e herméticas
do teu corpo finalmente iluminado
fantasia do nevoeiro adiado da solidão.

Jacinto um brinco princês
de princesa nativa e adorada
cresce e faz sombra e anoitece
nos lábios ardentes do navio
carpa desejo no segredo do rio.

Vêm amor vêm comigo
minha única e verdadeira flor.
Importa que só saiba palavras vulgares?

MAS É NO CAIS


Pestanas pintadas de azul. Meu abismo!

Pequenos espelhos nos sentidos
do barro vermelho de sal
para retocar o seu rosto de mar.

Beijos de gaivota bocas mornas
na invenção dos caminhos do amor
e na marginal do ventre outrora fecundo.

Naturalmente a doçura do pensamento
quando sonho navegar anónimo
pelos atalhos ocultos dos seus cabelos.

Um travo a canela e grão de café
se os seus lábios fossem meus
nas fontes da povoação vizinha.

Guarda as romãs que ofereci
e os ramos de nespereira que juntei
na festa das mãos nas areias da praia.

Será a pele de erva e arroz doce?
A geografia desconhecida das dunas
que formiga gostaria de subir e descer

Mas é aqui no cais linda Éva
onde a água resoluta se entrega
que tudo começa que tudo acaba!

PESCADORES DE PORTUGAL

A faina continua nas coxas da tempestade
entre longos silêncios e braçadas fortes.
Entre músculos tensos e redes pesadas
cigarros mastigados e vagas imensas.

A espera no colo macio da areia
entre suspiros profundos e pedidos divinos.
Entre mãos cruzadas e olhos húmidos
ânsias e fogueiras de mães de mulheres e irmãs.

ENTRE A PRAIA E O NADA

Sabes é finalmente aqui
entre a praia e o nada
que entrego as armas brancas
e regresso aos meus olhos.

As avenidas despovoadas
casas simples abandonadas
dos que partiram para não mais voltar
promessas tanto amor por realizar.
Conversas na lua conservas e bolos
de coco arcas e mofo algumas tangerinas
pára-ventos e moinhos de crianças.

É aqui que procuro os teus olhos.
Quem? Mas tu quem? Que ilusão?
Ventos do leste que mentira sou eu?

POMAR

O vento no coração da viagem.
As ameixas do pensamento reflectidas
na sombra no gosto das maçãs assadas.
O mar da poesia da Mensagem.

Afasto-me de ti com Pessoa
nas noites de mentiras embriagadas
quando me dás quase tudo na rua
do amor livre e das nuvens claras.

Nuvens e frutos que trazem a ilusão
antiga dos tesouros por encontrar
pelos cais e praias por conquistar
laranjas maduras da insubmissão.

Tudo porque deixo na água as palavras
que escrevi a lápis nos teus lábios
cantadas pela minha orquestra de cigarras
na negação do jogo pelos sentidos.

PEQUENO MAR INTERIOR

Amar o seu corpo
pequeno mar interior e calmo
as esquinas os becos da sua pele.
Nos jardins a lua difusa das safiras
e não proteger ninguém.

Amar o seu corpo
esse potro aparente meigo e feliz
damasco da época que colhem maduro.
Pedaços súbitos de sol e de oceanos
no fundo escuro dos pensamentos.

Amar o seu corpo
imagem molhada dos olhos
ninhos de toutinegra e tentilhão
com as ervas secas e palavras incómodas.
Esse pomar fluvial de frutos proibidos.

AS ROUPAS DA VOZ

Desnudar a tempestade das papoilas
quando o teu corpo de prata
se move entre as barbas da lua cheia.
Desenho a giz no colorido a palavra
do cais na pedra ardósia dos meus dedos
até à foz de um mistério qualquer.

Um cão perdigueiro de água fria
nada caçador astuto aproxima-se veloz
para ser ele a desvendar as lareiras quentes
do prazer as cinzas dos teus segredos
as roupas transparentes da voz.
Pinhas bravas e pinhas mansas a arder.

Eu tenho ousado um ramo luminoso
afastando a areia húmida dos teus seios.
Um remo encantado descendo
as alamedas na tua barriga de avelã
até ao alto mar barcos pequenos em perigo.
Ternuras sem fim na aritmética do pecado.

MĂOS DO RIO

Lentamente as palavras juntam-se.
Alguém atento cola com goma
recolhida no tronco do pessegueiro
junta as sílabas umas às outras.

Alguém voluntariamente
refaz as asas os bicos da gaivota
pedras preciosas à venda
cabelos sedutores e líquidos do mar.

À chegada do navio diz-se
nem todos encontram a luz da noite.
Canastras a canastras de peixe
os linguados grelhados do amor.

Desamor colinas de engano
na calma das searas sitiadas das mãos
das varandas dos olhos na poesia do vinho.
Eu não consigo esquecer
os cachos da uva trincadeira do teu peito.

Vai palavra vai! Meu amor.
Espalha e seduz as metáforas da vida
o pão de milho do paradigma final.
Leva de batel todas as flores
pelo mar de papel até aos sítios da poesia.

ÚLTIMAS ÁGUAS

Budapeste.1981

"Não tenho pai nem mãe
nem deus nem pátria
não tenho berço nem sepulcro
nem beijos ou amantes"

József Attila

"Por qué no me gusta la poesía pura?
Por las mismas razones por los cuales no me gusta
el azúcar „puro”. El azúcar encanta cuando
lo tomamos junto con el café, pero nadie se comería
un plato de azúcar: sería ya demasiado. Es el exceso
lo que causa en la poesía: Exceso de la poesía, exceso
de palabras poéticas, exceso de metáforas, exceso
de nobleza, exceso de depuración y de condensación
que asemejan los versos a un produto químico."

Witold Gombrowicz
(Excerto de um texto inédito publicado na revista
"El Viejo Topo" de Barcelona)

BOLOR DOS BOLOS

Parte-se um barco no silêncio das mãos.
Os dedos finos da alegria já partiram
de nós faz amanhã muito tempo. Nem
fama nem dinheiro fotografias a propósito
uma orquestra sonolenta à despedida.
Em todas as bocas portas fechadas
as ruelas sujas e poluídas do coração.
Dorme-se na estalagem já deserta
com um galo e uma faca no pensamento.

Os melhores desejos a inquietação mais aguda
navegam no interior maduro das ameixas.
Na desilusão mais amarga das chamas do fogo.
Falso o alarme da palha abandonada.
Lá fora vive-se com sabor a poesia a saber a sol
a cheirar a peixe a soalho acabado de encerar.
Pele mal curtida. Temos ainda o mel
de abelha mestra e um fígado de primeira
qualidade. Tabernas apinhadas de gente.

Das cinzas de plástico fala-se da liberdade
como de filmes a metro regressos de viagens
espaciais e ficção africana moderna. As cantigas
famosas e milho na terra por colher.
No triunfo histórico do ténis-de-mesa-mundial
da horta os legumes os alhos e as beterrabas
são o corpo mais caro à insubmissão. Uma onda
maior abraçou o céu e repousou na sede
na solidão jasmim dos olhos verdes da noite

Mas à noite os mochos já não querem insectos
azeite ou tranquilidade. Gatos e lanternas.
Somos tantos à procura da humidade
dos cogumelos nos bosques da imaginação.
Fuma um seio resina liberto de nicotina.
No pomar nasce em ti uma flor. Chega de longe
a mensagem da brisa a estrutura inóspita do vento.
Os caçadores confundiram uma pinha mansa
com um ninho de perdigotos. De salamandras.

Por momentos é outra voz que transparece
na nogueira outra música que nos envolve
sentimento intenso que nos trespassa.
Uma sombra alimenta-se nos seus lábios
sacia-se nos seus pequenos lagos interiores.
Adormecem sobre o braço mais frágil da lua
e as linhas das mãos são águas paradas
luz de popelina transparente a fome aguda
dos diospiros. Águas espessas e lodo.

Nus ensoparam em luz os cabelos da areia.
Voltaram as costas aos alicerces da gratidão
ao bolor dos bolos às metáforas do cinismo
com lágrimas de vidro lágrimas de carvão.
Continuam à espera da puta violenta
da tempestade. A doçura dos corpos.
O marinheiro seduzido pela música da flauta
embriagado na geografia de todos os encantos
aprisionado pelo teu sorriso caiu feliz ao mar.

Inesperado a luz mudou novamente de cor.
O pintarroxo enganou-se na janela acordou-me
manhã bem cedo e quase o apanhei.
O veneno da amante diluiu-se no sangue
da dúvida um seixo o enxofre da vinha
um oceano de lábios de fumo e de poeira.
A última tarde já se engasgou
há quem diga que morreu lilás na garganta
do cão palavra no dicionário da paisagem.

MEIO DIA

Se fosse avenida o teu corpo nem beatas
de cigarro permitiria nem escarros asneiras
os excrementos secos das andorinhas.
A aguardente da Primavera e as pernas perfeitas
de Agnés no céu matinal do erotismo das ideias.
Seria o objecto mais valioso da minha casa
o abrigo mais povoado das aranhas. Se fosse
água o meu coração seria gasolina ou perfume
camisa por passar a ferro. Seria a magia
morena do peito na sombra brava da castanheira.
O adultério do amor a hora certa do jantar
mineiro exemplar no interior da mina.

Escrever o meu coração agora é tão perigoso
como as altas velocidades do motociclismo
o militarismo da impotência mapa-mundi
e o prelúdio multidão dos descontos fim-de-época.
A verdade é que marinheiros somos e no mar
andamos. Tanta sede! Gostamos de cerveja
de tremoços de caracóis e de berbigão
do ciclo molhado piscina sauna bons cus cerveja
de desfrutar o bem social colectivo.
O estrangeiro é em mim sempre mais poeta
mais discreto e audaz. Sinto-me todavia verde
para a felicidade mas se a planície cantar.

Quando escrevo a despedida do meu último
pensamento entro voluntário no ritual festivo
da poesia. São o sonho as teclas dos seus lábios
o piano afinado do seu corpo. A tempestade.
Gosto do reencontro do tempo escasso o trânsito
urbano o voltaremos a amar as deambulações
desperdício os guindastes da renovação civil.
Amigo! Estou a preparar paciente um tapete
do povo para a cidade poeta-amigo!
Com informática mini-computadores
pão com banha e metáforas desconhecidas.
Perdi-me nas vielas infinitas da noite.

Para mim mais importante é a riqueza do cobre
o gás natural as marcas as fotocópias do amor.
O baton vermelho intenso chuva de trovoada
a lã pura da neve das relações económicas
internacionais as teorias jovens do movimento.
O barco liso e belo da pele. Nem um pêlo
nem uma borbulha na descida da língua.
Falei contigo era ponto meio-dia.
Imaginei-te nua quis vestir-te de revolução.


Quando comecei este poema pensei juntar
num só quadro ideias insubmissas e matrizes
simples com salmão fumado e estrelas do mar.
Era tarde de mais para o beijo. Ela não quis
e a noite vizinha e confidente não me ajudou.
Rebusquei na luz reflexo do rio na artéria
tábuas e ponte do meu coração os seus cabelos.
A última carta a filha da terra o aroma da manhã.
A tangerina mais doce da cidade cantou comigo.

FOME AVENTUREIRA

Descemos a noite no compasso do tempo.
Brilhava um sol tão forte tão viril
quando fazíamos do barro lume vivo
e das sombras espadas meigas rosas azuis.
Um sol que dizia bom dia que elevava os olhos
até às proximidades das assimetrias de bronze
nos sentidos sabonetes e jacarés de porcelana.

Do rio as águas eram de uma gratidão emocionante
uma flor sem nome um respirar inquieto
um fósforo de pedra a iluminar o nosso bairro.
A terra preta por incendiar nas searas e no amor
no café amargo do sonho chave sem fechadura.
Os lábios a desfilarem em segredo a desfilarem.
A luz eléctrica ainda escassa do meu interior.

O grito mais aceso do assalto foi a senha sonora
símbolo do momento exacto. O rato saiu de nós
com o queijo da serra a almofada penas de ganso
e o mealheiro da paixão incompleta. Havia
quem se amasse todas as noites meninas de cartão
que dançavam com fantasmas e alfaiates
no licor no cheiro dos dedos na ousadia da voz.

Um sol que escrevia da verdade mais clara
do talento felino da vida das cinzas tão quentes
que a liberdade consome seja quando for.
Ninguém sabe do diamante hindu roubado
à rainha dos grilos em terras de regadios
terras de rosmaninho tanto calor que na tomada
do coração nem os cavalos do vento resistiram.

Esmagámos cabeças de lagartos e de serpentes
e depositámos a fome aventureira nas mãos
borracha da melancolia. Nessa noite
foi muito mais difícil adormecer pois chegavam
pedaços de nylon de linho e de fazenda
da vida abandonada. Cerejas maduras da cerejeira
sagrada do teu corpo. Tanto tanto domingo adiado.

TARDES DE DOMINGO

Descrevo a correr a geometria da água
a palidez da audácia em carvalho envelhecida.
As escadas no comboio urbano o mosquito
monotonia na faculdade aberta da noite.
Sulfamidas da ferida no trevo desenhado pela luz.
Sabíamos que os morangos eram ritual profano
que a seara do centeio era a lei do mais forte
do solstício das mãos pelo granito das pontes.
Tinha guardado no bolso um par de ferros curtos.
Na bolsa das ideologias a falência era colectiva.

Um pastor alemão conduzia um cego.
Com a pressa de um lugar sentado no autocarro
até o cão foi arrastado pela cegueira da manada.
Onde há polícia há caso. Onde há magalas
há putas de certeza como na Praça Rákóczi.
No quarto ao lado Simon & Garfunkel
gemidos de prazer na carne profunda da ilusão.
Sabíamos que a tarde era mortal o canário
uma imitação barata de importação ilegal
que a erva doce era amarga como merda!

Pois é rapaz a bola rola e rebola é redonda
e entra na baliza mas não acerta os problemas
de aritmética! Professor nunca mais o esqueci.
Como guardamos os melhores pensamentos
da prata no relógio do tempo! Canto pois
a ausência quando a presença nem se deseja.
Quero estar só sem a dança na areia dos lábios
frente à longevidade mentira do sonho.
Sabíamos dos estábulos dos cavalos selvagens
potros promissores dos limites da tolerância.

Minhas queridas não se preocupem com o pneu
até nem é de veículo pesado tractor agrícola.
As mamas servem-se em pratos de barro
na pesca a balança marca apenas cinco quilos.
Não se preocupem com o rabinho cutim
ou pano cru. Assim na sombra da cor do cetim
a porca criadeira é um investimento garantido.
Sabíamos que o oxigénio não era de toda a gente
não queríamos ar condicionado motoristas
e guarda-costas. Foguetes e gravatas oficiais.

O meu primo navega no mar da Califórnia
faz pela vida pela família ignora a poesia
e na última carta que me chegou por via aérea
escreveu-me com a caligrafia que na primária
aprendeu e a filosofia que ensinou à vida.
Para que serve a minha liberdade se nem ganho
o suficiente para alimentar os meus filhos?
A tempestade secular do movimento da dialéctica
uma enseada um porto de abrigo quando os poetas
só queriam nas palavras a reinvenção da igualdade.

Outras formas outros conteúdos do amor
as melhores páginas que guardei no coração
para nunca mais te esquecer linda flor.
Canto pois o primeiro olhar na praça da alegria
a comover-me à frente de ninguém
a saber-me observado e ignorado.
Que as minhas musas espreitam divertidas
e riem das gargalhadas até às lágrimas.
Tão belas tão falsas incapazes de me entender
na periferia pós-cosmopolita do desejo.

Cuidadosamente tenta reproduzir
o lago verde da salsa no jardim escondido
da paixão anterior. Um fósforo uma vela capaz
de incendiar uma vez mais o centro da cidade
de tingir de poeira o roseiral da colina
os azulejos do oceano na leitaria da esquina.
Na rua Váci são mais curtas as tardes de domingo
mais fermento mais fruto mais romã
mais mastro mais vela a litania da palavra.
Sabes irmã o dogma constata-se não se contesta!

No podão amolado dos sentidos
e nas melhores uvas das videiras do corpo
o vinho a martelo somos nós próprios
porque estamos despertos atiradores furtivos
com um sono mais leve que um pardal-trigo
ou uma cadela perdigueira recêm-parida.
Patas chocas de um futuro distante.
Nem tudo o que escreve vão entender
melhor só que mal interpretado pior apenas
se comprado por um pratinho de lentilhas.

Os enteados malhados do gato preto da poesia
desenharam a lua em bocas pequenas em textos
longos e silêncios íntimos pontes invisíveis
portos flutuantes em contornos de madressilvas.
Na espera do primeiro café do dia
na paragem do autocarro número sete
uns olhos sempre os olhos sempre os olhos
mais belos que a luz do fogo mais límpidos
que a água pura da fonte gelada.
É então que jovem o meu coração se liberta
e parte no mar azul dos teus olhos!

DOMINGO MĂE

Imaginas que imagino um tordo escondido
um pisco irrequieto aos saltos no mato
uma cabra portuguesa. É tão bom imaginar
quando não há mais nada para fazer.
Sinto essa dor crescer no peito de palha
e a garganta seca os lábios da má sorte.
Acendes acendo um cigarro sophiane na cave
biblioteca da residência uma fresquidão
excessiva um silêncio delicioso. Doloroso.
Percorro minucioso os meus pés chatos.

Neste domingo mãe minha sinto-me sujo
impuro porque não fujo do mau olhado.
Uma necessidade urgente de questionar
que me fales de mim este sentimento opaco
e estranho do eu. Mãe na Irlanda do Norte
a mãe do Bobby Sands resistiu à última agonia
do filho. Foi terrível mãe! Foi uma outra mãe
primeira dama de um baralho muito antigo
que o deixou morrer. Que o mandou matar.
Cinzas sem coração. Da negação do perdão.

Imagino que imaginas aproveitar os restos
as cascas de melão e melancia. As galinhas
pintos coelhos e pombos da Portela das Padeiras.
Os gatos que sempre nos acompanharam.
Neste domingo cinzento sinto-me indefeso
muito dependente da família que está longe
do jantar que não comi bacalhau assado no forno
a meia-tripa do amor que não quis e que desertei.
Hoje prefiro sentir-me criança homem provisório
pensar-me herói contra os cabelos farpados do medo.

Mãe como me desejaram como sentiram
indiscreto gostaria de perguntar se foi um descuido
das noites frias das terras ribatejanas no final
dos anos cinquenta que disse o pai quando soube?
Queria que me contasses dos meus primeiros dias
de como fazias como me vestias como dormia.
Não mãe! Não estou a choramingar estou lúcido
a viajar em mim a ocupar o tempo divertir-me
a lembrar-me das hortenses que tu plantaste
as últimas águas que hoje regam a minha inspiração.

Toda a vida vai ser a viajar despedir-me
afastar-me calcorrer as minhas mãos o ventre
todo do universo. Assaltar os castelos da ausência
como quem bate com pedras nos dedos da emoção.
Subir a pulso os caminhos do inferno as baías
mais fascinantes do corpo as baratas da ternura
que é tão fina tão longa tão resistente
e que resiste agora que os infieis somos nós.
Mãe deste à vida um poeta. Um dia talvez
a minha oferta seja um neto um rapaz mais ousado.

Estou a pensar se me visses com mais um cigarro.
Não queiras fumar filho o tabaco só faz mal.
Mãe há que fumar há que beber há que pensar
como transformar o mundo para o melhorar.
Tu dirias que houve sempre pobres e ricos
que para os humildes chega bem a vida eterna
lá no reino dos céus. Mas será que já não há ceifa
nos campos de Portugal? Trolhas à jorna
os amolas tesouras as barbearias da oposição
ou o fio-de-prumo do pedreiro de Vinícius?

Hoje sentes que me sinto mais poeta que nunca
mais em perigo mais indefeso e vulnerável.
Sinto que sentes que estou aos poucos a perder-me
mais perto da água mais desenhado na terra
mais longe da liberdade que tanto sonhei.
Fica esperança de um dia alguém se lembrar
de dizer - estas são as palavras que ficaram
afinal a poesia do poeta pedro assis coimbra.
Sinto-me que só assim mesmo distante sou eu
mas que apenas poeta é muito pouco é quase nada.

ECONOMIA POLÍTICA

Por vezes passo infinitos a olhar o silencio.
Infinitos a pensar a diluir-me com os sonhos
e deles fugir nem eu sei quando nem para onde
para criar e assumir a escrita a minha ferramenta.
A desejar o confronto directo com a folha de papel
que atenta à minha frente me observa e se insinua.
A arder continua a minha consciência guerreira
de me saber tão só por rejeitar a vaca leiteira
por não suportar a manada. De me sentir
sábado e domingo dia de semana ave nocturna
de envelhecer a tarde refazer a madrugada.

Houvesse o que houvesse hoje não sabia morrer
iludir incendiar o estrume as palavras do povo.
Saberia apenas olhar ouvir e não dizer nada.
Sim! Olhar-te os cabelos e o pescoço
os ombros e os seios firmes a semente
na planície do ventre. No sexo divagar em nós.
Da cozinha pública bafo de óleo esturrado
resíduos e fumos da química pesada.
A coragem de me sentir acompanhado
no caminho da destruição. Não tenho falta
de outro poema tenho necessidade de ti.

Comprei dois quilos de cerejas para mais tarde
as comer sózinho. Uns gémeos encantadores
e uma mãe linda de viver! Sinais luminosos
eléctricos modernos e plátanos resistentes
onde as raposas espreitam os frutos sem soutiens
e os sapatos da montra que calçam a poesia.
Necessidade de muito amor concreto
da materialidade natural do sorriso a pureza
nas mãos do primeiro beijo a falta de amor jovem
de amor que ainda não conhece as surpresas
a fúria do filtro secreto a sonolência das cinzas.

Mesmo que quisesse hoje não sabia morrer
sem imortalizar o circo imortalizar-me a mim.
Não tenho a certeza se tive papeira e sarampo.
Aos sete anos saímos da aldeia definitivamente
porque o meu pai não quis que a filha fosse costureira
ou operária numa das fábricas de telha e tijolo da terra
e até o liceu frequentámos em vez da escola
comercial e industrial. O resto fica para depois.
No meu rosto carvão de aproximar a distância
amor é sobretudo a baunilha do chocolate
os ventos azedos na desigualdade das ideias.

E eu a pensar em ti imagina a pensar em ti
não porque não goste mas porque é estranho.
Não sabia morrer sem primeiro te encontrar
tu que desde Dezembro me queres conhecer.
Uma voz doce pelo telefone a manter um coração
suspenso. De par em par as portas do meu coração.
Sem falar do exame final da economia política
da mais-valia relativa e dos custos de produção.
Não sabia morrer sem primeiro te encontrar.
Talvez o segredo se esconda nas marés da tua boca
se de madrugada entrar no cais do teu corpo.

MORTE CORAÇĂO

Pouco a pouco trespassamos os sintomas
do vidro os sedimentos inferiores da água.
A boca intacta. A boca prefácio da saliva
a península oculta na parábola do dia plural.
Nutrimos o passado de pequenos espelhos
com chá camomila de alfarrabista
sistemas nervosos de encomenda por catálogo
e a laranjeira aromática do renascimento.
Tão pouco amor por tanto dinheiro!
Há um frio material que me percorre inútil.

Na ficção palavra de seleccionar imagens
e acertar as horas na espera à porta do cinema.
Na procura imediata da fuga alvará da paixão
gostaria de a encontrar para assim me esconder.
Depois o passageiro triste vem muito só
para sermos nós. Roseira cadela em flor.
Na viagem aos teus olhos somos nós
vestidos pela vastidão na baba do gafanhoto
que nos anulamos que destruímos a meiguice
do fogo o apara-lápis do desejo.

Na difusão do fumo no contra violino da luz
é a morte coração do meu sangue
que se apaga o corpo do coração que se fecha.
A morte bate sempre ritmada às sete da tarde
nas forças extenuadas da palavra urbana
no autocarro réptil da saudade. Os braços
ferrugem dos segmentos de ferro desaguam
em nós e na longevidade dos sentidos.
Estarei sempre sempre do lado dos caídos.

A passo pisamos os dedos inéditos do cativeiro.
Um fracasso completo a excursão ao futuro.
Naturalmente não acreditava no que dizias
era uma inovação de categoria duvidosa
como o cowboy recentemente eleito.
Naturalmente acredito na água na luz
no nascer puro e insubmisso da poesia
na doçura e na amargura do azul dos olhos
mas definitivamente não acreditava em ti.
Nem no disfarce rapariguinha da diversidade.

Não escrevo do amor da intuição nocturna
ou da metáfora da neve. Escrevo de esmolas
de dádivas e de dúvidas de hipotecar a liberdade
na indiferença das mãos enlameadas do passado.
Descemos a persiana dos lábios fascinados
pelo gozo do ouro pelo navio do lume
com sabor a batata-doce que aos domingos comia.
Só a morte nos separa dizíamos ainda há pouco.
A mentira é o cipreste mais ambicioso da vida
e da morte tenho fundadas suspeitas.

A nossa voz ouvia-se sem mágoas
nas sombras as mais distantes do silencio.
Meu amor que sejas como as cerejas
milagre cheia de vida por debaixo da pele!
Meu amor de papel toca-me de novo
toca a nossa canção uma última vez!
Depois a vida é esta vespa sem ferrão
gato por lebre. Frequentamos bares marginais
bem bebidos e refrescamos as bocas
entre aguardentes lírios de plástico e moscas.

Partir é urgente. Partir é dar o beijo
mais impreciso e impessoal da sílaba
por lapso invocar a terra que nos espera. Profunda.
Partir com todas as palavras das últimas águas
é diluir a cor oculta nas páginas do fogo.
Partir meu amor partir é prolongar o coração!

CORPO COMUM

Budapeste. Setembro e Outubro.1981

"Era tu nombre desnudo
el mar abierto sobre la boca"

D. Ávila

"O portes de tons corps
elles sont neuf et je les ai toutes ouvertes"

Guillaume Apollinaire

"Estou tão perto de ti que o poema principia
toco as sílabas da pedra as sílabas do corpo"

António Ramos Rosa

JÁ A FESTA SE ANUNCIA

Já a festa se anuncia
empunhada no sorriso
no oceano perdido
nas mãos presas dos mastros
nas amarras do vento
no espelho molhado das guelras.
Por toda a extensão dos corpos
já a festa se anuncia.

Já as bocas se aconchegam
ao castanho forte da terra
à erosão húmida do tempo
ao silêncio inadiável
à dália mais frágil do monte
à alegria temporária do musgo.
Por toda a extensão dos corpos
já a festa se anuncia.

Já o pão repartimos
e o vinho não saudámos.
Já a cidade despedimos
e a saudade ignorámos.
Já a festa se anuncia
por toda a extensão dos corpos.
Já as bocas se aconchegam
à tarde da maçã à manhã de Setembro.

SUBIMOS PELOS DESEJOS ÍNGREMES

Subimos pelos desejos íngremes
estranhos um pelo outro
quase como quem percorre
avenidas de uma nova cidade
de mapa na mão de rouxinol
nas gargantas palácios submersos
das noites de todas as carícias.

Carícias na combustão lenta
da viagem do teu sol sobre o meu sol
a penetrar-se da tua lua cotovia
no amanhecer por fim verde
da planície. Por fim cinza ou subsolo.

SE EU ADIVINHASSE QUE SEM TI

Se eu adivinhasse que sem ti
faria a tarde de palha arder
secar o maior rio da vila
e do gato preto do desejo fugir.

Se eu adivinhasse que sem ti
faria prolongar a tua sombra
o meu silêncio breve da noite
e crescer papoilas na tua boca.

Afundava todos os barcos e navios
todas as estrelas todos os portos
todas as serpentes todos os frutos
todas as ninfas todos os enganos.

Os teus cigarros as minhas palavras.
Ancorava no teu corpo de perdiz
se eu adivinhasse que sem ti
um dia seria possível ter este país.

TENS UMA ROSA NO PEITO

Tens uma rosa no peito
vestígios sementes de fruta
sombras da dança solar
música de concertina
na geometria dos sentidos
na dimensão promessa do olhar.

Pela liberdade se necessário
dos outros desfaz o teu peito
perfaz as cidades proibidas
e o véu terra do mistério
mas não abras os olhos
sem antes consumires o sonho.
Tens um doce quase amargo
a crescer-te nas mãos.

DE SÚBITO O VELEIRO

De súbito o veleiro
não descansou os ombros
nem desertou a foz.
Baixou os mastros
e aconchegou-se perene à fome.

O bar da praia estava repleto
de olhos braços e bocas ávidas.
E os seus lábios? Perderam-se no fumo?
O veleiro esse saiu do porto
sem ventos fortes nem rumo.

AS MăOS SOBREPOSTAS VOADORAS

As mãos sobrepostas voadoras
sobre a pele de azulejo
na consagração do templo
a serpente da seara do trigo
ceifeiras na imagem da festa sazonal.

As mãos antigas contraídas
na água provisória do arrozal
vozes cavaquinhos das colheitas
das encostas soalheiras
nas ruas de tanta parede pouca a cal.

As mãos errantes dos lábios
cansadas de tanto colher de tanto caiar
sente-se o calor intenso na pedra
na descasca do arroz no celeiro
eira morena do seu corpo irreal.

ARDENTE MINHA AMIGA

Ardente minha amiga
o teu corpo d’água-
ardente de orquestra macia
de aranhas de cereja de insectos
de som piano impuro
malfeitor contrabando muito amor.
O meu gosto a aguardente.

Ardente minha amiga
o teu corpo d’água-
ardente égua à desfilada
de flauta insubmissa e sensual
de folhas e pautas de aventuras
seduzindo adulta o violino.
O meu gosto a aguardente.

O teu corpo de água
da próxima tempestade
O teu corpo de água
de mulher rio da cidade.

SÓ QUANDO COLHEMOS AS AMORAS

Só quando colhemos as amoras
e um pedaço da pele das tuas rendas
se prendeu ao coração das minhas silvas.

Só quando reproduzimos a paisagem
e finos os meus dedos de barro
com fundas dedadas te coloriram de rosas.

Só quando aceitámos as espadas
e fria a brisa nos protegeu com o seu véu
porque tecíamos a sede com o coaxar das rãs.

Só quando juntámos as sílabas
e sombras aves famintas de sobras
incendiámos os pulsos o mistério do vidro.

Porque pedaços da pele das tuas rendas
se prenderam ao coração das minhas silvas
avivámos o mosto do corpo o lagar do amor.

AO MOMENTO NOVE DESTA NOVA EUFORIA

Ao momento nove desta nova euforia
a festa raposa continua no seu corpo.
Corpo: tão único e tão comum aos corpos
que inventei ou inventaram melhor.

A festa continua oculta no seu corpo
na liberdade consentida das tangeras
nesse silêncio fluído e travesso da boca.
Boca: espaço desfiado da conquista maior.

Como a transparência bordada das acácias
o pó dos caminhos dos atalhos da palavra.
Palavra: chama nos olhos da fome da ousadia.

Da nascente do amor de ir ao mar e partir
com os lábios húmidos e salinos do seu corpo.
Mar: ao momento nove desta nova euforia.

MEMÓRIA DO FOGO

1981 – 1983

a Ruy Belo
a José Gomes Ferreira

"J’ecris pour me parcourir. Peindre, composer, ecrire:
me parcourir. Lá est l’aventure d’étre en vie."
Henri Michaux
"La vie fait texte á partir de mon corps. Je suis dejá
du texte. L’histoire, l’amour, la violence, le temps,
le travail, le désir l’inscrevent dans mon corps."
Héléne Cixous

ANOITECE

Anoitece
– a noite desce
sobre a mesa de quartzo
percurso da terra pelo cavalo do corpo
do cavalo pelo corpo da terra.

Pintam
– letras da vida taças de vidro
das nascentes telhas matéria solar
espírito solar da matéria
com o coração do olhar na talha das azeitonas.

BAILE

Percorrem as colinas grandes e verdes
com odor a fruta madura
vértice de sementes
caroço.

Percorrem os ramos os troncos teimosamente
a floresta arde em alvoroço
é a festa do fogo
o baile.

ESPERA

Espera
pernas levemente flectidas
– a saia não tapa os joelhos
tece o musgo malha com as unhas do coração
aveluda os olhos no espelho de rabo.

Espera
sentada a língua abandona-se
ao hálito da boca ao calcário dos dentes
num banquinho de pau – a pedra está tão fria
com as costas apoiadas na arca das mercearias.

Da cidade
ele há-de vir mais jovem
mais resistente e irresistível
– com o saco das ilusões às costas
carregado de sedução e tentações
e vestidos perfumes pancadas.

VAI Á FONTE

Leva a infusa ao quadril
porque não sabe da rodilha
e o filho à ilharga
que está fresco no andar.

Traz um sorriso matreiro
entre os beiços e o buço
que se corta nasce o dobro.

– Só eu sei só eu sei pensa ela.
Vai pôr de propósito sal a mais
no jantar do seu homem.

Para que repita o vinho
e prolongue os calores da noite.
– Parece mentira como o calor se escapa
e o frio entra pelas ranhuras do corpo
pelas frestas das janelas e do telhado.

ESPELHOS DA ÁGUA

Na passagem quase secreta da gruta
na intimidade suspeita do mar
e das mãos finas da guitarra
a luz natural fragmenta-se
pelo corpo nos espelhos da água.

Se o amor dos amantes de pinho
preso nas redes clandestinas
no vinho tinto se fortifica
é porque os olhos se diluem
no pó pelo caminho das flores.

Partiram antes do anoitecer
insinuando novas palavras
do bairro escuro da cidade portuária
com o sol de papel pintado à mão
para assim afastarem do frio o coração.

CORPO VEGETAL

Lanças parece-me um avião
pura engenharia de ponta
muito pequeno do céu muito azul
e eu rosmaninho a secar
na aldeia mais distante da capital.

Perco-me sem ti aguaceiro matinal
nascente pastora de todos os desejos
de prados repletos de sinónimos
estranhos acesos pela paixão consentida
nas avenidas da marginal.

Deixas-me inseguro na dúvida
do sorriso na areia da planície
dos gansos das galinhas e patos
na espera do teu aeroporto de vidro
procura cão do rebanho corpo vegetal.

COLHEITA

Fecunda o tempo
a tempo inteiro
enlaçados pelos dedos
pelas guias das heras
na ramagem do feijão.

Abre todas as portas
húmidas do sortilégio
à roupa lavada
cuidados caseiros
a cama já composta
e a cozinha desfeita
na boca quase incerta.

Solta os cabelos
no rasto do caracol
no rabo de cavalo
pés nus do tempo descalço
tempo solúvel
bandos manadas cardumes.

Refaz o tempo das gentes
da história pão por amassar
dos cedros e oliveiras
domingo de ramos profundo
nos campos agrícolas a sul
cultiva o tempo fecundo

METÁFORAS

Das pétalas frescas do seu olhar
ao abismo dos lírios dançam arenosas
as mãos e os dedos da pedra
as asas do prazer ternura quase final.

No abraço diluído à liberdade
nuvens de lábios e taças frescas de mosto
o fogo desertou o pseudónimo do amor.
A raposa fugiu com a amante da águia real


Memória (1980) revisitada (1982)

PALAVRA MAGIA

De um escultor de papel

Longo o murmúrio da planície
terno acolhimento da floresta.

Na visão rente á terra
duas colinas se elevam
azuis e leves – erectas e frescas
– húmidas redondas e escassas.

Dois beijos em cada pico.


Memória (1979) revisitada (1982)