quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

RUA DA SAUDADE

Disse-te
não há casas nocturnas
as três fadas da princesa
virgínia na rua da saudade
do fado plebeu dos outros
e os canários belos dos seios
na areia amarela dos dedos.

Disseste-me
não me deixes perder
na propriedade privada
dos olhos de verde intenso
sobre o peito de agosto
a arder na palha
na combustão do feno.

Multiplica-te disse
mas não os prives do mar
do teu biquini azul
que na cor nem condiz
e desses bichinhos tão queridos.
Não há luz disponível
que lhes ilumine a noite
que espera por nós.
Deixa lá! Escreve!
Escreve! Meu amor!

Nazaré, Agosto, 1983.

PRAIEIRA

Deixa pequena a manhã
correr física pelo corpo
e as orelhas burros de cartão
da escola portuguesa de outrora
descerem até à praia.

Deixa a marginal dos tristes
junto à Senhora da Vila
e os pensamentos perfeitos
agora mais que perfeitos ainda
nos altares profanos dos desejos.

Deixa o texto dito intelectual
e escuta a mensagem cifrada do mar.
Pega-me na corda da traineira
agarra-me ao peixe com as mãos
pega no remo do teu homem praieira.

TRAINEIRA

Comecei a interpretar o mar
longe dessa Europa distante
as petingas lúcidas do pensamento
filhas precoces das marés.
Mas tu não acreditavas
que as ondas deste meu litoral
traziam seixos e trazem conchas
para eu enfeitar os teus lábios.

Comecei a escrever o mar
as redes áridas do ciúme
enquanto o pseudónimo da emoção
juntava as línguas à luz dos corpos
implosão sonâmbula das águas
nas sandálias indefesas do peixe-aranha.

Chegvam traineiras carregadas de sardinha
de gaivotas e um punhado de homens.
Não sei de ti não sei de nós
nem do farol profundo na noite.
Comecei - que sentido a poesia sem ti? -
a secar o mar para encurtar a distância.


Nazaré, Agosto, 1983.

RAPARIGA DO CARAPAU

No porto de abrigo da pesca
o salva-vidas esperava a chamada
nos segredos da fé e do povo
da procissão das sete saias
e da retórica muito mais moderna
à das raparigas do carapau.
Carapau fresquinho ó freguesa!

Traziam as mãos de pimenta à cintura
moedas e trocos nos bolsos do avental
canastras de peixe sem sal
presas à cabeça no equilíbrio
do óleo condimentado da trança
dessa Pederneira solene e sagrada.

O Menino Jesus feito homem na cruz
no vale apertado dos dois montinhos
quem sabe se tão brancos – ó criatura! –
como usava ainda apenas ontem
– no ano anterior? – a Maria primeira de Gdinia
na minha história inventada de amor.

Com a baixa-mar fica o silêncio
dos lábios já secos na praia suspensa
pelos dedos ausentes da tarde
pelas festas que o sonho me oferece.

BIBLIOTECA

Repartida e justaposta entre as flores
da sala o fogo do aquecimento central
e a gravata que frequentemente usa.
Nunca vi na vida uma gravata tão feminina!

Entre catálogos e dicionários
sofás e almofadas de pousar ideias feitas
parecia porcelana mais selectiva
mais bibliográfica final feliz de livro.

Clássica parecia mais culta
mais frágil junto ao precipício da paixão
de rios internacionais feitos de cortiça
e montanhas de papel pardo e papelão.

Olhares de todos as metáforas trocadas
por uma única tentação surpresa
a ser sua caneta usada todos os dias
na página riscada das mensagens.

Envolver fria a tarde em mistério
a argumentação em muita sedução racional
com o meu país de lobos e lobas a monte
pelo teu país de fronteiras por iludir.

ARBORETUM

Éva F. – último poema na despedida
de um amor verdadeiro.


Depois de lavar sem pressas um a um
os pés refeitos de mais um dia
com um pouco de água erótica
calço-te as meias de vidro que te trouxe
até ao início guloso das coxas.

Recomeço meu destino de escrever
ofício esta profissão sem futuro
beijo a beijo até não mais sentir
os nossos lábios a tua língua de serpente
húmida redentora como o pecado original.

Um faisão quase perdiz sem coutada
imagina-se caçador de alegria fugaz
da beleza na erva quase impressionista.
Queria assustar-nos assustar-te mas acabou
por adormecer feliz a sonhar com o nosso prazer

Szarvas, 21.09.1983.

RIO DESVIADO

O vocábulo foi-se estendendo suavemente
pelas terras da quinta dos aciprestes
derradeiro e metafísico dizem
pelas cegonhas privadas da boca
suavemente que a vida anoitece
no seu caminhar inquieto de girassol.

Sentia-se fatigado pelas horas de espera
no banquete dos deuses de barro e do ócio
nos punhos de renda espadas de latão
pelas cadeiras do caruncho oficial
da cinza cinzenta intransponível
leitor atento do livro enigma da semana.

Continuava para surpresa de todos
a olhar a praça vizinha suavemente
o rio desviado do desalento a promessa do vinho
as profecias de liberdades vigiadas
entre autocarros e camionetas de aluguer
cabines telefónicas e caixas de correio.

Suavemente partia para junto das colmeias
nas asas imensas do sonho
e com fome de madrugadas amenas
que o coração também anoitece
nas paredes anónimas do quarto vazio
no solar abandonado dos sentidos.

Budapeste, 20.12.1983.

TEXTOS DA NOITE

Budapeste, 1983 e 1984.
"L’imaginaire est ce qui tend á devenir reél."
André Breton

TABERNA MATINAL

Percorre todos os pensamentos
com os cuidados de velha raposa sabida
pois nem as imagens do fogo são santos
até mesmo no templo do vinho multiplicado
que atraía os crentes mais que as tabernas
e o padre quis provar as uvas beatas
ai a carne devota da mulher do sacristão
e a pata sobreviveu coitadinha como milagre
ao lapso inquisição do azeite esturrado.

Tentaram pela última vez este inverno
segundo o correspondente estrangeiro
da televisão pública sem carro exterior
dentro do estômago do tontinho internado
que confundia a minha irmã enfermeira
com o técnico electricista do hospital.
Protestava por não mostrarem em directo
a viagem abelha sobre o Atlântico Norte.
Orgulho e alegria de todo o povo insecto.

Nas rádios não era notícia o normal da vida
que o medalha de ouro da maratona olímpica
não acusou doping e que os generais
não tinham com um golpe de estado
mandado a democracia para o congelador.
Os matadouros e as fábricas funcionavam
assim como os cafés os transportes colectivos
os quiosques dos jornais a mercearia da rua
e os jogos dos juvenis no domingo de manhã.

Desde a cantina até à baixa a protestar
com cantos e cartazes em defesa do pão
dos trabalhadores a trabalharem para os filhos.
Apenas as universidades alguns liceus
continuavam fechados e os alunos nas bermas
à boleia para as esquinas do futuro.

PAÍS QUE ME VAI ADOPTANDO

No auge da festa elevaram os cálices
à altura do céu no coração do norte.
Aí já o povo feliz da nação saiu à rua de novo
que isto de ser campeão europeu no vinho
ou no futebol não está ao alcançe de todos.

Eu com a bíblia desportiva descasco as palavras
como quem tira as escamas do safio dos sentidos
e com as tripas alimenta os gatos pretos
relembra o pianista a copinhos de licor
nas noites longas do bar pequeno do fumo .

Lanço um olhar de milho mirrado sobre
este país que sem pressas me vai adoptando
onde se diz que porco esfomeado
com bolotas sonha e um poeta desconhecido
com fama se deita e glória se levanta.

Na despedida que anuncia o vale formiga
da saudade colectiva no último apeadeiro
encontro finalmente na pedra da coragem
e na madeira da filosofia o texto em verso.

– O povo benzido nunca mais será cozido
no caldeirão a ferver do comilão joão ratão!
O povo cozido nunca mais será benzido
com o comilão joão ratão a ferver no caldeirão.

A MULHER DO TÁXI

Para Ágnés


Voltava a mim através das tuas mãos
e dos teus olhos precoces de artista
aos meus cabelos de oito meses
sem visitar barbeiro. Dos nossos encontros
nas tardes das segundas e quintas-feiras.

Voltava a mim porque à noite
finalmente não estava só nem sabia dos gatos
da gambiarra do garrafão e dos guizos
de palavras começadas por g como ginjinha
e jasmim. Não sabia de ti nem estavas só.

Sentia-me emocionado pela sabedoria
pela ousadia das ideias a frescura da idade.
Falavas dos abismos preferidos de Van Gogh
e citavas Regnard – aquilo que não conseguimos
tomar amamos até à eternidade. Minha gazela!

Dizia-te enquanto vagarosamente te vestias
que só com palavras simples sabia responder
recordando a minha avó que acabava de partir.
Neto – O peixe quer-se bem passado a carne não!
O lume que a compre se a quer comer!

Afirmava sincero enquanto te mimava
– que as musas nem sempre ganham formas
perfeitas com destaque de capas de revista
que se tivesses vivido na Itália de então
serias tu a tela a cor o modelo dos clássicos.

Não era este o poema que queria para ti
esta lucidez de realismo sem metáforas
esquecendo as cinzas mornas do fogo no granito.
Lembras-te quando na passadeira da madrugada
a mulher do táxi nos olhou e nos sorriu?

EL DESPERTAR (1975)

Para Elsa Urzua, Pintora chilena no exílio


Nessa manhã sem dificuldades existenciais
e comentários estrangeiros o ás de copas
animal de belo porte e caminhar elegante
pernoitou sem autorização nem convite
no interior do copo de água gelada
há quem diga física há quem diga servil
protegida por um pulôver azul e branco
que amália tinha colocado como senha dissimulada
na janela exterior do segmento mais débil
do sonho após a saída do inferno e do paraíso
da casa e da cozinha irreal da última serpente
afinal venenos inofensivos calmantes
para as consciências dos gatos da dialéctica.

Nessa manhã segundo agências de informação
bloquearam todos as pontes dos maiores rios
as telecomunicações internacionais
os portos e aeroportos mais afastados
alguém deixou a palavra no muro elsa
não sei se uma pêra se uma grinalda
as folhas da faia presas às mãos frias
junto dos seus olhos escuros entre ventos
e madrugadas alfinetes e sinónimos
do sonho latino-americano do exílio.

Nessa manhã não bebeu o café sem açúcar
com um copo de água da torneira
seria da sede da fome dos paliativos
guardou uma colher e uma espada
para que o ás de copas e o acordeão interior
mais verde mais vermelho pudessem repousar
as mãos no velho órgão da velha igreja.
Uma pedra secular peruana uma flor elsa
uma senha quase dissimulada porque canto
– una miríada de pájaros que deleitam mís oídos.

HAPPY – END

Certo viajante – lembrou o poeta Abdalmik – fala
de uma árvore cujos frutos são pássaros verdes.
É menos difícil acreditar nele que em rosas
com letras.”
Jorge Luis Borges


O poster de Marilyn acabou por rasgar-se
quando quebraram à cotovelada o vidro
do wc dos homens numa cena típica dos sábados.
O empregado de mesa adorava correr
as patas chocas à pedra e apalpar as nádegas
às mulheres amadurecidas em chás tostas e torradas
sempre à coca e disponível dizia baixando os olhos
não tenho a culpa é o destino são os rabinhos
garantia a pés juntos e dedos cruzados
ao patrão e às vezes ao chefe da policia local.

O santo falou gritou no meio da esplanada
juro que o santo falou que torço o pescoço
à franga que vagueia e foge pelo mato
como uma perdiz no musgo dos teus olhos.
Eu também acrescentava sorrindo
quando servia donzelas solteiras e casadas
com os seios à espreita no vestido arejado
em soutiens de boutique que bem sustinham
espreitavam por entre as pernas de Mari
que o resto já tinha sido comido pelo sol.

Mas a festa a escola mudou de palco
era menos exigente o liceu mais liberal
a universidade parecia mais popular.
O professor começava as suas aulas
solene – não se esqueçam que a estatística
é como o biquíni mostra quase tudo
mas esconde o essencial.

AMOR E METÁFORAS

1984-1985
"O céu começa a menos de um milímetro
do sol e há muito que ele é azul"
 Boris Taslitzky

Para Eszter

REENCONTRO

Deixa-me desenhar-te
com as tintas lentas das azeitonas
desenhar um pequeno ratinho
e um pato menino
no reflexo dos teus lábios.
Retocar as maçãs azedas
a lápis as uvas de mesa
no teu ventre cortina
de natureza intensa.

Deixa-me desenhar-te
gravar cuidadosamente em ti
as palmas de prata antiga
das minhas raízes sulistas.
Prolongar em ti no vento
o traço de todas as cores
que contigo se misturam.
Deponho os olhos os que tenho
no barco solar dos amantes.


Paris, 29.01.1984.

PIANO LATINO

Leonor de família irreal esperava com mágoa.
Nilo passou pelo Hary e deixou-se ficar
com música muito vinho e amigos como eu.


Nua e tímida desce ao coração do piano.
Dançava por entre os navios do estaleiro
onde a tinha conduzido o maquinista.

A travagem brusca no sinal vermelho
assustou os estorninhos em namoro
pousados no limoeiro preferido do pianista.

Que sem camisa bebia de bruços a água sagrada
na fonte onde já sem fome ela se tinha banhado
com o limão onde escondeu o anel do artista.


Budapeste, 04.03.1984.

AINDA EU NãO AMANHECIA NOS TEUS OLHOS

„Ya me pareces que eres un cristal delicado.”
Miguel Hernandez


Sento-me no parapeito estreito do sonho
escrevo do amor que acaba de se anunciar
e em voz baixa de novo me convidar
para a margem de lá a margem dos amantes.

Uso as perguntas e os vocábulos que sei
para fiel reproduzir a lua cheia do teu sorriso
nas tardes quentas da preguiça clara
e dos teus cabelos longos e louros que percorro.

– Será que alguém algum dia nos cantará
depois que esta alegria e festa de ter abrigo
se aconchegar como um búzio à tua boca
e eu possa guardar na caixa de madeira tratada?

Imagina nas ruelas do meu destino que seria
– então ainda tu não amanhecias nos meus olhos
se soubesse tocar guitarra portuguesa para ti
antes ainda do encontro dos nossos corpos.


Budapeste, 21.03.1984.

MARTINIQUE(1971)

A André Kertész

Que horas são no teu coração
rapariga? Melro de basalto
a cantar pelas pedras do caminho
rapariga que horas são?
Nas formas difusas da fruta
da água da areia e do pão
vindos de um deserto de ninguém
no meu coração que procuras?

Que horas são no teu coração
rapariga? Fotografia primeira
concertina nos meus braços
à procura da metáfora feita ternura
no meu coração que procuras?
Que relógio consertas e deitas fora
pela boca rapariga da janela?
No meu coração que procuras?


Budapeste, 05.04.1984.

DOS BICHOS BELOS

Diz-se – Ali lutou e tombou contra o ocupante
estrangeiro um jovem desconhecido de 14 anos.


Pára-quedista o crocodilo refez
o bicho-da-seda-pura-algum-metal
as-teias-de-aranha-dos-inimigos
tempos de erosão de ninhos de mentiras
e um sabor a selva talvez primavera
um cheiro a queimado e bruto dos blindados
pelo jardim botânico cívil e póstumo.

Dizem que junto a essa pedra vulgar
antes crescia uma árvore jovem e verde
com a luz da liberdade incompleta
uma árvore secular negando a morte.
Dizem que a culpa é do crocodilo
Sabe-lá-ele-do-tempo-dos-desejos
dos-bichos-belos-nos-olhos-do-sonho.

– Em Praga para satisfação dos seus habitantes
e de alguns visitantes as cervejarias de sempre
continuam a servir canecas de meio litro
de cerveja alinhadas em bandejas a metro.


Budapeste, 25.04.1984.

SOLAR

Queria dizer ilha
a mais pequenina
envolvida envolvente
na festa privada
da musa na poesia
e de costas víncadas
olhar o céu.

Atirar pedras pedrinhas
escutar profundo o silêncio
e dizer aqui tens
um morango
do morangueiro
que trago
nos meus olhos.

Podias dizer
amarrámos a noite
à claridade da lua
à boca anterior
no interior do amor.

A maresia caía contínua
nos teus lábios
e na pedra lisa
da nossa pele justaposta.
Dizer: morango olha o céu!


Budapeste, 13.05.1984.

PADEIRA DE PARIS

Para Manuel Branco


Aos poucos esquece-se dos bolos
dos pães das suas pombinhas
nem o barco furtivo do fotógrafo
perturba a calma que envolve.

Volta-se para o interior do pátio
com vigor a padeira ainda amassa
limpa o suor com o pano branco.

Repousa os olhos as ferramentas
entrega um sorriso ao anjo da guarda
os dentes nos lábios pernas mais altas
devido a ondulação entra água na máquina.

São a imagem difusa ao espelho
desprende o lenço a farinha do corpo
nem precisam da mão-cheia de sal ao fogo.

Os pássaros pousaram na massa
toda a fornada se queimou
até à boca flash do prazer. Era já noite
quando chegou o primeiro cliente.

Paris, 13.09.1984.

REPÚBLICA

Desse gato que me ofereceram
e eu deixei abandonado na berma
da estrada entre o pinhal do rei lavrador
a ocidente da praia dos nudistas
e as águas furtadas do palácio recuperado
recebi uma longa carta.

Casou-se lá fora com uma holandesa
menina em família bem nascida
criam filhos e aos domingos
apanham cogumelos que misturam
nos queijos bio-especialidade
que exportam para toda europa.

De jovem republicano convicto
com provas dadas nas lutas da rua
e textos assinados sem pseudónimo
passou a financiador da monarquia.
Sem esquecer os pobres (das línguas de gato)
citou Éluard – o pão é mais útil que a poesia.


Budapeste, 09.11.1984.

ÚLTIMA SERPENTE

A faina nocturna dos pescadores
e as verdades mais antigas que o mar
de um verso suspeito e colectivo
do forte de um texto que queria melhor
os peixes metáforas do nada
de uma fuga cuidadosamente preparada.

Nem a luz da montanha nos perturbou
quando capturaram o perdigoto assustado
no final da festa adulta das cegonhas.
A boca essa certamente pousará
secreta na pedra da noite escura
como uma lesma a abrir os olhos
da ferrugem dos novos cadeados.

Nem nos tocámos coelhos mansos
com os dedos vestidos de electricidade
para te alongar por cima da luz
nos caminhos do autocarro do corpo.
O tempo não corre está coxo?
Partiram-lhe as pernas as muletas?
Sabe-se que o coração deixou o centro
em direcção ao subúrbio cinzento.

Incompleto dizem continua a vaguear
algures entre países novos e velhos
onde chegam todos os dias folhas rasgadas
e os ventos frios do mar já seco.
Eu não sei se vou acabar em ti
desenhar o silêncio bilingue e delicado
fazer lenta a noite clara passar por ti.


Budapeste, 11.01.1985.

CINCO POEMAS À LUZ

1986–1987

INTERIORES

„Mil sonhos eu sonhei. E foram mil enganos.”
Manuel Alegre


Para Victor Medina


1. Há sempre uma porta entreaberta.
Uma ponte que nos conduz a lado nenhum.
Não somos nós. São as nossas pernas algum cansaço
mais esse desejo avô eterno de liberdade.
Liberdade peço silêncio uma noite completa.
Uma banda de músicos amadores
e muitos foguetes pela alvorada.

2. À liberdade dê-se-lhe nome óculos de sol
forma de vida comum países de ecologia pura.
Da liberdade diga-se gatinho manso da esquina
mais o povo caladinho e outros menos
blindados internacionalistas que bastem
automáticas nacional patriotas
e muito lucro casas de putas. Gente fina.
Deixem algum vinho bares e muita cerveja.

À liberdade dê-se-lhe fardas e mãos fortes
e um punhal transparente e invisível
o pior inimigo que passe janelas paredes e fronteiras
corpos ardentes mais os três rios discretos do sonho.
Que lhes trespasse o coração sem alarido
repórteres incómodos cadeias televisivas.

3. Não somos nós são as nossas pernas
uma ponte que nos conduz a lado nenhum.
Uma porta entreaberta
por onde entra a liberdade
sem se anunciar fingir insinuar
encher a barriga de pão e adormecer na água.
Ser penetrada sem saber nem sentir
esta liberdade com forma de cão
e conteúdo de begónia a mais azul
de imaginar e não se vender não se rasgar.
Sem cor sem cheiro sabor a merda livre e futurista,

4. À liberdade não se dê atenção cremes
chocolates águas termais e banhos públicos
corridas de cavalos chicotes e alimentos sensuais.
À liberdade pela liberdade peço silêncio
e uma banda de músicos amadores manhã cedo
pois há sempre uma porta entreaberta
um pensamento íntimo e interior
e uma ponte que nos leva a algum sítio.


Budapeste, 16.10.1986.
INTERIORES
„ Mil sueños yo soñe. Y fueron mil engaños”
Manuel Alegre

Para Victor Medina

1. Siempre hay una puerta entreabierta.
Un puente que nos conduce a lado ninguno.
No somos nosotros. Son nuestras piernas, algún cansancio
más ese deseo abuelo eterno de libertad.
Libertad pide silencio una noche completa.
Una banda de músicos amadores
Y muchos cohetes en la alborada.

2. A la libertad deséle el nombre gafas de sol
forma de vida común, países de ecología pura.
De la libertad diga-se gatito manso de la esquina
Más el pueblo calladito y otros menos
blindados internacionalistas que bastan
automáticas nacional patriotas
y mucho lucro casas de putas. Gente fina.
Dejen algún vino bares y mucha cerveza.

A la libertad deséle uniformes y manos fuertes
y un puñal transparente e invisible
el peor enemigo que pasa ventanas, paredes y fronteras
cuerpos ardientes más los tres rios discretos del sueño.
Que les trespase el corazón sin alarido
reporteros incómodos cadenas televisivas.

3. No somos nosotros son nuestras piernas
un puente que nos conduce a lago ninguno.
Una puerta entreabierta
por donde entra la libertad
sin anunciarse fingir insinuar
llenar la barriga con pan y adormecer en el agua.
Ser penetrada sin saber ni sentir
esta libertad con forma de perro
y contenido de begonia de lo más azul
de imaginar y no venderse no rasgarse.
Sin color sin olor sabor a mierda libre y futurista,

4. A la libertad no se le de atención crema
chocolates aguas termales y baños públicos
corridas de caballos chicotes y alimentos sensuales.
La libertad por la libertad pide silencio
y uma banda de músicos amadores mañana temprano
puesto que siempre hay una puerta entreabierta
un pensamiento íntimo e interior
y un puente que nos lleva a algún sitio.
tradución de Victor Medina

METRO

„Quand on n’a que l’amour
a offrir à ceux-lá”
Jacques Brel


1. Eram quase 18 horas noite cerrada fazia frio.
No Metro da Praça Felszabadulás esperava Victor.
Muitos policias fardados e disfarçados
muito seguros de si abordavam as gentes
sobretudo as que esperavam como eu.
Pouco simpáticos pediram-me a identificação
afastaram-se dois metros e escreveram tanto
tanto que tive vontade de oferecer a minha
esferográfica não fosse a tinta não chegar.

O poder policial-partidário-militar-politico-estrangeiro
quis demonstrar a razão da sua força.
Bem avisaram à menina da casa que anda no liceu
– não andar na rua no dia 23! Não é aconselhável!
Assim sim. Assim a população todo o país
fica a saber quem manda de quem é o poder.
Trinta anos depois da revolução húngara de outubro.

2. Com Victor como sempre em conversa prolongada
bebemos litro e meio de vinho tinto mais um copo
comemos uma saborosa especialidade húngara
local onde já não íamos há muito
jovem universitário de preço acessível.

3. Eu decidi escrever de perfumes corpos
sabonetes e outras coisinhas assim.

Um corpo. Um corpo bem lavadinho
um corpo perfumado um corpo sem cheiro a cú.
Um corpo limpo um corpo sem o medo
forte do orgasmo ou sangues inoportunos.
Um corpo muito bem depilado e perfumado
mas com muitos pêlos nos sovacos
com muitos pêlos noutras zonas. Um corpo
sem cheiro sem falar no bagaço e bebidas afins.
Os corpos não cheiram a álcool. Os corpos não!
Talvez os sexos se embriagados.

Os sexos e talvez as bocas. Os corpos não!
No fim já se sabe é tudo uma grande mistura
vómitos e ressaca confusão de corpos opostos
de sentimentos e ilusões de baterias descargadas.
Um corpo lavadinho perfumado sabonetes
verniz e desodorizante. Verniz vermelho
representante exclusivo da luz do futuro!

4. Um corpo sem atalhos sem ruas estreitas
sem sujidade e maus cheiros. Muitos
montinhos de cães e cadelas domésticas.
Um corpo sem língua alguma saliva
sem saber a corpo sem sabor à vida.

Um corpo reciclado e um rosto cosmético
bem pintado e disfarçado de falso maquilhado.
Um corpo assim e assado muito bem passado
batatas fritas e salada salsichas e mostarda.
Um corpo de estábulo de porco de vaca de carneiro.

5. Corpo estatal perfumado corpo manso. Até quando?


Budapeste, 24.10.1986.

PUZZLE

„Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias.”
Ruy Belo


Para Nuno Nunes


1. Na mesa a luz desenhava-me
desenhava-se escondia-se
e prolongava a penumbra.
A penumbra deslizava tentadora
pelo vão das escadas. Sonhadora
até às águas furtadas da luz.
Sobre a mesa um livro
muito antigo compra recente
no alfarrabista do centro da cidade.
Um aquário fictício e a luz
a luz transparente dos olhos.

2. Um relógio de cuco um canário
todas as horas do dia
todos os domingos do dia
e uma ilha deserta próxima
vizinha do teu e do meu coração.
Na mesa da luz meu amor
um pensamento de Cristo
que cresce para mim parece-me.
As barbas o rosto as palavras
a poesia e o fado devem sabê-lo.

3. No aquário um rio do passado
no relógio afluentes de hoje
na mesa as cores materiais
um álibi elefante de porcelana
um rio que passa e nos leva.
– Voltarei voltarei! Ouve-se no vento.
As acácias crescem nas margens do rio
crescem nas margens do corpo
crescem nas margens do mundo.
A cadeira de ferro forjado
onde pousam as folhas da luz
dos corações do mundo. Meu amor!

4. Escrevo no escuro corre corre cavalinho
Por cima da mesa dos olhos
da hora certa dos relógios da boca
por entre margens e rios de domingo.
A luz e a penumbra multiplicam-se
dividem-se em pequenos novelos
de pequenas bagas de sol.
Corre corre cavalinho meu amor!
Por entre a luz por entre a sombra.


Budapeste, 29.10.1986.

LITORAL

„O amor pode nascer de uma única metáfora.”
Milan Kundera


Para Eszter

Acariciei a proa exígua do navio
vê lá bem convencido que estarias à espreita
e não resistirias a tanta devoção.

Do porão da areia branca e breve
reprodução azul do litoral do teu peito
chegava-me húmida até às mãos pecadoras.

Subtis as redes da minha assimetria
libertaram-se entre a luz e o entardecer.
Dormimos toda a noite de olhos abertos.

Santarem, 13.01.1987.

POVOAÇÃO


„Corro o mundo à procura do poema
que perdi não sei quando, nem sei onde.”
Miguel Torga

Para o Meu Pai


Lenta a tarde cai
sobre ombros dispersos
de ruas escuras e casas húmidas.
Deste lado do vidro
parecem(parecemos) as vacas leiteiras
do leite mais barato do supermercado.

Na mesa misteriosa
as outras vacas não investem
não consomem pobre empregado.
A tarde caí imbecil
dizem(dizemos) sobre as cabeças
cabelos penteadinhos
dos meninos de bem meninas da moda.

Atrasado a cancela fechada
pouca terra pouca terra
o comboio atravessa o peito
esmaga todas as papoilas
da imaginação ferroviária
do fundo livre dos teus olhos
no coração do próximo silêncio.

Do trabalho assalariado
carrinhos de mão carregados
de brita e a saliva das mãos
a saliva gasta na conversa da tarde.

Olham(olhamos) sem comentários
a furgonete que encobre o corpo
a pequena paisagem do largo
cirurgia plástica de sucesso
e da neve trazida directamente
das altas montanhas da Suíça.

Pela furgonete que encobre o rabo
saudável rabo português rebolando-se
a preguiçosa ao longo da tarde.


Santarém, 14.01.1987.

II. PALAVRAS DO FADO

2006-2007
Como resposta ao desafio lançado pela Fadista
Joana Amendoeira em Budapeste, Dezembro de 2005.

SE EU ADIVINHASSE QUE SEM TI


Se eu adivinhasse que sem ti
faria o dia de palha arder
secar o maior rio da vila
e por fim os teus sonhos saber.

– Afundava todos os barcos todos os navios
todos os cais todas as pontes
todas as flores serpentes e frutos
os teus ciúmes todos os meus fados.

Se eu adivinhasse que sem ti
faria do mar pedras e sal
abria as portas ao silêncio
da planície branca de cal.

– Se fosse verdade o que eu canto
ancorava para sempre no teu país
se adivinhasse que sem ti – porto seguro –
seria possível ter um país.

PROLONGAR O CORAÇÃO


Sim! É finalmente aqui
entre o litoral e o nada
que o meu sonho se entrega
e eu repouso nos teus olhos.

Sim! É finalmente aqui
que as ilhas afinal de pedra
se fecham e eu regresso
ao vitral dos teus lábios.

Aqui! Pois há sempre uma porta
entreaberta e este mar
ponte infinita que nos leva
a algum sítio da tua mão.

Talvez às areias finas
de um peito azul macio.
Porque partir meu amor
partir é prolongar o coração.

JÁ A FESTA SE ANÚNCIA


Já a festa se anuncia
deslumbrada nos sorrisos
dos oceanos perdidos
nas mãos livres dos mastros
e das amarras do vento
no reencontro dos braços.

Já as bocas se aconchegam
às sílabas do prazer
na fonte de alegrias mil
à imagem forte da terra
a da última erosão no tempo
das guitarras em Abril.

Já o pão repartimos
e o vinho nós saudámos
já cidades despedimos
e Lisboa encontrámos
de tão sedutora livre
de tão livre insubmissa.
Já a festa se anuncia.

PÃO DAS PALAVRAS


Vêm meu amor vêm até mim!
Traz-me manhãs claras
no pão das palavras
e os afluentes da música
nas açucenas dos lábios.

Vêm meu amor vêm até mim!
Traz-me tardes sol
nas janelas dos dedos
e as cinzas mornas do fogo
no forno das carícias.

Vêm meu amor vêm até mim!
Traz-me noites secretas
nesse sorriso de cetim
lareira da minha alegria
da nossa canção sem fim.

Vêm meu amor
vêm comigo vêm por mim!

VAI À FONTE


Leva a infusa ao quadril
porque não sabe da rodilha
e o mais pequeno à ilharga
que está fresco no andar.

Na rua ao sol d’inverno
traz um sorriso maroto
entre os beiços e o buço
que se corta nasce o dobro.

– Só eu sei só eu sei pensa
vai pôr de propósito sal a mais
no jantar do seu homem
para que repita o vinho

e aumente os calores da noite.
– Parece mentira como o calor se escapa
pelas frestas da casa do telhado
pelas ranhuras das janelas do corpo.

MORANGUEIRO FELIZ


Queria dizer ilha
de todas a mais pequena
envolvida envolvente
na festa privada
da música e do poeta
do povo e da guitarra
e olhar o céu.


Lançar pedras pedrinhas
escutar o silêncio
comum e dizer
– Aqui tens um morango
do morangueiro
feliz que trago
nos teus olhos.

Podias dizer
– Amarrámos a noite
à noite da lua cheia
e nas águas furtadas
do sonho anterior
desenhei uma flor
uma flor deste verão.


Coloquei no meu sorriso
nas margens tímidas
do amor dos outros
um recado um só desejo
que os anjos te guardem
e depois a cantar direi
– Morango olha o céu!

DO TEU LITORAL


Acariciei com as palmas
das minhas mãos
a proa do navio encalhado
vê lá bem convencido
que estavas à espreita
e não resistirias
a tanta devoção.

Do porão abandonado
a areia branca
reprodução recente
do perfil azul escuro
do teu litoral
chegava-me pátria
até às portas do coração.

Por entre as redes desfeitas
e sonhos de pedra de então
recolhi um búzio
para não estar tão só
à tua espera.
Toda a noite me ouviu
histórias da gratidão.

ÁGUAS FURTADAS DA LUZ


No jardim a luz desenhava-me
desenhava-te e escondia-se
prolongava a penumbra do olhar.
Seduzida a penumbra deslizava
pelas escadas do sonho
até às águas furtadas da luz.

No olhar intenso da luz
não tenhas dúvidas poesia!
Um pensamento profundo de Cristo
que cresce paciente para mim.
As mãos a palavra amiga
o teu fado deve saber a tua luz.

Regresso ao jardim ao sotão
da noite escura da ilha deserta
à procura da luz do céu
do amor perfeito já seco.
Olha espalha a luz que ilumina
leva o fado a Cristo!

ESPERA SENTADA


Ela espera e desespera
as pernas dobradas
a saia não chega
para tapar os joelhos
tece e escurece faz malha
as unhas arranjadas
aveluda os olhos
no espelho da parede.

Ela espera e desespera
pela noite sentada
a língua abandona-se
ao hálito da boca
num banquinho de pau
a pedra está tão fria!
Com as costas apoiadas
na arca das mercearias.

Ele há-de vir da cidade
bem posto mais jovem
mais sábio mais viajado
mais resistente e irresistível
com a mala das ilusões
carregada de seduções e tentações
vestidos e perfumes
e os maus tratos de sempre.

QUANDO POR FIM AMANHECE


Quando por fim amanhece
e Lisboa se desperta
é que os teus olhos perfeitos
batem às janelas dos meus.

Os dedos finos ainda não voltaram
e como o fado está à minha espera
uso então as metáforas do povo
e deixo a ternura a rimar.

Permaneço por isso distante
longe de ti longe dos meus
bem perto do coração do vento
de toda a correria do pão.

Sim porque no Tejo de todos
e nos lábios dos amantes
navega um barco do pensamento
feito de fogo e desfeito em luz.

CIDADE TRAZIA NA VOZ


Descalça percorre uma a uma
as palavras verdes do poema
que os olhos claros anunciam
mas que nunca ninguém escreveu.

Vinha da terra vinha do pó
do bairro urbano distante
com um cheiro a café no sorriso
que de ver fazia tão bem!

Afinal cidade trazia na voz
a rosa mais pequena do mundo
e sem mágoa só adormecia após
caminhar pelas vielas do silêncio.

No rosto de um coração amigo
com tempo dedilhava devagar
todas as notas do prazer de ficar
nos fados que um dia vão inventar.

Partiu um dia à noite sem avisar
dizem para terras incertas
outros para o parapeito da paixão
abismo casa por encontrar.

NÃO SEI MEU AMOR


Não sei meu amor
não sei porque só exijo
um pedaço de pão trigo
para secar nos teus lábios
a doçura do limão
e sonhar no teu sorriso
o meu abrigo.

São os teus olhos
de cor nem sei
de formiga talvez negros
voam neles – nos teus olhos –
um bando de pombas bravas
e a liberdade imagina
das noites do fado antigo.

Depois nos contornos da sombra
na intimidade da água
e nas colinas da luz
se perguntas que digo?
Não sei meu amor não sei
de quem é o ninho do campanário
se é teu ou de algum perseguido?

A FAINA CONTINUA


Na noite a faina continua
pelo ventre denso do nevoeiro
entre longos silêncios contidos
barcos e braçadas fortes.

Os remos músculos marcados
e as redes pesadas o pescado
dedos de tabaco mastigado
e o mistério opaco do mar.

Ó terra! A espera inquieta
no areal final da esperança
entre gargantas gritos e ais
preces e pedidos divinos.

Entre mãos secas fechadas
e olhos húmidos rasgados
fogueiras frias primeiras cinzas
de mães de mulheres de irmãs.

AS SURPRESAS DO TEMPO


Só quando colhemos as amoras
e um pedaço de pele das tuas rendas
se prendeu ao coração das silvas.

Só quando recriámos a paisagem
e breves os teus dedos de barro
se encontraram com as cores da viagem.

Só quando aceitámos o perfume do vento
e a brisa nos protegeu com o seu véu
porque tecíamos as surpresas do tempo.

Só quando juntámos as papoilas
ao fado ao lume das palavras
incendiámos o céu das cegonhas.

– Porque pedaços de pele das tuas rendas
se prenderam ao coração das minhas silvas
cantámos o mosto do corpo o altar do amor.

PRATAS ANTIGAS


Deixa-me desenhar-te
com as tintas fortes
das azeitonas lentas
a lápis maçãs e uvas de mesa
no teu corpo frágil
de natureza intensa.

Deixa-me moldar-te
nos jardins sombrios do palácio
marcar contigo uma a uma
as pratas antigas
e as caixas de pimenta
e de marfim julgadas perdidas.

Deixa-me prolongar-te fado
rebuscar as palavras em verso
por toda a magia do sol
sobre a nau da aventura
com carvão para disfarçar
e a cortiça para não afundar.

CAMINHOS DA MINHA VIDA


Estes são os primeiros passos
dos caminhos da minha vida
que nunca se afastou.

Os primeiros minutos verdadeiros
pelas ruas da minha aldeia
das romãs dos figos de outrora.

É o primeiro encontro
de mim com a minha ausência
sou apenas a minha gente.

O momento do primeiro café
da chávena aquecida
que bebi por amor

e guardei por gratidão
na combustão lenta da alegria
da infância algures esquecida.

Nunca mais serei eu
sem comer o bolo da noiva
que os olhos amassaram e cozeram

CIÚMES DA TERRA


Disse-te com ar sério
que não há casas nocturnas
que as três fadas
da princesa virgínia
na rua da saudade
são apenas rolas belas
até no erotismo da voz.

Da foto a preto e branco
e os ciúmes da terra
sobre os seios já amarelados
disseste-me com ar sabido
– Não me deixes perdida
pelos espaços públicos
dos pensamentos privados.

Eu compro-te o livro disse
mas não me prives do mar
e da roupa transparente
no altar do desejo
pois não há lua que chegue
para iluminar a noite vazia.
Deixa lá escreve e canta!

CIÚMES DA TERRA


Disse-te com ar sério
que não há casas nocturnas
que as três fadas
da princesa virgínia
na rua da saudade
são apenas rolas belas
até no erotismo da voz.

Da foto a preto e branco
e os ciúmes da terra
sobre os seios já amarelados
disseste-me com ar sabido
– Não me deixes perdida
pelos espaços públicos
dos pensamentos privados.

Eu compro-te o livro disse
mas não me prives do mar
e da roupa transparente
no altar do desejo
pois não há lua que chegue
para iluminar a noite vazia.
Deixa lá escreve e canta!

LISBOA DO LADO DE LÁ


No perfil da sombra
de Lisboa do lado de lá
há um baloiçar de criança
das ancas do sol
no sorriso escuro da água.

Nos meus olhos
que pedi emprestados
só há luz para iluminar
os lagartos aquáticos
na fauna do teu corpo.

As taças de pudim caseiro
que ontem cozinhaste
para os gatos gulosos
dos meus sentidos nos teus
seios de açúcar queimado.

CORRE VENTO CORRE CORRE


Corre vento corre corre
prolonga os teus braços
os teus dedos sibilinos
junta-te a outros ventos
que me falta o tempo
que o amor não me crê.

Corre vento corre corre
pede ajuda aos amigos
aos parentes e aos vizinhos
revisa todos os campos
vales montanhas planícies
que o amor não me crê.

Corre vento corre corre
alia-te aos inimigos
às tempestades do norte
às correntes do sul
e ao fado do ciúme
que o amor não me crê.

Corre vento corre corre
ajuda-me a encontrar
o coral mais pequeno
e a flor mais insegura
para a devolver ao vento
que o amor não me crê.

OLHOS PERFEITOS


Não eu não sei se tu
és o mar ou foi o mar
que te encontrou por acaso.
Se os teus olhos chegaram do mar
se o mar chegou nos teus olhos.

Porque muito antes de saber
que os olhos perfeitos
eram afinal os teus por eles
abri os braços ao fado
ao abismo do mel ao abismo da voz.

Eu não sei que país queremos
que raiz ? Sei que é a luz
dos teus olhos que protege
os náufragos do mau olhado
os navegantes na mansidão do cabo.

É nos teus olhos que se esconde
o navio da próxima viagem
da peregrinação pelas palavras
no último cais da saudade.
O coração dói de tanto querer.

VESTIR O MEU FADO


Devagar a cidade desperta
do seu sono leve de seda
dos braços frágeis da lua
no aroma café da manhã.

Do cais a última carta
afasta-se na vela de um barco
no silêncio dos olhos
nas pestanas azuis da terra.

Ao longe parte-se um ramo
na planície das mãos secas.
Será de cedro de oliveira ?
Falei contigo era meio-dia.

É a imagem que esconde
que liberta o pensamento
ajuda a vestir o meu fado
e as palavras que partilho.

Ontem á tarde
todas as tardes
a tangerina mais doce
do pomar dos meus pais
por ti cantou comigo.

ERA AMOR POR TI


Quando me li nas tuas mãos
pressenti plágio perfeito
que eterno era amor por ti
caudal intenso fora deste leito.

Adeus mãe adeus Lisboa adeus
é o amor que se fixa em mim
tudo o que fizer por ti farei
e como quiseres assim serei.

A palavra trazia nos olhos
um lamento sílabas da rua.
Se por tão pouco te abri as portas
porque tocas tu e não me cantas ?

No preâmbulo tricô da pele
tantos dias rasgados à euforia
não já não somos o que fomos
nascente e poente da alegria.

FILHOS E NETOS


Morrem pacientemente
nesta terra dessa Europa
a ocidente das folhas secas
do abandono frio da noite
no inverno à portuguesa
tanta promessa por cumprir.

Morrem silenciosamente
à entrada da própria casa
no portal tarde demais.
Sós despedem-se devagar
no olhar calmo de hoje
com a luz sábia de ontem.

Cuidam das campas dos seus
de bengala pelos caminhos
jogam à sueca entre si
esperam os netos nas férias
e as novelas do serão
morrem suavemente.

Na desilusão tão amarga
das cinzas já esquecidas
deixo este fado sonho puro
contra as roupas da solidão
do vazio dos mais fracos
e as chamas vivas dos filhos.

A LUZ DE TODOS


Como quem procura as mãos
que sentia serem de santos
inventar queria rimar guitarras
com escadas de degraus eternos.

Subir o Monte das Oliveiras
Daniel que já então sabia
adivinhar o sonho dos outros
por esse caminho dos justos.

O céu está tão alto tão longe
terra prometida panos de linho
no Milagre perfeito de Dezembro
na festa do pão do último vinho.

Canto o Carpinteiro de Maria
daquele povo tão profundo
discreto pelo Menino vivia
que sabia ir salvar o mundo.


Ai dos pobres dos humildes
se ganhar o vento dos poderosos
que até o céu querem comprar
e a luz de todos guardar.

Abandonado de joelhos sorriu
no meio da noite mãe do pranto
até que perdoa a dor a mágoa
do fado de Deus do meu canto.

O GATO DO MEU FADO


Despedia a minha cidade
antevendo o frio distante
e as sombras da próxima noite.

À entrada do Chocolate
ao sol o gato da casa
dormia serenamente.

Quem diria que sonhava
sofria perdidamente
com o seu único amor
interrompido bruscamente
em Santarém fado comum
por uma rua cruzada
em hora de má sorte.

Decifrava o meu coração
no calor dos teus olhos.
– Quando a escuridão
fechar a cidade onde estás
procura o teu sol interior
para de nós iluminar
e não te perderes na saudade.

Ainda tão jovem dizia
– São tão jovens os meus sonhos
que só agora começam.
Sonha sim sonha comigo
gato das sete vidas
nas festas do destino
desta guitarra de amigo.

VIAGEM AO SILÊNCIO


Vento escuto uma a uma
as pedras o poema do mar
que os teus olhos verdes anunciam
e eu sempre desejei cantar.

No rosto desta minha cidade
que casa livre habitámos
que janela vegetal se fechou
com que noite nos afastámos?

Pela viagem ao silêncio
aguarela matinal da ilusão
trazia um navio – Amar-te-quer
fogo aceso da emoção.

Que importa raiz que só saiba
ideias simples a falar de nós
se tu afinal nem conheces
as minhas palavras a minha voz.

FADO HÚNGARO


Grande o amor alimentava-se
da luz e do trigo das nossas palavras
algumas das metáforas dos corpos
de tardes e muitas noites de rosas.

O sol a sombra quis desvanecer
e a cidade cativa iluminar
utopia lá se escondeu nas folhas
nos lábios sedosos das águas.

Naquela manhã fria as mãos abertas
– se tanto arriscaram por tão pouco –
que mais podiam fazer de um só olhar
regressar a casa deixar de sonhar?

Dias desejos de frutos livres
lagos profundos planícies imensas
onde por lei já não era permitido
revelar os silêncios do vento.

Na praça no país a insubmissão
acendeu ruas e atravessou as pontes
na ilusão da primeira aventura
fogo da vida espada mais pura.

Nevava em Buda nevava em Peste
sobre os olhos do luar sublime
cinzas e pó carvão da liberdade.
Gelava – esse inverno precoce.

MI SERPIENTE DE MIEL


Mi sueño Mi sueñorecordo-me tão bem
dizias silvo quase doce
no encanto da tua voz.

São nos breves olhares
mesmo em terras distantes
que se inventam
os grandes amores.
A fascinação verdadeira
se acende e queima muito.

Na magia desses dias
que ainda não esqueci
o fado foi-se ouvindo
misturando-se Mi sueño
nas barricadas do desejo.

Dois corações nocturnos
duas utopias luminosas
misturando-se com o tango
pai filho nosso irmão
pelas margens deste rio.

Ainda hoje Mi sueño
casa mãe pátria exílio
Mi sueño porteño
sonhando-me no teu tango
vadio imaginando-te
no meu fado furtivo.

Ainda hoje ainda hoje
somos nós que eu procuro
quando me perco em Paris.
Mi sueño. Mi serpiente de miel.

AMOR TAMBÉM É PÃO


Sem saber porquê se esquece
entre sacos de farinha
milho centeio e trigo
mas é a vida que apetece.

No silêncio nem se lembra
dos bolos do pão no forno
e da cozedura que aquece.

Limpa o suor a fadiga
volta-se para o pátio
procura os olhos mais lindos.

São estes os olhos bem sabe
na escola na feira no baile
que quer desde que se conhece.

Passa a língua nos lábios
repousa as mãos que merece
e sorri ao anjo da guarda.

Tira o lenço não amassa
que o amor também é pão
imaginam que a noite desce.

As rolas sempre à espreita
pousaram na massa a meio
toda a fornada se queimou.

E é na festa das cegonhas
que vento a chama estremece
nas mâos-cheias de sal ao fogo
já a luz se apaga amanhece.

OLHOS DE DOMINGO


Peço pela liberdade dos outros
e pelo fado da nossa vida.
– Fecha os olhos e escuta
as noticias do meu coração.

A raposa fugiu
com os teus olhos de Domingo
os mais lindos de água pura.
Quem sou eu fadista quem sou eu
para exigir a extradição?

O fogo comum desertou
o pseudónimo do amor
e do inverno imagina
os amantes fizeram mantas
que dos ventos frios protegem.

Leio do rio na madeira
nas cordas da ponte velha
no teu coração a mensagem
– Não desistas de procurar
e me levares para casa
no conforto dos meus braços.
Não desistas de te encontrar!

DEIXAM O CORAÇÃO ABERTO


Quando cantam a despedida
do pensamento ao vento
deixam o coração aberto
à fome do fogo à vida.

Deixam o silêncio sozinho
entre o abismo da saudade
e as cores forte do pinho
a chuva lenta da tempestade.

Das mil folhas lírios mil rostos
nada ficou para recordar
nas páginas brancas dos sentidos
nem na poesia latitude solar.

Depois deste amor daquele fado
esqueci-me do que queria dizer.
Se pelo menos te tivesse dito
tudo o que sentia por ti
pouco precisava ter inventado.
Que poderei pois ainda receber ?

DE MÃOS DADAS


Juntos desceram a noite
como quem deixa a solidão
entre os caminhos dos sentidos
e as margens frias do tempo.

Das águas as últimas da fonte
os sonhos na verdade vividos
eram toda a nossa gratidão
nos olhos intensos do vento.

De mãos dadas com a cidade
desfolhavam outros silêncios
naquela luz vinda de longe
do fogo que ardia por nós.

Afinal uma paixão e a festa
pelas areias finas dos lábios
que vai das pedras até à foz
pois aí dorme pura a claridade.

Muito depois subiram os dois
até ao planalto da alegria
desse amor fósforo sem idade
que vive no fado da poesia.

PERGUNTAS À LUZ

Quem mudou de mãos à beira-rio?
Foi contigo que troquei de sonhos?
Ninguém? Mas alguém quem é? Luz do sol?
Que praia-mar que sal que farol?

Foi por ti que o dia se alongou
pelas colinas? E o luar de ontem?
Que pôr-de-sol no rosto da tentação?
Serás tu a minha insubmissão?

Agora a ilusão amanhece?
Porque se insinua de novo
a madrugada? Que luz imprecisa
iluminou a tua boca furtiva?

Seriam os teus lábios feitos
de pó valioso? E a noite
porque persiste em acariciar
o teu nome e a sombra abraçar?

Será possível que todos te conheçam
sem nunca te terem visto? É tua
a letra fina da folha escrita
na palma da mão da minha rua?

Ao sul da tarde és tu a leveza
do ar? Importa que tenha apenas
estas perguntas diria luminosas
se tu és a minha única certeza?

DEIXA-ME CANTAR-TE CIDADE (PORTO)


Deixa-me cantar-te cidade
com as melodias tranquilas
das minhas raízes mais a sul.
Depois prolongar em ti solfejo
a grandeza do fogo e do fumo
tocar-te na cartografia da voz.

Deixa-me escrever-te inédita
mesmo que noite não saiba de mim
junto ao Douro de prata antiga
no cais do povo e do vento
onde os corações se juntam
a estes versos de pedra no templo.

Tear de alegria distante
deixa-me decifrar os seus segredos
nos teus caminhos até à foz
que Invicta teimas em esconder.
Pela liberdade da ilusão.
jogos de desejos e sedução.

Ficção virás quem sabe da chuva
no baixo-relevo dos silêncios
de portas e janelas abertas
para lá da sede dos lábios
e do seu sorriso imaterial.
Irmão encantador de formigas.

Deixa-me sonhar-te em palavras
na barra-fechada dos sentidos
mãos que se tocam e se afastam
Alfândega de encontros furtivos.
Amor é sobretudo sobremesa
o doce conventual do teu olhar

BAILINHO DAS GUITARRAS

Pedro e Paulo diz-se de Roma seriam
mas se nem pastas nem amoras comiam?
De Lisboa e do fado talvez por adopção
aqui tropeçaram nas calçadas da tentação
e com pinhas mansas e pinhões sem mágoa
cantava: sim! Venham que estamos em Lisboa.

Se Amendoeira rima com laranjeira
e Pinhal com Rei e livros de Portugal
Paz perspicaz seria um ás nas cartas
se Coimbra doutor não fosse tão igual.
Essas margaridas que cresciam tão próximas
célias espalhavam as palavras pelas pétalas.

Porque no pinhal da paz longe ainda
de Coimbra na terra da ti’Olinda
diziam sábias as velhas matreiras
– dá Deus amêndoas e amendoeiras
a quem tem olhos na voz dedos e coração.
Ouvir a neta ia o avô todo pimpão.

Junto ao aqueduto dos sonhos novos
e no Rossio dos lábios salgados
do Tejo onde todos querem ter mais sede.
Guardam na varanda a colcha já amarela
pelo sol em Belém dão gosto à canela
na simetria noitinha moscatel da fome.

Não! Não digam que o Fado não é alegria
bailinho das guitarras e poesia de cordel
com cortiços abelhas das acácias fazer mel
a quem tem olhos na voz. Cantava melodia
– tenho pedros e paulos vocês têm-me a mim
e Deus minha mãe Lisboa meu pai querubim!

MARCHA DO MARISCO


Comia depois da festa dos amigos
do tacho restos assados da morcela.
Cantava em Janeiro com os vizinhos
à janela mesmo em frente da capela.

Ó santa santinha santola camarão
caranguejo ameijoa e berbigão
lavagante lagosta e lagostim
sapateira desse Dezembro sem fim!

Sapateiro que já sapatos não fazia
e marisqueira que não é sapataria
desculpas nesta marcha do marisco
perfume perfeito ó perdição do petisco!

Moça modista mosca-morta sorria
a romaria ao longe já se ouvia
rosa-dos-ventos salva-vidas do refrão
na Rua das Portas de Santo Antão.

Ó santa santinha santola camarão
caranguejo ameijoa e berbigão
lavagante lagosta e lagostim
sapateira desse Dezembro sem fim!

Isto porque lá fora assim ensinava
às filhas os sons da língua portuguesa
e as palavras como sabores cozinhava
– barrigas da pátria barricas de cerveja.

COMO É POSSÍVEL MEU DEUS ?


Fátima Vanessa Sara Daniel Joana
no meu país há mães pais avós e tios
que matam que castigam até à morte
bebés meninos e meninas de Portugal.

Neste país tão ameno tão solidário
de brandos costumes um povo aberto
das portas no trinco da mesa posta
a loucura caminha ao nosso lado.

Dizem: Já não somos os mesmos de ontem
no mundo estamos entre os primeiros
nos maus tratos na violência familiar
sobre menores crianças indefesas.

Matam porque choram demais querem comer
matam porque não dormem dão muito trabalho
morrem às mãos diabo da força bruta
filhas do meu país filhos de Portugal.

Há mães que choram pais que sufocam a emoção
avôs de luto tias que sofrem caladas
gente discreta e incrédula que pergunta
onde estavas? Como é possível meu Deus?

No meu país há mães pais avós e tios
que matam que castigam até à morte
Fátima Vanessa Sara Daniel Joana
o fado canta o choro de todos por vós.

CORAÇÃO DE BASALTO


Quem diria quem diria
que o carteiro do bairro
com tons africanos fraternos
e andar desalinhado
cantava o que escrevia
aos sons infieis do amor.

– Que horas são no teu coração
rapariga? Melro de basalto
nos silêncios do batuque
e nas linhas ténues da dança.
Rapariga que horas são
nas folhas difusas do amor?

Que horas são no teu coração?
Pão caseiro chapéus de palha
das figuras perfis dos sinos
e na capelinha dos braços.
Plantações tropicais da saudade
no passado Lisboa do fado.

Que horas são no teu coração
rapariga? Ternura primeira!
No meu coração que pesquisas?
Que relógio de bolso consertas
e deitas pela boca fora
ou pela janela rapariga?

INTELECTUAL POIS SOU FADISTA


Esta é a tarde de todas as mentiras
para que o amor saiba toda a verdade
alada nas bocas vermelhas do fogo
das amoras das mãos nas margens de nadas.

É a noite dos palácios submersos
na lentidão das palavras de ferro-forjado
da paixão bordada na terra pelo sal
passageira desejada pelo sonho.

É a viagem do inverno tão doce
de mapa descendo longas avenidas
e as praças mais húmidas do meu coração
pois feliz a poesia ainda existe!

Começa assim este fado que eu canto
com dedos e guitarras de Lisboa
com alma na universidade da vida
que todas as manhãs cresce na água.

Continua e não termina este fado
que quero intelectual pois sou fadista
vem do povo do campo povo da cidade.
Canto a alegria de estar aqui Saudade!

A CIGARRA E O FORMIGÃO


Cigarra dá-me depressa o vinho
disse o formigão mandão.
Aqui tens o vinho e o copo
disse a cigarra mandada.

Cigarra dá-me depressa a sopa
disse o formigão mandão.
Aqui tens a sopa e a colher
disse a cigarra mandada.

Cigarra dá-me depressa o pão
disse o formigão mandão.
Aqui tens o pão e a faca
disse a cigarra mandada.

Cigarra dá-me depressa o tabaco
disse o formigão mandão.
Aqui tens o tabaco e o lume
disse a cigarra mandada.

Cigarra dá-me depressa o café
disse o formigão mandão.
Aqui tens o café e o bagaço
disse a cigarra mandada.

Cigarra dá-me a tua mão
o teu perfume o teu olhar
dá-me o teu corpo a tua voz
o teu futuro quero tudo.

Não não terás a minha mão
o meu perfume o meu olhar
nem o meu corpo a minha voz
o meu futuro sem ti.

SEXTILHA INTERIOR DAS MANHãS


Desfolhando as dúvidas a poesia
escondeu-se na última carruagem
como se nevoeiro em corpo nocturno
passageira do sonho e da ousadia
desse lume intenso nas margens do Tejo
alfamas antigas da nova harmonia.

A tarde de tão súbita acendeu-se
lenta incendiou-se ali nos teus olhos
e um navio aliado afundou-se
à deriva pelas palavras e lábios
na sextilha interior das manhãs brancas
gosto a madressilva de lendas e mitos.

O fado de novo no caminho do povo
as maçãs assadas do nosso pensamento
que me envolve festa em cada fruto
de fonte em mim pátria em ti
no céu aberto da erosão do futuro.
O único que tenho! A única que quero!

CAMINHA QUE POR TI CAMINHO


Dizia a brisa
a brisa cúmplice
do mar e dos amantes
na baía dos sentidos.

– Tens um junquilho
um junquilho no peito
na erosão inicial
da noite perdida
jogos de espelhos
na dança oculta da luz.

– Pela liberdade
da liberdade tão próxima
meu amor de erva cidreira
refaz os teus ombros
pela raiz do silêncio
nos suburbios da cidade.

– Pois na viagem do sol
do sol intenso da lua
a nossa cama de incenso
cotovia na madrugada
da ficção fluvial repousa
na planície por fim verde.

Por fim cinza pura
no subsolo da paixão
caminho que por ti caminha
caminha que por ti caminho.

FADO DO AMOR SEM RIMA


Será que o final feliz existe meu amor?
Se existe é contigo que irei partilhar
subir a luz inteira da lua perfeita
lentamente até às colinas das mil rosas.
Será que mesmo frias as nossa mãos lisas
se descobrem junto à chaminé do desejo?

Ao rio o azul descia súbito do céu
avenidas na geometria dos sentidos
o licor do bairro a flanela da paixão
verbo delicado na lisura da ilha.
Sem se saber retoca o rosto vulnerável
na Sé antes de percorrer os caminhos da fé.

Sim! Para mim o teu sorriso será sempre
o postal ilustrado desta linda cidade
que desde a primeira hora me aceitou
e na noite ainda o caminho me indicou.
Íntimo esse teu sorriso será sempre
a fotografia primeira deste único amor.

FESTA MUSICAL DA PALAVRA


– Ardente minha amiga
teu corpo de água ardente
festa musical da palavra
de orquestra erudita
de aranhas e de cerejas
piano impuro malfeitor
contrabando muito amor.
– O meu gosto a aguardente.

– Ardente minha amiga
teu corpo de água ardente
silêncio fluído profundo
álibi de flauta insubmissa
calor intenso da pedra
encosta soalheira da erva
violino folhas de acácia.
– O meu gosto a aguardente.

O teu corpo de água
da próxima tempestade
de harpa fascinante
pássaro alecrim escondido.
O teu corpo de água
de sal guitarra da poesia
da combustão do fogo
na sede baile da alegria.

NA VOZ BREVE DO VENTO


Repousa por momentos o coração
no azulejo mouro dos teus lábios.
Será possível a nossa paixão?
E caminhas dizem-me alegre.

Uma cotovia sedosa anuncia
entre dois sinais de fumo e fogo
a manhã do nosso reencontro
no dia em que as mãos foram a jogo.

Será verdade? Podes continuar
no fascínio da luz a norte do olhar
e descer ao mais fundo do sonho.
Ter-te próximo é tudo que mais quero.

Partilhar contigo o meu silêncio.
Repousa por momentos o coração
os olhos o pensamento na terra
na pedra lava do último vulcão.

– E depois cantando escrever: Vêm!
E caminhas dizem-me alegre.
Virás talvez? Na voz breve do vento
e com um beijo leve no sorriso.

ANDANTE FADO CORRIDO


Começa primeiro de mansinho
colhendo as palavras do vento
na margem da minha voz atenta
lá no planalto do pensamento.

Junta todas as ideias à pressa
antes mesmo de inventar o verbo
quer um destino e com o teu rosto
iluminar as ruas e a praça.

Com os lábios frios do inverno
recordam o calor do sol da aldeia
esperam a chegada do navio
os marinheiros de muito desejo.

Boa ajuda a pagar a renda
a mensalidade fixa da ama
sabe nem sempre a vida dá fruto
e nem todo o fogo se faz cinza.

Por fim fica esta canção urbana
do meu fado que também é festa
eterna andante fado corrido
peregrino da luz contra a sombra.

FADO MADRIGAL DO POVO


Encosto-me ao parapeito do sonho
e olho a noite no céu de Maio
há vultos de dálias e acácias
procuro a tua palavra amiga
a voz do fado madrigal do povo
e descanso no portal nas mãos do sono.

Pego na guitarra que nem é minha
na periferia do próximo rio
e abro as janelas ao silêncio
a escrever desse amor primeiro
que acaba de se me anunciar
e de tão verdadeiro fascinar.

Amor sem sombras agora me chama
para o lado de lá margem do sonho
no cais luminoso dos amantes.
Seriam imagino os teus dedos
sobre a guitarra que nem é minha
e a voz do fado madrigal do povo.

MEU AMOR AINDA TE LEMBRAS

(Tributo Irmão)

Meu amor ainda te lembras
como explicavam a sorte
com desenhos e rosas amarillas
formigas brancas e voadoras
religiosamente guardadas
nas palmas de músicas latinas?

Do andaime que nos protegeu
da chuva fria da trovoada
do arbusto que nos salvou
da vergonha dos que nos querem?
La mujer madrugada do táxi
que adivinhando nos sorriu?

Porque quando tocam os sinos
é para juntar el pueblo
anunciar as horas exactas
a palavra de Deus na terra
ou despedir gente próxima.
Sim meu amor tu sabias!

Mesmo sem a paixão de ontem
as verdades vindas do estômago
como em Piaf franco destino
meu plágio inimaginável
e a primeira noite del fuego.
A despedida será possível?

Quem sabe mi amor quem sabe
se nas metáforas finitas
da carpintaria do sonho
as dos segredos e do degredo
na verdade jovem del viento
si corázon
o amor seja nosso?

UM FADO PÓS-IMPRESSIONISTA

Sobre o quadro “Descanso do Trabalho”
Van Gogh

Deixas que as cores vivas
que tanto gostaria de pintar
nas tintas diluídas dos sentidos
transformar sentir depois cantar
se espalhem pelas minhas palavras
dissimuladas pelas telas
primeiros esboços ou destinos
no mistério dos teus olhos.

São pinceladas e são guitarradas
no instante fugaz da cidade
fábulas de ontem esquecidas
das uvas do arroz e das favas
dedos de linho sobre as cordas
onde deixas toda a fraternidade
no mar disfarçado que inventas
pintor de luz e de rosas brancas.

Eu só gostaria de saber escrever
encontrar o caminho perdido
para um fado impressionista
que uns pintam para que eu cante
na cintura industrial do sonho
com a alma social do artista
e deixar que as tuas cores vivas
se espalhem pelas minhas palavras.

A MOLEIRA DO VIZINHO

Sobre “El sombrero de tres picos”
Manuel de Falla

O vento desce a colina
inquieto parece dizer:
Ó moleiro não te atrases
e ao regedor poderoso
abre as portas da trovoada.
Muita faísca tanta água!

Ó moleira ó moleirinha
tem cuidado minha linda
que o regedor manda chuvas
astuto e com mansas palavras
por entre as tuas pedras claras
quer banhar-se nas águas ternas!

Sabe estar agora sozinho
pensa os bons modos e perfumes
não te vão deixar dizer não
mas faz de conta que não sabes
que por perto não há vizinho
e dá-lhe um copo de bom vinho

Ó moleira ó moleirinha
fina sê tu a seduzi-lo
nos movimentos da tua saia
e do teu lenço de mil cores
põe-lhe a cabeça em água.
O teu homem está na cadeia!

Ó moleira ó moleirinha
dança continua a dançar
a mover-te por entre as sombras
da pouca luz do teu moinho
leva-o lá até à azenha.
O teu homem está a caminho!


Palavras escritas em Budapeste e ainda em
Lisboa, Peniche, Porto, Braga, Estoril, Funchal,
Vilamoura, Sófia, Zagreb, Salzburgo e aeroportos
de Frankfurt, Munique e Praga.