terça-feira, 23 de dezembro de 2008

I. AS PALAVRAS QUE FICARAM*

1975-1987

No Começo das Palavras (1975-1979)
A Poesia na Viagem – Metáforas do Vento (1980-1981)
Vai Palavra Vai (Agosto de 1980/Dezembro de 1980)
Últimas Águas (1981)
Corpo Comum (Setembro-Outubro de 1981)
Memória do Fogo (1981-1983)
Os Paradoxos da Água (Agosto-Setembro de 1982)
Mãos de Areia (1983)
Textos da Noite (1983-1984)
Amor e Metáforas (1984-1985)
Cinco Poemas à Luz (1986-1987)


*livro publicado em Setembro de 2008 pela editora PRAE.HU

NO COMEÇO DAS PALAVRAS

1975 – 1979


"Foi então que descobri as palavras"  José Gomes Ferreira
"Por que palavra começar, por que desordem"  Eugénio de Andrade

ABRIL

(Palavras em construção)

Palavras em construção
os sonhos de Abril tão próximo
para escrever na areia
os novos pensamentos do mar antigo.

Na fogueira das palavras
a chama ainda arde a ilusão
nas cinzas quentes raiz da liberdade.
Restam as ideias para a combustão.

ROSA

(Deixem-me abrir uma rosa)

Deixem-me abrir uma rosa
com a força dos meus olhos
como se fossem o sol.

O fascínio está em tudo
no relevo doce dos lábios
nos bicos pontiagudos dos seios
na sede suspensa das coxas.

Doce e fraterna como um enigma
a nossa poesia virá depois.

PEDRA

(À margem do coração do tempo)

À margem do coração do tempo
sentinelas de barro vermelho
moldam as setas com o vento.

Desenham no céu nuvens negras
os corpos do poema incompleto
a arder na pedra livre do canto.

Resta-me uma folha em branco
o cigarro de um sonho submisso
um não esquecido na algibeira.

REMO

(Minha audácia naufragada)

Minha audácia naufragada
terras de areias movediças
meu instante de regresso.

A tua mão como um remo
concha perfeita do mar
tapando a entrada do universo

NOVELO

(Querem fazer deste povo)

Querem fazer deste povo
um novelo de lã barata.

Querem fazer com este país
gente que também eu sou
uniformes batas para criadas
sapatos ao quilo sopa dos pobres.

Quem sonhará outras manhãs
no estuário de chibeque deste rio?

CIDADE

(Fecha-se um abraço de aço)

Fecha-se um abraço de aço
ao redor da cidade.

Quem te fechou à força
as asas da liberdade?

Corre-me navegável um rio
até à tua nascente.

Quem nos abrirá a poente
as portas às rápidas da corrente?

SEGREDOS

(As bruxas da noite afiam as unhas)

As bruxas da noite afiam as unhas
com as lâminas do silêncio.

Os dedos de vidro castanho moído
juntam as palavras já cortadas.

Queima como a liberdade iniciada
que morre quase colectiva na revolução.

Quando os ventos dos inimigos
sopram fortes deixam degredos.

Profetas de hoje proibidos de sonhar
amantes de guardarem os seus segredos.

ÁGUA

(A água do pensamento perfeito)

A água do pensamento perfeito
resoluta desce apressadamente
entre desfiladeiros verdes
das tuas pernas por enfeitar.

Nem o vento ousaria ir tão longe
na conquista melro desse ninho
protegido por sentinelas à espreita
no musgo que antecede o vinho.

AMOR

(Nem que o fim meu amor primeiro)

Nem que o fim meu amor primeiro
seja o último abismo sem fim
meu amor ter-te assim comigo
no momento de outra sublevação
é tocar no coração da luz do sol.

Os lábios são frutos e são espadas
os beijos da produção cooperativa
lábios e beijos emboscadas furtivas.

TERRA

(Os lírios da unidade popular secaram)

Os lírios da unidade popular secaram
porque as máscaras de guerra civil
do ódio e de soldados armados os vestiram.

O Chile de Allende na traição caiu
e na terra anónima e fria o rasgaram
com nitratos e muito cobre o cobriram.

SONHO

(Em silêncio a formiga)

Em silêncio a formiga
desceu pela solidão da luz
e aconchegou-se discreta
à insurreição das palavras
do azeite e de algum vinagre
à voz forte de Neruda.

Chegou a hora do sonho
do poema conquistar a cidade
ainda antes de cair a noite
na hora da festa interrompida.
Subiram até ao sol do povo
os lábios limpos da liberdade.

NICARÁGUA

(Daqui das margens do Tejo)

Daqui das margens do Tejo
com as ondas-curtas da esperança
vislumbro em segredo Esteli
povoação guerrilheira cercada
pelas forças leais ao governo
muitos seios de linho
muitos sexos de ferro a arder.

À distância tudo indica
ser possível que o massacre
da razão seja sinónimo de futuro.
Quando Esteli cair
as formigas da sublevação
serão sepultadas colectivamente
provavelmente numa mina abandonada.

Agora até o disfarce da morte
vem todas as tardes jogar futebol
brincar às escondidas nas ruas
com as crianças pobres do bairro.
Os sinos da igreja do Bispo de Manágua
dos padres filhos do povo sabemos
nunca mais ficarão em silêncio.

PALAVRAS

(Onde estão as palavras secas)

Onde estão as palavras secas
onde estão os amantes de ontem?

Porque faltam as metáforas
para tantas tantas ruas por inventar?

Que água que sol nocturno que prazer
merecem essas mãos esse corpo?

Figos de grandes figueiras rolas por provar
teu último tesouro por descobrir?

Que caudal te despedaça
que foz te acolhe e nos abraça?

A POESIA NA VIAGEM – METÁFORAS NO VENTO

1980 – 1981

"Era la sed y el hambre, y tú fuiste la fruta
era el duelo y las ruínas, y tú fuiste el milagro"

Pablo Neruda

"Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vêm-me não sei porquê, uma angústia recente"

Fernando Pessoa

AMIAIS

Estes são os primeiros passos da minha vida
os primeiros caminhos perdidos
da minha negação que nunca se encontrou.

Estes são os primeiros minuto verdadeiros
percorridos calmamente pelas ruas escassas
da minha aldeia dos marmelos galegos
dos figos maduros de outrora.

Este é o primeiro encontro real
o único encontro de mim com a minha ausência.
O primeiro café a primeira chávena aquecida
que bebi sem querer e parti por gratidão.

Este é o primeiro momento
em que não sou mais que a minha gente
a combustão lenta e final
da infância humilde e feliz algures abandonada.

Não! Eu nunca mais serei eu!
Nunca mais beberei a minha terra
com lágrimas de coelhos e gafanhotos.

Apenas a lâmpada ofusca para esturrar
o bolo da noiva que os fornos dos olhos
migalha a migalha amassaram e cozeram.

Amiais de Baixo, 06.07.1980.

CACILHEIRO

No cacilheiro para Lisboa

Há um baloiçar de criança
das ancas do sol
nos olhos cinzentos da água.

Nos meus olhos
só há luz para iluminar
os lagartos aquáticos
que povoam o teu ventre.

As taças de pudim caseiro
que tu cozinhaste
para os gatos gulosos
dos meus dedos nos teus seios
de açúcar queimado.

Lisboa, 27.07.1980.

CHOCOLATE

Com Zetho no Chocolate

E depois mesmo aqui continuo
anónimo a contar ao contrário
a minha história e a negar a negação.

Entre orelha de porco e salada de polvo
petingas e carapaus fritos em azeite
copinhos de ginja e de medronho.
Continuo a dizer sim a dizer não
a desertar o pseudónimo do amor.

Mesmo aqui este desejo permanente
de te encerrar na ilusão da poesia
na prisão mais húmida e mais sombria
da minha alucinação ibero-continental.
Esse bichinho de pêlo macio!

O gato da casa dormia serenamente.
Quem iria pensar que sonhava perdidamente
com o seu primeiro e único amor
bruscamente interrompido por uma rua
da cidade atravessada com pouco cuidado.


Santarém, 18.08.1980

*Zetho Cunha Conçalves. Poeta e amigo

BRASILEIRA

Na Brasileira entre amigos

Enquanto os sinos do Seminário tocam à desgarrada
asas pretas de corvos iludem a paixão às escondidas!

As lesmas descem lentas a parede infinita
do focinho dos cães e comem pasteis de nata
com as mãos domésticas dos amantes de papel.

Eu bebo uma gasosa nas pedras da foz
para curar uma bebedeira gelada de saudade.

A senhora verniz fora de prazo da mesa ao lado
é uma miragem barata de feiras ambulantes
de perfumes e cremes de colares de anéis
peles e varizes e muito pó-de-arroz. A caçadora!

Santarém, 22.08.1980.

ADEUS

Um comboio que parece uma tartaruga.
Uma carruagem espanhola do tempo de Franco.


Aqui o fogo já não é revolta
na insurreição permanente das gargantas
sapudas ou das agulhas dos dedos
e o suor a resina das teias de aranha.
Adeus mãe adeus cidade adeus adeus.

Aqui o tempo é a secura da cinza e do fumo
das folhas no adeus prolongado
à humidade do olhar no comboio fugitivo
do sonho nos sentidos da geografia
e acender uma vela no coração do vento
as chuvas mornas na despedida de Agosto.

Eu entro no silêncio viajante
a ignorar os outros e a dizer
adeus mãe adeus cidade adeus adeus
quando voltar hei-de trazer umas asas de pau
ainda maiores para voltar a partir
partir e regressar com um cordel na ponta.

Levo com os olhos-de-água
todos os recantos deste pequeno país
a frescura e as sombras das portas-de-sol
e as maçãs azedas como eu gosto.
Quando em contracapa te leio pátria
descubro tudo em ti pátria a única que tenho.

V. Franca das Naves, 25.08.1980.

CONFISSăO FERROVIÁRIA

Para Nour Ben Ali

1. Se um dia me libertar das vozes interiores
inquietação e amargura que fascinam
e me lançam no abismo da felicidade.

Então direi: Poesia o teu esforço
foi inútil. O silêncio é o meu destino.

2. Quis comprar um acordeon da marca
dos filmes do Comissário Maigret
para oferecer à lígia que inventei e me espera
já na próxima estação com um ramo
de bagas venenosas no canto verde dos olhos.

Para desgosto da namorada de lígia
tinham estado em saldo e esgotaram-se.

3. Tiro ovos cozidos do saco de plástico
pastėis de bacalhau e alperces pisados da viagem
sandes do sol a tempo já duras
em palavras simples insinuar que tenho fome.

Uma garrafa de água do fastio como se tinto
do Cartaxo hoje sem uma vénia especial.

4. A festa de Hemingway?
O amor de Éluard e Baudelaire maldito?
Ou a amarga-doçura de Edith a Piaf?

Paris! Paris quem és? Revolução primeira?
Fascínio europeu de intelectual de esquerda?

5. Não! Não tenho dúvidas: Éva
é no azul fogo dos teus olhos que dorme
o cais do último navio da esperança.

6. Amor vêm percorrer o meu coração!
Vêm cultivá-lo de ferrugem
desbravar os seus bosques cerrados
libertar os saltimbancos de madeira.

Descobre como ele é grande como é negro
como todo o prateado já estalou e resiste.

7. Eu queimaria toda a alegria
em troca de uma só laranja da baía
para que nunca deixe de ser agridoce
como a liberdade como a poesia.

Paris, 26.08.1980.

GDANSK E GDINIA DO POVO

Pregos espetados na indústria pesada
no fumo de ferro e na voz de aço
nas escamas de peixe estragado
dos estaleiros navais da classe operária
talvez agrícola se na debulha do milho.

Linhas infinitas de tesouros de Deus
único no céu de mármore fresco
de santos de gesso e anjos de barro.
Um Jesus tão próximo tão filho do povo
salgueiros de um Vístula luminoso
e uma Silésia densamente arquitectada.

A jovem mulher do ferroviário dormia
cansada das noites em branco dos gémeos
dos peitos e das mamadas de bocas a dobrar.
O comboio vigiado de novo atrasado
maquinistas de gravatas e muito poder
passageiros inconformistas que posso dizer?

Strasbourg, 27.08.1980.

CIDADE

Recordo Olga de ontem ainda
inca-peruana. Futura médica.

No local interior da boca
a cidade é um chafariz público
de águas tenras de pedras ternas.

Na ponte de madeira da língua
a fogueira é um chilrear profundo
de um gaio fascinante a cantar.

Os brincos azuis do corpo moreno
são as ginjinhas do café da esquina
nas asas felinas da amante das enguias
nas asas felinas das enguias da amante
ou nas asas enguias da amante felina.

Viena, 27.08.1980.

LÁNY DE ÁGUA

Eu pediria aos caroços da sombra
mais infinita e distante
da neve e da chuva invisível.

Os íris de água da luz natural
para fazer um véu transparente
do silêncio de cuco e de besugo.

Que fosse tão pequeno e tão lindo
que só desse para encobrir a roseira
dos teus joelhos e zonas suburbanas
quando impacientes as minhas mãos
fizessem turismo sonâmbulo e livre

Todos eles meus companheiros
da poesia não diriam que não
se tu rapariga aceitasses o véu.

Törökbálint, 05.09.1980.

DÁLIAS E DEDOS

Um punhal a duas faces de vidro
compota caseira e liberdade
leviandade e pão. Pêssegos maduros.

Um autocarro de beijos dos teus
são três capítulos do policial premiado
as folhas rasgadas dos bilhetes dos dedos.

Um ramo partido de pessegueiro.
Um passaporte de dálias proibidas.
Nas sombras beijos teus. Dálias e dedos.

Balatonszéplak, 08.09.1980.

VASAS – BOAVISTA

Jogávam futebol por amor
e faziam amor por dinheiro.
Havia que ir á loja todos os dias
comprar pão e margarina iogurtes e salsichas
às vezes detergente e papel higiénico.

Futebol? Ternura e palavrões na relva erótica.
Amor? O guarda desatento e frangueiro da baliza.
O Boavista ganhou dois zero ao Vasas
clube do sindicato dos metalúrgicos de Budapeste.
Era tudo o que te queria dizer poesia.

Budapeste, 19.09.1980.

FONTE

Quando mais te queria minha
mais te imaginava perdida
te desejava rebuçado e morango
água salobra da bica da fonte.
Terra cisne podre de amargura!

Falta-me tanta doçura
para me saber transmitir telefonia
amor. Tanta aranha enamorada
na tua nascente renascida
no meu estuário de conde besouro.

Budapeste, 22.09.1980.

FELSZABADULÁS TÉR

À ceguinha da Praça Felszabadulás
no seu banquinho a vender senhas
de lottó e bilhetes de autocarro.

Invadem os atalhos íntimos das novas palavras
com uma bandeja de tojo e de espinhos
nas unhas meigas dos olhos.

Uma bandeja de papelão
decorada com as tintas do sorriso mais triste
escurecido pelo ar tenso da capital.

Sentam-se em silêncio no primeiro banco
ninho de cobra na berma perfumada do luar
para se aconchegarem e esquecerem.

Talvez um dia o rouxinol do filho do sol
receba arenoso o apelo do infortúnio
e chegue urgente com dois molhos
de lilases e esmeraldas valiosas no bico
e as deponha sobre os seus olhos sem luz

Budapeste, 30.09.1980.

CHAPLIN

Mas eu espero espero por ti amor
rapariga que nem és minha nem dos amigos.
Alma contrabando do meu relógio de bolso.

Espero por ti minha estimada flor
a dezassete forints cada. Um senhor decote
dos desejos mais íntimos dos olhares
de entrega e rendição mais clandestinos.

Não nem palavras nem camas constipadas
pela instabilidade continental do clima
porque eu espero espero por ti gata brava
do monte a pilhar galinhas alheias.

Doçura-amor do filme incompleto
na candeia dos teus braços de lua cheia
no copo do vinho. Eu espero espero por ti!

Budapeste, 14.10.1980.

SUEńO CUBA


A Sílvio Rodriguez
A Arturo Portuondo

Sueño com serpientes Sílvio
serpientes de mel
lodo e colares de malmequeres
no silêncio vadio da pátria e do exílio.

Sueño com serpientes Sílvio
com beijos e borbulhas espremidas
por mãos cálidas de fadas boas com rum.

Sueño com serpientes Sílvio
serpientes de ardósia
com revoluções de plástico como a minha
lábios de pó e bairros sociais.

Sueño com serpientes Sílvio
com cimento areia tijolos de barro
o pão e o circo das casas abandonadas.

Sueño com serpientes Sílvio
serpientes de amor
que vazam os meus olhos de vidro
com as cascas dos limões da igualdade.

Törökbálint, 21.10.1980.

DE BUDAPESTE A MONTEVIDEU

Para Eduardo Bleier
Para Daniel Maňana

Mi hermana geografía mi hermana libertad!

Oferecem os garfos das veias colectivas
aos filhos da terra à guerra à medicina
uma caixa de bolachas de água e sal
aos miúdos inquietos do bairro insubmisso.

Em Budapeste os cantoneiros
dos paralelepípedos e passeios do betão
tem dores nas costas e mãos gretadas
os salários em dia dentes de tabaco.

Mi hermana geografía mi hermana libertad!

São operários vão de autocarro ao trabalho
e de volta comem batatas cozidas
carne panada e sopa e salada.
pão muita paprika banha e toucinho.

Só jogam às cartas se a dinheiro bebem
cerveja vinho e aguardente de ameixa
enchem de fumo as tabernas nas caves
e são adeptos do Fradi a toda a hora.

Mi hermana geografía mi hermana libertad!

Bebemos mate mascámos desejos
apaixonados nas nascentes naturais da água
com espelhos trazidos de Montevideu
e os desenhos de pequenas begónias da paixão.

Meu irmão Gerardo! Meu irmão Daniel!

Budapeste. 29.10.1980.

SOMBRAS DO POVO

A Nelson Mandela

Percorremos os pulsos das perdizes
das palavras nos cornos do vento
a nevar cinzas sobre as nossas asas
com a certeza de sermos gente.

Os caminhos não eram talco nem pó
mas a graxa era ainda assim
a entrada triunfal para a cidade conquistada.

Quando olhámos para o nosso lado
reparámos por acaso finalmente
nas nossas pequenas sombras do povo.
As moscas! As moscas éramos nós!

– A liberdade adiada dos outros.

Budapeste, 30.10.1980.

HOSPITAL

Por momentos até me convenci que era filho
do primeiro ministro e me escoltavam
com uma sopa de cogumelos e pepinos
envinagrados que só de olhar me agonia.

Descuidado comecei distraído a trincar
– o pepino não! – suave suavemente a enfermeira
de bombom com licor de cereja quando a doutora
me chamou à atenção – que não era permitido.

Pedi desculpa às duas beijei as mãos dedo a dedo
tinha uns olhos castanhos lindos de comer e chorar
por mais chamava-se Gyöngyi pérola de hospital.

Nesse momento chegaram com sonoro urgente
duas ambulâncias de papel carregadinhas
de caças efes cincos e migues vinte e tantos.

Estes amigos anti-pepinos que me rodeiam
trouxeram um ramo de malmequeres
e um par de calças lavadas e passadas a ferro
contra as melgas e os moscardos da guerra.

Budapeste, 02.11.1980.

ANTI-CICLONE

1. Dorme com bonecas de urânio e corsários
com espadas de pau antigo no submarino nuclear
sistema de segurança superior da nação.
Peça fundamental do sonho inofensivo do império.

Sente por ti um sentimento único – desdém!
Não és nada para ele sem mim
e o seu aspecto vulgar é isso mesmo
– tu és o meu precedente a ideia original!

2. Faz pesca submarina para te vender
o fato preto-funeral em segunda mão
que o anti-ciclone das canárias não quis
a preço único – com amante de cor incluído.

Em troca dir-te-á grátis o segredo
de inventar tranças e carvalhos robustos
com fardas de presidiários
e marcas dos outros ou linho dos teus.

Eis um diamante verdadeiro do Tibete!
Deita-o fora antes que os outros proíbam a festa

Törökbálint, 14.11.1980.

FILOSOFIA DE ESTUDANTE

À Maria João

Às vezes quero escrever e não sei!
Talvez seja do vazio inesperado das palavras
e da filosofia desmentida dia após dia
as muitas teorias – baratas – da conspiração
e a mitologia universal por interpretar.

Quero viajar na liberdade da poesia
com as metáforas do vento
na procura da luz verdadeira
que um dia talvez encontre e afinal
só pontapeio latas como aprendi em Charlot.

Nesses momentos é que eu sei
que um sapato mesmo roto é um sapato
não é um camelo de infinitas terras frias
que mesmo acompanhado mesmo sozinho
o caminho pelo deserto tem de ser meu.

Depois um camelo como eu era
como eu sou anda descalço e feliz
não dá pontapés nas pedras não interpreta
apenas as transforma e as canta
na emoção das histórias por inventar.

Às vezes quero escrever e não sei!
Até porque hoje o fascínio não chegou
dissimulado de surpresa como costuma
nas roupas lindas da novidade do luar
nas roupas intensas das asas do prazer.

Budapeste, 25.11.1980.

CANÇăO PARA TI

Só exijo um pedaço de pão trigo
para limpar dos teus lábios
a gordura do amor
e sonhar na viagem o meu abrigo.

São os teus olhos de cor nem sei
formigas avelãs de não dormir
penas de polvo tinta em perigo.

Voam neles meu sonho
um bando de pombas bravas gritos e algas.
Para quem é o ninho do campanário?
Para quem é o ninho do campanário?

Budapeste, 02.12.1980.

GOSTO DE TI A RIMAR

Gosto de ti quando arrefece
e quando de imprevisto amanhece.

Se o meu corpo no teu apodrece
gosto mais de ti mais de ti porque anoitece.

Budapeste, 29.12.1980.

ESPADA VEGETAL

1. A imensidão do tecido das sílabas.

Vêm vêm até mim traz-me manhãs claras
nas fagulhas das palavras
e resgates exigidos sem telefone
nas açucenas da boca.

2. E vem tão só. Uma espada vegetal
secreta e é tudo.

Não! Não bebo no rio não engano a sede
onde despesas oculta as águas ensaboadas
dos segredos mais íntimos da tua pele.

3. Os afluentes imprevistos da música popular
belos pedaços de histórias de alquimia ou tu.

Do alto da sua astúcia o lobo
aproxima-se da arvela sonolenta e domingueira.

De cesta no braço cheia de caracóis
agriões hortelã de Dezembro
e lagartixas para estufar.

Soube mais tarde que o lobinho
mais pequeno chamou-lhe um bombom.

Budapeste, 03.01.1981.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

NAVEGANTES

A primeira palavra da felicidade dos navegantes
já começou mascada na mansidão do cabo.

Uma onda incendeia-se nos teus olhos a gratidão.
Um cortinado moveu-se mas são minhas as amoras.
Uma nau perdeu-se no interior imenso do amor.

A penúltima palavra do vento já se sumiu
nas bocas do fogo. Abrem-se as portas da poesia
estava agora mesmo – acredita – a pensar em ti!

Budapeste, 11.01.1981.

OS DEUSES DE AVIĂO

Os deuses andam de avião e em discos voadores
com direito a combustível subsidiado
e como se mortais agarrados ao sexo
fazem amor com as empregadas do templo.

A mulher mais bela do mercado central da cidade
faz pose gratuita para o pintor flamengo
que está à espreita nos meus olhos.

A saia e a blusa estampadas de rosas e cobras
são convites maduros bicos e picos adultos
e os laços são tão finos transparentes tão intensos
que não há hipnose ou princesinha que os destrua.

Budapeste, 13.01.1981.

BOCA AZUL

Tantos dias rasgados à euforia
as espadas nas bainhas as mãos no asfalto.

A boca azul rente às pedras do corpo
ao diamante fluído da neve na rua.

Papoila: a raposa fugiu com os teus olhos.
Quem sou eu para pedir a sua extradição?

Budapeste, 14.01.1981.

TÁXI

Amada perdeu-se um táxi nos teus olhos
era eu que te queria abraçar sem permissão.

As flores alimentadas pela maresia da música
cresceram marítimas como tangerinas doces.
Foram os únicos potes de mel que não provei.

Amada dói-me o coração de tanto te querer!

Budapeste, 21.01.1981.

MÁRMORE-ROSA

1. Escondi-me na carruagem do corpo
com os lábios inquietos da má sorte
com as mantas de nuvens antigas
e uma taça de café para não dormir.

Oferece um cigarro para não te esquecer.

2. Nas autonomias do coração nunca imaginei
juro por tudo o que me é mais sagrado
que os teus seios pequenos e duros
me soubessem na boca a mármore-rosa.

Era tão boa a aguadilha das romãs
o fogo da manhã que humedecia a língua.

Sófia, 25. 01.1981.

AMOR PERFEITO


Em Sófia com o Zé Esteves*

Esqueci-me mas tenho a certeza
que foi já há muito tempo.
ofereci um verso comprometido quase infantil
a uma menina em botão do teu
e do meu Ribatejo. Como era linda
como se assemelha às imagens
que hoje já povoam os teus sonhos.

Esqueci-me mas tenho a certeza
que foi apenas há momentos.
Eram rodelas de luz e tecidos de seda
pão e água lábios e línguas.
Baton e perfumes importados do ocidente.

Estava quase tonto de sono
quando me recordei dos figos secos
e das passas das nozes e avelãs.
Sim é nas mãos que começa a festa
os caminhos últimos da tentação.

Esqueci-me mas sei muito bem
às vezes mesmo sem navalhas afiadas
ou moto-serras cortamos definitivamente
os troncos das metáforas que são nossas
as raizes e a memória das próprias mãos.

No momento das despedidas
ficam para vos iluminar os laços da fantasia
desse farol persa da estrela da madrugada.
Ficam na música longínqua dos búzios
se encostarem como só vocês sabem com muito
muito cuidado aos ouvidos marítimos do amor.

Sófia, 27.01.1981.
*O espectáculo já começou nos teus olhos
a inquietação da poesia da fascinação
vai despertá-los todos os dias pela manhã.

ANTÍTESE


A José Afonso

Este poema é muito mais que um poema
que uma nau pequena à aventura
ou uma emboscada furtiva.

Este poema é muito mais que um poema
é a minha dúvida quase esquecida
o silêncio inaceitável a entrega
fraterna das minhas ideias igualitárias
a destruição final de todos os dogmas.

Este poema e o meu sangue nocturno
o teu nome o grande edifício construído
com o barro diário da minha ingratidão.

Este poema é muito mais que um poema
é uma época incerta e provisória
talvez na aurora de um grande amor
que não cabe nas palavras na poesia da paixão
a desvanecer o tempo a diluir-te no tempo.

Este poema é a afirmação convicta que o futuro
não é propriedade privada de ninguém
e adormecer inquieto com a minha antítese.

Belgrado, 30.01.1981.

PASSA A PALAVRA

Os enigmas no coração do vento
tradução literal dos teus olhos
chegaram cedo de carta-expresso.

Passa a palavra a mensagem
tenho bacalhau do bom e um litro de bagaço.

Amor dá a coroa de búzios que encontrei
perdida na areia à curta-metragem premiada
à alegria aos silêncios da ternura.

Lembra-te daqueles dias daquelas noites
tão curtas para nós e tão longas para a inveja?

Dá a mão aos crentes aos insubmissos
à revolta em fogo brando às urtigas
e depois acorda com a lua nos meus braços.

Mas não abras os olhos - tanta malícia
tanta letícia - sem antes alimentarmos o sonho.

Budapeste, 10.02.1981.

POETA HÚNGARO


Para Eugénio Pinto Braga

1. Há dias fui fazer uma reportagem no aquário.
Estava agitada a peixaria do cardume.
Assisti a curiosa e violenta discussão.
Amores desavidos e vidas na rua. Escamadas.
Vai para a truta que te traiu! Já disse.
Vai para a truta que te traiu!
Gritava alterada e delambida uma sardinha
toda enfarinhada em pinturas de conserva.


2. Na fonética perfeita da capitalização
do sonho dos cursos de águas dos loucos
e dos amantes sem direito à indignação
os pingos da sopa de abóbora-menina
feita por ti já caíram no meu pulôver novo.
Todas as manhãs te vou despertar com um beijo.


3. O homem já chegou à Lua
e qualquer dia vai a Marte ó Marta cozinheira
com um bitoque no prato e um ovo a cavalo.
Até parece que nos tempos que não passam
umas luvas de cabedal valem tanto
como um par de nádegas avulso.


4. Foi com um giz encarnado comprado
a prestações no armazém do povo
que desenhei ontem à noite para ti
o louva-a-deus do materialismo histórico
enquanto o Nuno pescava uma bela tainha.

Mas é a meiguice das palavras
pois a farinha da vizinha é melhor que a minha
que eu tenho sobretudo para oferecer
ao teu sorriso secreto e pedir
que sejas como cerejas quanto mais as como
mais vontade tenho de te comer mesmo crua.


5. Último flash meu bicho-da-seda.
József Attila é um dos melhores poetas do mundo
para toda a vida o meu poeta húngaro.

Budapeste, 21.02.1981.

FIM DESTA VIAGEM

Foi na curva do Danúbio entre choupos e salgueiros
exilados e apátridas que o itinerário se desvaneceu
ao rimar o lixo doce da paixão com ocupação
das coxas o turismo sonâmbulo e livre dos meus dedos
com os únicos potes de mel que me ofereceram.

Azul eram as vitrinas da pele o Metro de papel
a emboscada furtiva nas noites da avenida
baratas do bolor mais a aguadilha das romãs
dos que andaram como eu no rabisco da azeitona.

Frequenta a universidade no caminho da tentação
sem apeadeiros para poetas o tontinho da cidade
e as lesmas que descem lentamente a concertina
corpos de cinza e carvão a comoção mal contida.

É a nadar que o rio também é vertigem é viagem
nas metáforas do vento com cortiça do Alentejo
que as bocas e os olhos dos teus malmequeres
se despedem do cais na nau no navio dos mosquitos.

Hoje para dizer a verdade só queria ler A Bola
ver um grande jogo de futebol ganho pelo Sporting.
De verde acender uma vela que iluminasse o céu
com o teu sorriso finalmente descendo da lua
para adormecer na minha casa que é toda a tua rua.

Budapeste, 25.02.1981.

VAI PALAVRA VAI

Nazaré, Agosto 1980
Budapeste, Dezembro 1980

"Voici des fruits, des fleurs, des feuilles et des branches,
et puis voici mon coeur, qui ne bat que pour vous."

Paul Verlaine

ABRO AS MăOS

Sim poesia! Um momento de pinhões
impreciso de conchas e búzios azuis
noites de conspiração grainhas
e malvasias. Um pôr-de-sol
anti-paraíso anti-rosto entre-bocas
lentas dispersas solarentas.
Uma ponte feita de pétalas e de navios
as paredes da catedral dos embarcados.
O farol aconchega-se mais ao linho.

Mas que momento a cobiça
qual noite qual sol que azul profundo?

A minha ousadia de inquilino?
Fecho os olhos na emoção
na tempestade de aquêm-mar.
A festa da submissão
foguetes de pedra e de quase nada
no céu aberto do fogo preso.

Pautas e papeis de embrulho
limpa-chaminé no rosto indecifrável.

Abro as mãos de par em par
com as palmas imperfeitas das mãos
a desvanecer a água em repouso.
Recolho as folhas-de-amoreira
do teu rosto. Meu amor?
Sabor a laranja dos teus dedos solares.

Ninguém? Mas tu quem?
Que nome ou álibi que mar fascinante?

NAMORADOS DO SUL

A insatisfação dos teus olhos
de traineira e bailarina
distância e movimento
algas roupa de mariposas.
Os teus olhos fascínio
descem aos meus lábios
de carvão e cortiça
que flutuam insensatos às portas
húmidas e vegetais do abismo doce.
Abismo mel abismo abelha.

É um pedaço sólido de sal?
Um botão de begónia?
Um cavalo veloz marinho
bicho-da-seda da próxima alegria?

A resposta vem mansa
vem estranha vem colada
nas palavras pelas rochas
dos nossos corações de gaivota
afinal bandos de gatos voadores
nos teus olhos quase perfeitos.
Vens em silêncio das terras de xisto
terras de fados e de destinos
com os besouros da luz
com os ventos dos namorados do sul.

DA POESIA E DO AMOR

A esta hora Madly
penso sempre em Brel
quando quero falar da poesia e do amor
escrever dos outros e de mim.

É a hora em que as estrelas
se esquecem do jogo da cabra-cega
da canção sonâmbula do despertar
e de namorar com a magia.
A hora em que as estrelas convidam
e me deslumbram
lançam cordas de luz desfiada
degraus feitos da pele mais fina do musgo.

Não! Só te quero a ti.
Só a ti te aceito te nego o abraço.

Náufrago sei onde estás
que importa pois se já sou homem
se sou apenas remo
caranguejo mau amante.
sei onde estás e vou ao teu encontro.

No fundo luminoso do oceano
candeeiros de areia a meia azeite
mil braços de lume redes artesanais
ao redor da bem amada
do canavial na maresia da vida.

VEM AMOR VEM COMIGO

As águas doces agitam-se
correntes transportam pipas de vinho
vidros madeiras gaiolas e mastros.

Loureiros com ninhos de pintassilgos
folhas e bicos línguas de prata.
Olhos e que olhos! Açúcar em rama
amêndoas descascadas ramos de amendoeira.

Eu demoro em ti resisto em ti
descubro-me sem ti rosa pequena!

Navego por entre as ranhuras
cálidas e herméticas
do teu corpo finalmente iluminado
fantasia do nevoeiro adiado da solidão.

Jacinto um brinco princês
de princesa nativa e adorada
cresce e faz sombra e anoitece
nos lábios ardentes do navio
carpa desejo no segredo do rio.

Vêm amor vêm comigo
minha única e verdadeira flor.
Importa que só saiba palavras vulgares?

MAS É NO CAIS


Pestanas pintadas de azul. Meu abismo!

Pequenos espelhos nos sentidos
do barro vermelho de sal
para retocar o seu rosto de mar.

Beijos de gaivota bocas mornas
na invenção dos caminhos do amor
e na marginal do ventre outrora fecundo.

Naturalmente a doçura do pensamento
quando sonho navegar anónimo
pelos atalhos ocultos dos seus cabelos.

Um travo a canela e grão de café
se os seus lábios fossem meus
nas fontes da povoação vizinha.

Guarda as romãs que ofereci
e os ramos de nespereira que juntei
na festa das mãos nas areias da praia.

Será a pele de erva e arroz doce?
A geografia desconhecida das dunas
que formiga gostaria de subir e descer

Mas é aqui no cais linda Éva
onde a água resoluta se entrega
que tudo começa que tudo acaba!

PESCADORES DE PORTUGAL

A faina continua nas coxas da tempestade
entre longos silêncios e braçadas fortes.
Entre músculos tensos e redes pesadas
cigarros mastigados e vagas imensas.

A espera no colo macio da areia
entre suspiros profundos e pedidos divinos.
Entre mãos cruzadas e olhos húmidos
ânsias e fogueiras de mães de mulheres e irmãs.

ENTRE A PRAIA E O NADA

Sabes é finalmente aqui
entre a praia e o nada
que entrego as armas brancas
e regresso aos meus olhos.

As avenidas despovoadas
casas simples abandonadas
dos que partiram para não mais voltar
promessas tanto amor por realizar.
Conversas na lua conservas e bolos
de coco arcas e mofo algumas tangerinas
pára-ventos e moinhos de crianças.

É aqui que procuro os teus olhos.
Quem? Mas tu quem? Que ilusão?
Ventos do leste que mentira sou eu?

POMAR

O vento no coração da viagem.
As ameixas do pensamento reflectidas
na sombra no gosto das maçãs assadas.
O mar da poesia da Mensagem.

Afasto-me de ti com Pessoa
nas noites de mentiras embriagadas
quando me dás quase tudo na rua
do amor livre e das nuvens claras.

Nuvens e frutos que trazem a ilusão
antiga dos tesouros por encontrar
pelos cais e praias por conquistar
laranjas maduras da insubmissão.

Tudo porque deixo na água as palavras
que escrevi a lápis nos teus lábios
cantadas pela minha orquestra de cigarras
na negação do jogo pelos sentidos.

PEQUENO MAR INTERIOR

Amar o seu corpo
pequeno mar interior e calmo
as esquinas os becos da sua pele.
Nos jardins a lua difusa das safiras
e não proteger ninguém.

Amar o seu corpo
esse potro aparente meigo e feliz
damasco da época que colhem maduro.
Pedaços súbitos de sol e de oceanos
no fundo escuro dos pensamentos.

Amar o seu corpo
imagem molhada dos olhos
ninhos de toutinegra e tentilhão
com as ervas secas e palavras incómodas.
Esse pomar fluvial de frutos proibidos.

AS ROUPAS DA VOZ

Desnudar a tempestade das papoilas
quando o teu corpo de prata
se move entre as barbas da lua cheia.
Desenho a giz no colorido a palavra
do cais na pedra ardósia dos meus dedos
até à foz de um mistério qualquer.

Um cão perdigueiro de água fria
nada caçador astuto aproxima-se veloz
para ser ele a desvendar as lareiras quentes
do prazer as cinzas dos teus segredos
as roupas transparentes da voz.
Pinhas bravas e pinhas mansas a arder.

Eu tenho ousado um ramo luminoso
afastando a areia húmida dos teus seios.
Um remo encantado descendo
as alamedas na tua barriga de avelã
até ao alto mar barcos pequenos em perigo.
Ternuras sem fim na aritmética do pecado.

MĂOS DO RIO

Lentamente as palavras juntam-se.
Alguém atento cola com goma
recolhida no tronco do pessegueiro
junta as sílabas umas às outras.

Alguém voluntariamente
refaz as asas os bicos da gaivota
pedras preciosas à venda
cabelos sedutores e líquidos do mar.

À chegada do navio diz-se
nem todos encontram a luz da noite.
Canastras a canastras de peixe
os linguados grelhados do amor.

Desamor colinas de engano
na calma das searas sitiadas das mãos
das varandas dos olhos na poesia do vinho.
Eu não consigo esquecer
os cachos da uva trincadeira do teu peito.

Vai palavra vai! Meu amor.
Espalha e seduz as metáforas da vida
o pão de milho do paradigma final.
Leva de batel todas as flores
pelo mar de papel até aos sítios da poesia.

ÚLTIMAS ÁGUAS

Budapeste.1981

"Não tenho pai nem mãe
nem deus nem pátria
não tenho berço nem sepulcro
nem beijos ou amantes"

József Attila

"Por qué no me gusta la poesía pura?
Por las mismas razones por los cuales no me gusta
el azúcar „puro”. El azúcar encanta cuando
lo tomamos junto con el café, pero nadie se comería
un plato de azúcar: sería ya demasiado. Es el exceso
lo que causa en la poesía: Exceso de la poesía, exceso
de palabras poéticas, exceso de metáforas, exceso
de nobleza, exceso de depuración y de condensación
que asemejan los versos a un produto químico."

Witold Gombrowicz
(Excerto de um texto inédito publicado na revista
"El Viejo Topo" de Barcelona)

BOLOR DOS BOLOS

Parte-se um barco no silêncio das mãos.
Os dedos finos da alegria já partiram
de nós faz amanhã muito tempo. Nem
fama nem dinheiro fotografias a propósito
uma orquestra sonolenta à despedida.
Em todas as bocas portas fechadas
as ruelas sujas e poluídas do coração.
Dorme-se na estalagem já deserta
com um galo e uma faca no pensamento.

Os melhores desejos a inquietação mais aguda
navegam no interior maduro das ameixas.
Na desilusão mais amarga das chamas do fogo.
Falso o alarme da palha abandonada.
Lá fora vive-se com sabor a poesia a saber a sol
a cheirar a peixe a soalho acabado de encerar.
Pele mal curtida. Temos ainda o mel
de abelha mestra e um fígado de primeira
qualidade. Tabernas apinhadas de gente.

Das cinzas de plástico fala-se da liberdade
como de filmes a metro regressos de viagens
espaciais e ficção africana moderna. As cantigas
famosas e milho na terra por colher.
No triunfo histórico do ténis-de-mesa-mundial
da horta os legumes os alhos e as beterrabas
são o corpo mais caro à insubmissão. Uma onda
maior abraçou o céu e repousou na sede
na solidão jasmim dos olhos verdes da noite

Mas à noite os mochos já não querem insectos
azeite ou tranquilidade. Gatos e lanternas.
Somos tantos à procura da humidade
dos cogumelos nos bosques da imaginação.
Fuma um seio resina liberto de nicotina.
No pomar nasce em ti uma flor. Chega de longe
a mensagem da brisa a estrutura inóspita do vento.
Os caçadores confundiram uma pinha mansa
com um ninho de perdigotos. De salamandras.

Por momentos é outra voz que transparece
na nogueira outra música que nos envolve
sentimento intenso que nos trespassa.
Uma sombra alimenta-se nos seus lábios
sacia-se nos seus pequenos lagos interiores.
Adormecem sobre o braço mais frágil da lua
e as linhas das mãos são águas paradas
luz de popelina transparente a fome aguda
dos diospiros. Águas espessas e lodo.

Nus ensoparam em luz os cabelos da areia.
Voltaram as costas aos alicerces da gratidão
ao bolor dos bolos às metáforas do cinismo
com lágrimas de vidro lágrimas de carvão.
Continuam à espera da puta violenta
da tempestade. A doçura dos corpos.
O marinheiro seduzido pela música da flauta
embriagado na geografia de todos os encantos
aprisionado pelo teu sorriso caiu feliz ao mar.

Inesperado a luz mudou novamente de cor.
O pintarroxo enganou-se na janela acordou-me
manhã bem cedo e quase o apanhei.
O veneno da amante diluiu-se no sangue
da dúvida um seixo o enxofre da vinha
um oceano de lábios de fumo e de poeira.
A última tarde já se engasgou
há quem diga que morreu lilás na garganta
do cão palavra no dicionário da paisagem.

MEIO DIA

Se fosse avenida o teu corpo nem beatas
de cigarro permitiria nem escarros asneiras
os excrementos secos das andorinhas.
A aguardente da Primavera e as pernas perfeitas
de Agnés no céu matinal do erotismo das ideias.
Seria o objecto mais valioso da minha casa
o abrigo mais povoado das aranhas. Se fosse
água o meu coração seria gasolina ou perfume
camisa por passar a ferro. Seria a magia
morena do peito na sombra brava da castanheira.
O adultério do amor a hora certa do jantar
mineiro exemplar no interior da mina.

Escrever o meu coração agora é tão perigoso
como as altas velocidades do motociclismo
o militarismo da impotência mapa-mundi
e o prelúdio multidão dos descontos fim-de-época.
A verdade é que marinheiros somos e no mar
andamos. Tanta sede! Gostamos de cerveja
de tremoços de caracóis e de berbigão
do ciclo molhado piscina sauna bons cus cerveja
de desfrutar o bem social colectivo.
O estrangeiro é em mim sempre mais poeta
mais discreto e audaz. Sinto-me todavia verde
para a felicidade mas se a planície cantar.

Quando escrevo a despedida do meu último
pensamento entro voluntário no ritual festivo
da poesia. São o sonho as teclas dos seus lábios
o piano afinado do seu corpo. A tempestade.
Gosto do reencontro do tempo escasso o trânsito
urbano o voltaremos a amar as deambulações
desperdício os guindastes da renovação civil.
Amigo! Estou a preparar paciente um tapete
do povo para a cidade poeta-amigo!
Com informática mini-computadores
pão com banha e metáforas desconhecidas.
Perdi-me nas vielas infinitas da noite.

Para mim mais importante é a riqueza do cobre
o gás natural as marcas as fotocópias do amor.
O baton vermelho intenso chuva de trovoada
a lã pura da neve das relações económicas
internacionais as teorias jovens do movimento.
O barco liso e belo da pele. Nem um pêlo
nem uma borbulha na descida da língua.
Falei contigo era ponto meio-dia.
Imaginei-te nua quis vestir-te de revolução.


Quando comecei este poema pensei juntar
num só quadro ideias insubmissas e matrizes
simples com salmão fumado e estrelas do mar.
Era tarde de mais para o beijo. Ela não quis
e a noite vizinha e confidente não me ajudou.
Rebusquei na luz reflexo do rio na artéria
tábuas e ponte do meu coração os seus cabelos.
A última carta a filha da terra o aroma da manhã.
A tangerina mais doce da cidade cantou comigo.

FOME AVENTUREIRA

Descemos a noite no compasso do tempo.
Brilhava um sol tão forte tão viril
quando fazíamos do barro lume vivo
e das sombras espadas meigas rosas azuis.
Um sol que dizia bom dia que elevava os olhos
até às proximidades das assimetrias de bronze
nos sentidos sabonetes e jacarés de porcelana.

Do rio as águas eram de uma gratidão emocionante
uma flor sem nome um respirar inquieto
um fósforo de pedra a iluminar o nosso bairro.
A terra preta por incendiar nas searas e no amor
no café amargo do sonho chave sem fechadura.
Os lábios a desfilarem em segredo a desfilarem.
A luz eléctrica ainda escassa do meu interior.

O grito mais aceso do assalto foi a senha sonora
símbolo do momento exacto. O rato saiu de nós
com o queijo da serra a almofada penas de ganso
e o mealheiro da paixão incompleta. Havia
quem se amasse todas as noites meninas de cartão
que dançavam com fantasmas e alfaiates
no licor no cheiro dos dedos na ousadia da voz.

Um sol que escrevia da verdade mais clara
do talento felino da vida das cinzas tão quentes
que a liberdade consome seja quando for.
Ninguém sabe do diamante hindu roubado
à rainha dos grilos em terras de regadios
terras de rosmaninho tanto calor que na tomada
do coração nem os cavalos do vento resistiram.

Esmagámos cabeças de lagartos e de serpentes
e depositámos a fome aventureira nas mãos
borracha da melancolia. Nessa noite
foi muito mais difícil adormecer pois chegavam
pedaços de nylon de linho e de fazenda
da vida abandonada. Cerejas maduras da cerejeira
sagrada do teu corpo. Tanto tanto domingo adiado.

TARDES DE DOMINGO

Descrevo a correr a geometria da água
a palidez da audácia em carvalho envelhecida.
As escadas no comboio urbano o mosquito
monotonia na faculdade aberta da noite.
Sulfamidas da ferida no trevo desenhado pela luz.
Sabíamos que os morangos eram ritual profano
que a seara do centeio era a lei do mais forte
do solstício das mãos pelo granito das pontes.
Tinha guardado no bolso um par de ferros curtos.
Na bolsa das ideologias a falência era colectiva.

Um pastor alemão conduzia um cego.
Com a pressa de um lugar sentado no autocarro
até o cão foi arrastado pela cegueira da manada.
Onde há polícia há caso. Onde há magalas
há putas de certeza como na Praça Rákóczi.
No quarto ao lado Simon & Garfunkel
gemidos de prazer na carne profunda da ilusão.
Sabíamos que a tarde era mortal o canário
uma imitação barata de importação ilegal
que a erva doce era amarga como merda!

Pois é rapaz a bola rola e rebola é redonda
e entra na baliza mas não acerta os problemas
de aritmética! Professor nunca mais o esqueci.
Como guardamos os melhores pensamentos
da prata no relógio do tempo! Canto pois
a ausência quando a presença nem se deseja.
Quero estar só sem a dança na areia dos lábios
frente à longevidade mentira do sonho.
Sabíamos dos estábulos dos cavalos selvagens
potros promissores dos limites da tolerância.

Minhas queridas não se preocupem com o pneu
até nem é de veículo pesado tractor agrícola.
As mamas servem-se em pratos de barro
na pesca a balança marca apenas cinco quilos.
Não se preocupem com o rabinho cutim
ou pano cru. Assim na sombra da cor do cetim
a porca criadeira é um investimento garantido.
Sabíamos que o oxigénio não era de toda a gente
não queríamos ar condicionado motoristas
e guarda-costas. Foguetes e gravatas oficiais.

O meu primo navega no mar da Califórnia
faz pela vida pela família ignora a poesia
e na última carta que me chegou por via aérea
escreveu-me com a caligrafia que na primária
aprendeu e a filosofia que ensinou à vida.
Para que serve a minha liberdade se nem ganho
o suficiente para alimentar os meus filhos?
A tempestade secular do movimento da dialéctica
uma enseada um porto de abrigo quando os poetas
só queriam nas palavras a reinvenção da igualdade.

Outras formas outros conteúdos do amor
as melhores páginas que guardei no coração
para nunca mais te esquecer linda flor.
Canto pois o primeiro olhar na praça da alegria
a comover-me à frente de ninguém
a saber-me observado e ignorado.
Que as minhas musas espreitam divertidas
e riem das gargalhadas até às lágrimas.
Tão belas tão falsas incapazes de me entender
na periferia pós-cosmopolita do desejo.

Cuidadosamente tenta reproduzir
o lago verde da salsa no jardim escondido
da paixão anterior. Um fósforo uma vela capaz
de incendiar uma vez mais o centro da cidade
de tingir de poeira o roseiral da colina
os azulejos do oceano na leitaria da esquina.
Na rua Váci são mais curtas as tardes de domingo
mais fermento mais fruto mais romã
mais mastro mais vela a litania da palavra.
Sabes irmã o dogma constata-se não se contesta!

No podão amolado dos sentidos
e nas melhores uvas das videiras do corpo
o vinho a martelo somos nós próprios
porque estamos despertos atiradores furtivos
com um sono mais leve que um pardal-trigo
ou uma cadela perdigueira recêm-parida.
Patas chocas de um futuro distante.
Nem tudo o que escreve vão entender
melhor só que mal interpretado pior apenas
se comprado por um pratinho de lentilhas.

Os enteados malhados do gato preto da poesia
desenharam a lua em bocas pequenas em textos
longos e silêncios íntimos pontes invisíveis
portos flutuantes em contornos de madressilvas.
Na espera do primeiro café do dia
na paragem do autocarro número sete
uns olhos sempre os olhos sempre os olhos
mais belos que a luz do fogo mais límpidos
que a água pura da fonte gelada.
É então que jovem o meu coração se liberta
e parte no mar azul dos teus olhos!

DOMINGO MĂE

Imaginas que imagino um tordo escondido
um pisco irrequieto aos saltos no mato
uma cabra portuguesa. É tão bom imaginar
quando não há mais nada para fazer.
Sinto essa dor crescer no peito de palha
e a garganta seca os lábios da má sorte.
Acendes acendo um cigarro sophiane na cave
biblioteca da residência uma fresquidão
excessiva um silêncio delicioso. Doloroso.
Percorro minucioso os meus pés chatos.

Neste domingo mãe minha sinto-me sujo
impuro porque não fujo do mau olhado.
Uma necessidade urgente de questionar
que me fales de mim este sentimento opaco
e estranho do eu. Mãe na Irlanda do Norte
a mãe do Bobby Sands resistiu à última agonia
do filho. Foi terrível mãe! Foi uma outra mãe
primeira dama de um baralho muito antigo
que o deixou morrer. Que o mandou matar.
Cinzas sem coração. Da negação do perdão.

Imagino que imaginas aproveitar os restos
as cascas de melão e melancia. As galinhas
pintos coelhos e pombos da Portela das Padeiras.
Os gatos que sempre nos acompanharam.
Neste domingo cinzento sinto-me indefeso
muito dependente da família que está longe
do jantar que não comi bacalhau assado no forno
a meia-tripa do amor que não quis e que desertei.
Hoje prefiro sentir-me criança homem provisório
pensar-me herói contra os cabelos farpados do medo.

Mãe como me desejaram como sentiram
indiscreto gostaria de perguntar se foi um descuido
das noites frias das terras ribatejanas no final
dos anos cinquenta que disse o pai quando soube?
Queria que me contasses dos meus primeiros dias
de como fazias como me vestias como dormia.
Não mãe! Não estou a choramingar estou lúcido
a viajar em mim a ocupar o tempo divertir-me
a lembrar-me das hortenses que tu plantaste
as últimas águas que hoje regam a minha inspiração.

Toda a vida vai ser a viajar despedir-me
afastar-me calcorrer as minhas mãos o ventre
todo do universo. Assaltar os castelos da ausência
como quem bate com pedras nos dedos da emoção.
Subir a pulso os caminhos do inferno as baías
mais fascinantes do corpo as baratas da ternura
que é tão fina tão longa tão resistente
e que resiste agora que os infieis somos nós.
Mãe deste à vida um poeta. Um dia talvez
a minha oferta seja um neto um rapaz mais ousado.

Estou a pensar se me visses com mais um cigarro.
Não queiras fumar filho o tabaco só faz mal.
Mãe há que fumar há que beber há que pensar
como transformar o mundo para o melhorar.
Tu dirias que houve sempre pobres e ricos
que para os humildes chega bem a vida eterna
lá no reino dos céus. Mas será que já não há ceifa
nos campos de Portugal? Trolhas à jorna
os amolas tesouras as barbearias da oposição
ou o fio-de-prumo do pedreiro de Vinícius?

Hoje sentes que me sinto mais poeta que nunca
mais em perigo mais indefeso e vulnerável.
Sinto que sentes que estou aos poucos a perder-me
mais perto da água mais desenhado na terra
mais longe da liberdade que tanto sonhei.
Fica esperança de um dia alguém se lembrar
de dizer - estas são as palavras que ficaram
afinal a poesia do poeta pedro assis coimbra.
Sinto-me que só assim mesmo distante sou eu
mas que apenas poeta é muito pouco é quase nada.

ECONOMIA POLÍTICA

Por vezes passo infinitos a olhar o silencio.
Infinitos a pensar a diluir-me com os sonhos
e deles fugir nem eu sei quando nem para onde
para criar e assumir a escrita a minha ferramenta.
A desejar o confronto directo com a folha de papel
que atenta à minha frente me observa e se insinua.
A arder continua a minha consciência guerreira
de me saber tão só por rejeitar a vaca leiteira
por não suportar a manada. De me sentir
sábado e domingo dia de semana ave nocturna
de envelhecer a tarde refazer a madrugada.

Houvesse o que houvesse hoje não sabia morrer
iludir incendiar o estrume as palavras do povo.
Saberia apenas olhar ouvir e não dizer nada.
Sim! Olhar-te os cabelos e o pescoço
os ombros e os seios firmes a semente
na planície do ventre. No sexo divagar em nós.
Da cozinha pública bafo de óleo esturrado
resíduos e fumos da química pesada.
A coragem de me sentir acompanhado
no caminho da destruição. Não tenho falta
de outro poema tenho necessidade de ti.

Comprei dois quilos de cerejas para mais tarde
as comer sózinho. Uns gémeos encantadores
e uma mãe linda de viver! Sinais luminosos
eléctricos modernos e plátanos resistentes
onde as raposas espreitam os frutos sem soutiens
e os sapatos da montra que calçam a poesia.
Necessidade de muito amor concreto
da materialidade natural do sorriso a pureza
nas mãos do primeiro beijo a falta de amor jovem
de amor que ainda não conhece as surpresas
a fúria do filtro secreto a sonolência das cinzas.

Mesmo que quisesse hoje não sabia morrer
sem imortalizar o circo imortalizar-me a mim.
Não tenho a certeza se tive papeira e sarampo.
Aos sete anos saímos da aldeia definitivamente
porque o meu pai não quis que a filha fosse costureira
ou operária numa das fábricas de telha e tijolo da terra
e até o liceu frequentámos em vez da escola
comercial e industrial. O resto fica para depois.
No meu rosto carvão de aproximar a distância
amor é sobretudo a baunilha do chocolate
os ventos azedos na desigualdade das ideias.

E eu a pensar em ti imagina a pensar em ti
não porque não goste mas porque é estranho.
Não sabia morrer sem primeiro te encontrar
tu que desde Dezembro me queres conhecer.
Uma voz doce pelo telefone a manter um coração
suspenso. De par em par as portas do meu coração.
Sem falar do exame final da economia política
da mais-valia relativa e dos custos de produção.
Não sabia morrer sem primeiro te encontrar.
Talvez o segredo se esconda nas marés da tua boca
se de madrugada entrar no cais do teu corpo.

MORTE CORAÇĂO

Pouco a pouco trespassamos os sintomas
do vidro os sedimentos inferiores da água.
A boca intacta. A boca prefácio da saliva
a península oculta na parábola do dia plural.
Nutrimos o passado de pequenos espelhos
com chá camomila de alfarrabista
sistemas nervosos de encomenda por catálogo
e a laranjeira aromática do renascimento.
Tão pouco amor por tanto dinheiro!
Há um frio material que me percorre inútil.

Na ficção palavra de seleccionar imagens
e acertar as horas na espera à porta do cinema.
Na procura imediata da fuga alvará da paixão
gostaria de a encontrar para assim me esconder.
Depois o passageiro triste vem muito só
para sermos nós. Roseira cadela em flor.
Na viagem aos teus olhos somos nós
vestidos pela vastidão na baba do gafanhoto
que nos anulamos que destruímos a meiguice
do fogo o apara-lápis do desejo.

Na difusão do fumo no contra violino da luz
é a morte coração do meu sangue
que se apaga o corpo do coração que se fecha.
A morte bate sempre ritmada às sete da tarde
nas forças extenuadas da palavra urbana
no autocarro réptil da saudade. Os braços
ferrugem dos segmentos de ferro desaguam
em nós e na longevidade dos sentidos.
Estarei sempre sempre do lado dos caídos.

A passo pisamos os dedos inéditos do cativeiro.
Um fracasso completo a excursão ao futuro.
Naturalmente não acreditava no que dizias
era uma inovação de categoria duvidosa
como o cowboy recentemente eleito.
Naturalmente acredito na água na luz
no nascer puro e insubmisso da poesia
na doçura e na amargura do azul dos olhos
mas definitivamente não acreditava em ti.
Nem no disfarce rapariguinha da diversidade.

Não escrevo do amor da intuição nocturna
ou da metáfora da neve. Escrevo de esmolas
de dádivas e de dúvidas de hipotecar a liberdade
na indiferença das mãos enlameadas do passado.
Descemos a persiana dos lábios fascinados
pelo gozo do ouro pelo navio do lume
com sabor a batata-doce que aos domingos comia.
Só a morte nos separa dizíamos ainda há pouco.
A mentira é o cipreste mais ambicioso da vida
e da morte tenho fundadas suspeitas.

A nossa voz ouvia-se sem mágoas
nas sombras as mais distantes do silencio.
Meu amor que sejas como as cerejas
milagre cheia de vida por debaixo da pele!
Meu amor de papel toca-me de novo
toca a nossa canção uma última vez!
Depois a vida é esta vespa sem ferrão
gato por lebre. Frequentamos bares marginais
bem bebidos e refrescamos as bocas
entre aguardentes lírios de plástico e moscas.

Partir é urgente. Partir é dar o beijo
mais impreciso e impessoal da sílaba
por lapso invocar a terra que nos espera. Profunda.
Partir com todas as palavras das últimas águas
é diluir a cor oculta nas páginas do fogo.
Partir meu amor partir é prolongar o coração!

CORPO COMUM

Budapeste. Setembro e Outubro.1981

"Era tu nombre desnudo
el mar abierto sobre la boca"

D. Ávila

"O portes de tons corps
elles sont neuf et je les ai toutes ouvertes"

Guillaume Apollinaire

"Estou tão perto de ti que o poema principia
toco as sílabas da pedra as sílabas do corpo"

António Ramos Rosa

JÁ A FESTA SE ANUNCIA

Já a festa se anuncia
empunhada no sorriso
no oceano perdido
nas mãos presas dos mastros
nas amarras do vento
no espelho molhado das guelras.
Por toda a extensão dos corpos
já a festa se anuncia.

Já as bocas se aconchegam
ao castanho forte da terra
à erosão húmida do tempo
ao silêncio inadiável
à dália mais frágil do monte
à alegria temporária do musgo.
Por toda a extensão dos corpos
já a festa se anuncia.

Já o pão repartimos
e o vinho não saudámos.
Já a cidade despedimos
e a saudade ignorámos.
Já a festa se anuncia
por toda a extensão dos corpos.
Já as bocas se aconchegam
à tarde da maçã à manhã de Setembro.

SUBIMOS PELOS DESEJOS ÍNGREMES

Subimos pelos desejos íngremes
estranhos um pelo outro
quase como quem percorre
avenidas de uma nova cidade
de mapa na mão de rouxinol
nas gargantas palácios submersos
das noites de todas as carícias.

Carícias na combustão lenta
da viagem do teu sol sobre o meu sol
a penetrar-se da tua lua cotovia
no amanhecer por fim verde
da planície. Por fim cinza ou subsolo.

SE EU ADIVINHASSE QUE SEM TI

Se eu adivinhasse que sem ti
faria a tarde de palha arder
secar o maior rio da vila
e do gato preto do desejo fugir.

Se eu adivinhasse que sem ti
faria prolongar a tua sombra
o meu silêncio breve da noite
e crescer papoilas na tua boca.

Afundava todos os barcos e navios
todas as estrelas todos os portos
todas as serpentes todos os frutos
todas as ninfas todos os enganos.

Os teus cigarros as minhas palavras.
Ancorava no teu corpo de perdiz
se eu adivinhasse que sem ti
um dia seria possível ter este país.

TENS UMA ROSA NO PEITO

Tens uma rosa no peito
vestígios sementes de fruta
sombras da dança solar
música de concertina
na geometria dos sentidos
na dimensão promessa do olhar.

Pela liberdade se necessário
dos outros desfaz o teu peito
perfaz as cidades proibidas
e o véu terra do mistério
mas não abras os olhos
sem antes consumires o sonho.
Tens um doce quase amargo
a crescer-te nas mãos.

DE SÚBITO O VELEIRO

De súbito o veleiro
não descansou os ombros
nem desertou a foz.
Baixou os mastros
e aconchegou-se perene à fome.

O bar da praia estava repleto
de olhos braços e bocas ávidas.
E os seus lábios? Perderam-se no fumo?
O veleiro esse saiu do porto
sem ventos fortes nem rumo.

AS MăOS SOBREPOSTAS VOADORAS

As mãos sobrepostas voadoras
sobre a pele de azulejo
na consagração do templo
a serpente da seara do trigo
ceifeiras na imagem da festa sazonal.

As mãos antigas contraídas
na água provisória do arrozal
vozes cavaquinhos das colheitas
das encostas soalheiras
nas ruas de tanta parede pouca a cal.

As mãos errantes dos lábios
cansadas de tanto colher de tanto caiar
sente-se o calor intenso na pedra
na descasca do arroz no celeiro
eira morena do seu corpo irreal.

ARDENTE MINHA AMIGA

Ardente minha amiga
o teu corpo d’água-
ardente de orquestra macia
de aranhas de cereja de insectos
de som piano impuro
malfeitor contrabando muito amor.
O meu gosto a aguardente.

Ardente minha amiga
o teu corpo d’água-
ardente égua à desfilada
de flauta insubmissa e sensual
de folhas e pautas de aventuras
seduzindo adulta o violino.
O meu gosto a aguardente.

O teu corpo de água
da próxima tempestade
O teu corpo de água
de mulher rio da cidade.

SÓ QUANDO COLHEMOS AS AMORAS

Só quando colhemos as amoras
e um pedaço da pele das tuas rendas
se prendeu ao coração das minhas silvas.

Só quando reproduzimos a paisagem
e finos os meus dedos de barro
com fundas dedadas te coloriram de rosas.

Só quando aceitámos as espadas
e fria a brisa nos protegeu com o seu véu
porque tecíamos a sede com o coaxar das rãs.

Só quando juntámos as sílabas
e sombras aves famintas de sobras
incendiámos os pulsos o mistério do vidro.

Porque pedaços da pele das tuas rendas
se prenderam ao coração das minhas silvas
avivámos o mosto do corpo o lagar do amor.

AO MOMENTO NOVE DESTA NOVA EUFORIA

Ao momento nove desta nova euforia
a festa raposa continua no seu corpo.
Corpo: tão único e tão comum aos corpos
que inventei ou inventaram melhor.

A festa continua oculta no seu corpo
na liberdade consentida das tangeras
nesse silêncio fluído e travesso da boca.
Boca: espaço desfiado da conquista maior.

Como a transparência bordada das acácias
o pó dos caminhos dos atalhos da palavra.
Palavra: chama nos olhos da fome da ousadia.

Da nascente do amor de ir ao mar e partir
com os lábios húmidos e salinos do seu corpo.
Mar: ao momento nove desta nova euforia.

MEMÓRIA DO FOGO

1981 – 1983

a Ruy Belo
a José Gomes Ferreira

"J’ecris pour me parcourir. Peindre, composer, ecrire:
me parcourir. Lá est l’aventure d’étre en vie."
Henri Michaux
"La vie fait texte á partir de mon corps. Je suis dejá
du texte. L’histoire, l’amour, la violence, le temps,
le travail, le désir l’inscrevent dans mon corps."
Héléne Cixous

ANOITECE

Anoitece
– a noite desce
sobre a mesa de quartzo
percurso da terra pelo cavalo do corpo
do cavalo pelo corpo da terra.

Pintam
– letras da vida taças de vidro
das nascentes telhas matéria solar
espírito solar da matéria
com o coração do olhar na talha das azeitonas.

BAILE

Percorrem as colinas grandes e verdes
com odor a fruta madura
vértice de sementes
caroço.

Percorrem os ramos os troncos teimosamente
a floresta arde em alvoroço
é a festa do fogo
o baile.

ESPERA

Espera
pernas levemente flectidas
– a saia não tapa os joelhos
tece o musgo malha com as unhas do coração
aveluda os olhos no espelho de rabo.

Espera
sentada a língua abandona-se
ao hálito da boca ao calcário dos dentes
num banquinho de pau – a pedra está tão fria
com as costas apoiadas na arca das mercearias.

Da cidade
ele há-de vir mais jovem
mais resistente e irresistível
– com o saco das ilusões às costas
carregado de sedução e tentações
e vestidos perfumes pancadas.

VAI Á FONTE

Leva a infusa ao quadril
porque não sabe da rodilha
e o filho à ilharga
que está fresco no andar.

Traz um sorriso matreiro
entre os beiços e o buço
que se corta nasce o dobro.

– Só eu sei só eu sei pensa ela.
Vai pôr de propósito sal a mais
no jantar do seu homem.

Para que repita o vinho
e prolongue os calores da noite.
– Parece mentira como o calor se escapa
e o frio entra pelas ranhuras do corpo
pelas frestas das janelas e do telhado.

ESPELHOS DA ÁGUA

Na passagem quase secreta da gruta
na intimidade suspeita do mar
e das mãos finas da guitarra
a luz natural fragmenta-se
pelo corpo nos espelhos da água.

Se o amor dos amantes de pinho
preso nas redes clandestinas
no vinho tinto se fortifica
é porque os olhos se diluem
no pó pelo caminho das flores.

Partiram antes do anoitecer
insinuando novas palavras
do bairro escuro da cidade portuária
com o sol de papel pintado à mão
para assim afastarem do frio o coração.

CORPO VEGETAL

Lanças parece-me um avião
pura engenharia de ponta
muito pequeno do céu muito azul
e eu rosmaninho a secar
na aldeia mais distante da capital.

Perco-me sem ti aguaceiro matinal
nascente pastora de todos os desejos
de prados repletos de sinónimos
estranhos acesos pela paixão consentida
nas avenidas da marginal.

Deixas-me inseguro na dúvida
do sorriso na areia da planície
dos gansos das galinhas e patos
na espera do teu aeroporto de vidro
procura cão do rebanho corpo vegetal.

COLHEITA

Fecunda o tempo
a tempo inteiro
enlaçados pelos dedos
pelas guias das heras
na ramagem do feijão.

Abre todas as portas
húmidas do sortilégio
à roupa lavada
cuidados caseiros
a cama já composta
e a cozinha desfeita
na boca quase incerta.

Solta os cabelos
no rasto do caracol
no rabo de cavalo
pés nus do tempo descalço
tempo solúvel
bandos manadas cardumes.

Refaz o tempo das gentes
da história pão por amassar
dos cedros e oliveiras
domingo de ramos profundo
nos campos agrícolas a sul
cultiva o tempo fecundo

METÁFORAS

Das pétalas frescas do seu olhar
ao abismo dos lírios dançam arenosas
as mãos e os dedos da pedra
as asas do prazer ternura quase final.

No abraço diluído à liberdade
nuvens de lábios e taças frescas de mosto
o fogo desertou o pseudónimo do amor.
A raposa fugiu com a amante da águia real


Memória (1980) revisitada (1982)

PALAVRA MAGIA

De um escultor de papel

Longo o murmúrio da planície
terno acolhimento da floresta.

Na visão rente á terra
duas colinas se elevam
azuis e leves – erectas e frescas
– húmidas redondas e escassas.

Dois beijos em cada pico.


Memória (1979) revisitada (1982)

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

MORTE DE UM IRMĂO

A Eduardo Rosário Dias
Capitão de Abril, Meu Irmão


Não são propriamente as flores
que voam pelo álbum restrito da cidade
ou as noites das festas comuns
que despertam no mundo da aparência
e se aconchegam fraternas no meu peito.

São os pássaros que se iludem
com a ilha ilegível da utopia
com o inacessível trigo do engano
e a saudade fotográfica da família.

Formigas que caminham na sombra
por toda a extensão da ausência
pela viagem finita do último reencontro.

Quando morre um amigo querido
na morte de um verdadeiro irmão
é a música já liberta das palavras
das ideias de sal com pimenta assumidas.

É a música que arrefece o corpo
agora frágil quase seco quase órfão
dos ensinamentos do mar
e da marinha de guerra de tirar um azimute.
É boa de longe mas longe de boa!

Quando morre um amigo querido
são todas as flores formigas e pássaros
a música de chuva feminina e de neves brancas
que vêem morrer com a colheita do anoitecer
à beira do rio com a sede por saciar.


Memória (1981) revisitada (1982)

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

ESCRITA 1.

A Carlos Sanchez
Aos amigos do Taller Literário Kö-Kur
á


Peregrinos nos afluentes concisos do tempo
no caudal de plástico descartável
da noite anterior fantasiam as ideias
das cigarras as imagens do formigão
na peregrinação feitiço à terra.
Não sonham as páginas gastas dos dedos
nas costas arenosas do fumo
islas negras de cavalos selvagens
defendendo as conquistas do povo.

Permaneço por isso distante
longe de mim longe dos meus
próximo de toda a correria do pão
abordar a praça e os viajantes
no cais do corpo do alento
no interior inseguro do tempo.

ESCRITA 2.

A Diego (aliás Ricardo Farrú)

Poesia pedra extraída da minha liberdade
consentida mosca preta pedra parcial do fogo
grandeza acessível às arestas da tua voz
colmeia incerta do formigueiro e do encanto.

Poesia pedra extraída à intensidade do fogo
desejada como ovo estrelado da fome
sinfonia estranha canivete afiado do toucinho
mãos infantis da inocência perdida.

Poesia pedra extraída ao esquecimento
biblioteca da viagem leoa amansada no circo
passageira triste da insurreição do fado.

Descoberta das cinzas quentes do sonho
marítima junto ao olhar à grandeza da morte
livro capitel pedra amante antiga da poesia.

LUZES E LOBAS

Quando as luzes se apagaram
puseram os faróis nos mínimos
correram loucos correram
sem roupas e sem coleiras.
Desarmados correram e caíram
pelos baldios – a preferida dos ratos
da maior lixeira da cidade.
Lavaram-se no lixo residual
com o sabor doloroso de terra.

Os cães esses brigavam orelhas
e pêlo caído carraças partilhadas.
Mordiam-se disputavam a vez.
O pirilampo da cadela colectiva
cada dia cada noite mais municipal
mais louca mais panela de sopa.
Aguda a cada instante renascia
das cinzas nos olhos brilhantes
de gata escalada para serviço nocturno.

LOBOS E LUZES

Quando as luzes se apagaram
quiseram o prazer como medronhos maduros
do algarve e pêra rocha do oeste
metáforas regionais ao serviço da poesia
para disfarce na noite da moral pública.

Quando as luzes se apagaram
racionamento central de energia
usaram as pilhas de bolso
para não se enganarem na estrada
em mau estado que conduz à foz.

Puderam assim livres servir-se
dos acessos desvios e atalhos
da superfície lisa da água
com ajuda dos tambores do Congo
enguias cativas de cegonhas ditas ibéricas.

Quando as luzes se apagaram
prolongaram o festim dos homens
com o agnosticismo feminino da filosofia.
Cadela animal doméstico e fabril exposta
ao prazer operário na transpiração da lua.

PARÁGRAFOS DO CORPO

É para ti Gabi

A língua lentamente
afasta os dentes descarta a ajuda
misteriosa e voluntária
quer ser única
sem música sem silêncio
sem testemunhas oculares.
A língua alonga-se enrosca-se
e alonga-se outra vez
desliza e rasteja avança
dividida como uma serpente
lentamente lentamente.

Contorna uma a uma as letras
solta as linhas as raízes
os parágrafos do corpo.
Penteia e despenteia
os conteúdos do vinho
as formas do corpo
a substância mineral saborosa
e sedativa do fundo do mar
a substância artesanal do enjoo
da volúpia da vertigem
quer ele dizer: dos corpos.

Nua e exposta no largo
no terreiro da aldeia
nua e soalheira
no pasto das ovelhas.
O comichão os arrepios
das pernas picadas
as formigas do prazer.
Nua e indefesa no alpendre
no terraço da casa do seu corpo
ao cair da noite – lentamente
lentamente
lentamente.

OS PARADOXOS DA ÁGUA

Agosto e Setembro, 1982
"Mi gozo viene de lo inédito de mi emoción. Mi
exultación viene de que antes no senti la presencia
de la vida. No la he sentido nunca."

 Cesar Vallejo

SÍLABAS DO PRAZER

Percorro uma a uma
as palavras do poema
que os teus olhos anunciam
e eu nunca escrevi.

Afável vinhas do pó enfeitada
com um misto de azinheira
e arbusto nos cabelos
presos a um pedaço de tecido
transparente raro e sedoso.

Trazias na boca
A rosa mais frágil do Japão
os sintomas vegetais
das amoras marítimas
um sabor forte e seco
de búzio em repouso.

Uma a uma percorres
as sílabas do prazer
todas as naus clandestinas
escondidas nas sombras
no convés passageiro pirata
do azul estival do corpo.

Na assimetria do silêncio
da aguarela da luz matinal
ardia o fósforo da emoção.
Partias para a casa incerta
para o parapeito do amor
com os braços longos do mar
viajante de Cristo a emigrar.

RELÓGIO DA TORRE

Começa no gosto luar marisco
do cigarro entre rosários de cardos
palavras e boa vida que imaginei sem ti.
Todas as armas necessárias do crime
as cores profusas do amor
e a tempestade adequada à mentira
corrimão carcomido dos pés.

Eleva-se com as bruxas de Bruxelas
melgas e vassouras a diesel
patos gansos o canto das cegonhas.
no preâmbulo do tricot da pele
o toucinho escondido da fome fraterna
facas de mato e muito medo dissimulado.

A minha barba mal semeada
e os teus frutos de sabor a sabão.
Começa nesta beata resina
no relógio atrasado da torre
no jantar tardio e sacos de carvão
as baratas e os gafanhotos divinos
das nossas lesmas de feitíço e salpicão.

RIO COURA

Amante do sol e das pedras

Ao sol mole que nem uma cobra
dissimulada por entre as pedras
eternas dos triângulos do sonho.
De silvas povoarei de arados
ceifeiras e sementeiras
com ervas daninhas
o seu ventre de safios
com o sangue bíblia dos cabritos
as heras e os paradoxos
bichos perfeitos da água.

De joelhos dobrados subserviente
saias levantadas presas
às mãos unhas de terra negra
o seu macho a alombar pela fazenda
a pastar pelas tabernas da vila.

A pela branca festa da capoeira
sem as rodas finitas da mó do tempo
e as redes de arame do sol.
Regador regarei para que cresça
o pasto que esconde os ovos pequenos
das rolas e algumas codornizes.

Feia e cansada na noite de alhos
com o seu homem se transforma
com cabelos trazidos da cabra da serra
que mastiga bugalhos secos e cogumelos
importados da Galiza pelo vento.

Disfarça as peles e carnes a mais
poço fundo produto não pasteurizado
sem a defesa fingida do prazer
da pele tensa de mamilos acrescidos
e roxos na ponta dos dedos
nas águas de metal do corpo
e por fim esquecer a língua do vinho
o suor sexuado da preguiça.

RÉPTEIS

Nagy Imre, Hungria, 1956.
Salvador Allende, Chile, 1973
.

O réptil silvava todos os dias à mesma hora
acompanhado pelo protesto dos outros mamíferos
que aquela hora da tarde ainda dormiam
submersos na água lenta e quase choca
que invadia as hortas e os tomatais
as cercas vigiadas dos puros sangue
os viveiros de ostras e corais do capital estrangeiro.

Aqui e ali vozes descrentes pássaros perdidos
portas fechadas de festas de guerras adiadas
o fogo das palavras e os cavalos de corrida.
No último dia da luz segundo a religião
professada pelo grande manitú da cidade
a planície e as minas afundaram-se dois metros
e o réptil não mudou de pele nem nunca mais silvou.

Partes do seu corpo apareceram espalhados
pelas bermas dos caminhos em locais ermos
com vestígios recentes de terem sido alimento
e estrume dos outros répteis ou mamíferos
de quem tinha sido professor único mestre
e de muitos verdadeiro pai. Implacável inimigo.

LEITE EM PÓ

Respira saúde por baixo daquelas saias largas
aromas tropicais ventos fortes e marés vivas
iniciação sádica ou virgens do oriente. Serve
à mesa e ao balcão na cozinha e na esplanada.

Serve uvas frescas batidos e sumos gelados
em restos de cálices impuros e copos de plástico.
Dá cabelo aos carecas e fome a quem já a tem.
Indica a todos o inferno via sol da salvação.

Respira saúde por baixo daquelas saias largas
a grande vaca de leite em pó a morrer seca
de sede lenta com os passarinhos todos mortos
gaiolas despovoadas um só bichinho carpinteiro

Vassoura enorme mesas limpas na hora de fechar
e o coração avulso ao longo de todo o corpo
de cidade interior amargo da máquina de café.
Respira saúde por baixo daquelas saias curtas.

RESERVA NATURAL

Na azenha de Vilar de Mouros

Pele vermelha bem escura
com a blusa atada pelas mãos
do verão alguns botões em falta
das casas ocupadas pelos caracóis
na manhã tardia solstício do povo
da amante desprotegida do fogo.
Meu nevoeiro marxista de pedra
nossa a ilusão citadina da poesia.

Na produção artesanal à manivela
da máquina manual de transformar
mentiras e meias verdades em lábios
de francesinha no prato e eucaliptos
em fornos a lenha e muito pão doce.
A erva e a terra da reserva natural
onde caçar era ainda permitido.

Feiticeira de papel nas setas de luz
dos malfeitores e contrabandistas
nas dança das chuvas de águas termais
passos mal ensaiados de galo.
Música rara e bela de arte antiga
cortina corrida mui sensual
no optimismo nos dogmas do seu olhar
de boi de borrego ou formigão.

BIENAL

Lady do Café Come Late.
V. Nova de Cerveira
.


Eu senhora irlandesa(?) não sou ninguém.
Nunca o fui e penso que nunca o serei.
Na roupa de ninguém sinto-me mais cómodo.
Aqui estou atento a beber nos meus sonhos
prolongados e atentos e nada mais
a querer-me um pouco mais que ninguém
mosca asseada abelha ou vespa inofensiva
para pousar no seu regaço sem me sentir
para aí me deleitar afogar os meus desejos
comuns de sapo insensato sapo republicano.

Centenas de poemas e plágios
a serem escritos na sua pele bronzeada
pelo pseudónimo das minhas palavras
na sua lua pelos desejos da minha língua
de vinho verde tinto e água das pedras
nas suas mãos esguias de malagueta
lindas e magras por toda a solidariedade
pela solidão imensa das minhas ideias
na travessia lenta dolorosa do deserto
até à manhã onde um dia irão desembarcar.

Eu senhora irlandesa(?) não sou ninguém.
Ao encontrá-la e vê-la partir feliz
com outro com a noite pelo braço
sei que estou mais longe de fugir daqui
de mim de ser ontem e amanhã de ser alguém.
Porque me olhou tão insistentemente
me desinquietou me enlaçou e me abraçou
tantas vezes e me seduziu com o mar calmo
dos seus olhos? Ou foi da noite e da minha miopia?

MãOS DE AREIA

1983
"Vous étes un beau ciel d’automne, claire et rose!
Mais la tristesse en moi monte comme la mer"

 Charles Baudelaire

SINAIS DE FUMO

Repouso por momentos
o coração no azulejo mouro
dos teus lábios. Será possível?

E caminhas pressinto!
Uma cotovia sedosa anuncia
entre dois sinais de fumo e fogo
o dia do nosso reencontro.
Será verdade?

Podes continuar
a olhar o sol poente
e a descer ao mais fundo
dos meus sonhos ateus como os teus.
O que mais quero
é partilhar contigo o meu silêncio!

Repouso por momentos o coração
os olhos o pensamento na pedra
na laje fria da igreja.

E depois pedindo escrever: Vêm!
Virás? Peço-te um só beijo
breve singular e leve.
A mão sediciosa nos cabelos
e um sorriso de vento
cristalino um sorriso passageiro.


Budapeste, 13.03.1983.

PRIMEIRA DESPEDIDA

Quando tocam os sinos
é para juntar o povo despedir gente próxima
anunciar as horas ou a palavra
de deus na terra. Tu sabias meu amor?

Das tocas escondidas das lebres
da cigarra perdida na cidade
do andaime que da chuva nos protegeu
do arbusto que nos salvou da vergonha
e a mulher do talho que nos atendeu?

Mesmo sem a frescura de ontem
as verdades vindas do estômago e as marcas
lindas que religiosamente guardámos
as palavras ainda são possíveis.
E agora? Já sonhámos tudo?

Lembras-te das formigas voadoras
dos músicos ciganos de chumbo
do fósforo com que queimei sem querer
a tua mão esguia? A cerveja
que entornei à entrada da tua saia-casaco?

Na propagação comum da imagem
nas vítimas do fogo do clero recusado
recordo a primeira noite de conjura
vassalagem atrevimento. Inimaginável plágio!
Tu sabes o preço em divisas da despedida?

VARANDAS DE ÁGUAS

Varandas de águas claras e finitas
e roupa estendida flor de laranjeira.

Transforma um livro de poemas inúteis
em guitarras de seda gengivas de nuvens.

Uns carris de carvão castanho da ferrugem
e a magia magyar mãos de prata na areia.

Para ti manhã um só minuto a vida toda
o primeiro sonho vivido longe da aldeia.

DE MIL ROSAS UMA SÓ

Porque és a constelação
do inesperado de dias
noites e luzes
vogais e alegrias
de estrelas azuis.

Permite-me
Ó caminho esvaído
Ó sono inquieto
Ó roseiral intenso!

Que tire as meias
dos teus pés pequenos
e um pedacinho de pele
para tesouro.

Que descubra os segredos
do fecho da tua saia
silêncio muito tímido
muito diálogo mudo.

Que massage
o vinco da blusa
em círculos pequenos
com os dedos da saliva
e os rios do pensamento.

Que penteie os caracóis
te lave a cara do sol
te limpe os olhos e os lábios
para retocar de rouge e de baton
de rimel e modernismo.

Permite-me Ó única estrela!
Constelação de mil rosas.

Budapeste, 20.04.1983.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

RUA DA SAUDADE

Disse-te
não há casas nocturnas
as três fadas da princesa
virgínia na rua da saudade
do fado plebeu dos outros
e os canários belos dos seios
na areia amarela dos dedos.

Disseste-me
não me deixes perder
na propriedade privada
dos olhos de verde intenso
sobre o peito de agosto
a arder na palha
na combustão do feno.

Multiplica-te disse
mas não os prives do mar
do teu biquini azul
que na cor nem condiz
e desses bichinhos tão queridos.
Não há luz disponível
que lhes ilumine a noite
que espera por nós.
Deixa lá! Escreve!
Escreve! Meu amor!

Nazaré, Agosto, 1983.

PRAIEIRA

Deixa pequena a manhã
correr física pelo corpo
e as orelhas burros de cartão
da escola portuguesa de outrora
descerem até à praia.

Deixa a marginal dos tristes
junto à Senhora da Vila
e os pensamentos perfeitos
agora mais que perfeitos ainda
nos altares profanos dos desejos.

Deixa o texto dito intelectual
e escuta a mensagem cifrada do mar.
Pega-me na corda da traineira
agarra-me ao peixe com as mãos
pega no remo do teu homem praieira.

TRAINEIRA

Comecei a interpretar o mar
longe dessa Europa distante
as petingas lúcidas do pensamento
filhas precoces das marés.
Mas tu não acreditavas
que as ondas deste meu litoral
traziam seixos e trazem conchas
para eu enfeitar os teus lábios.

Comecei a escrever o mar
as redes áridas do ciúme
enquanto o pseudónimo da emoção
juntava as línguas à luz dos corpos
implosão sonâmbula das águas
nas sandálias indefesas do peixe-aranha.

Chegvam traineiras carregadas de sardinha
de gaivotas e um punhado de homens.
Não sei de ti não sei de nós
nem do farol profundo na noite.
Comecei - que sentido a poesia sem ti? -
a secar o mar para encurtar a distância.


Nazaré, Agosto, 1983.

RAPARIGA DO CARAPAU

No porto de abrigo da pesca
o salva-vidas esperava a chamada
nos segredos da fé e do povo
da procissão das sete saias
e da retórica muito mais moderna
à das raparigas do carapau.
Carapau fresquinho ó freguesa!

Traziam as mãos de pimenta à cintura
moedas e trocos nos bolsos do avental
canastras de peixe sem sal
presas à cabeça no equilíbrio
do óleo condimentado da trança
dessa Pederneira solene e sagrada.

O Menino Jesus feito homem na cruz
no vale apertado dos dois montinhos
quem sabe se tão brancos – ó criatura! –
como usava ainda apenas ontem
– no ano anterior? – a Maria primeira de Gdinia
na minha história inventada de amor.

Com a baixa-mar fica o silêncio
dos lábios já secos na praia suspensa
pelos dedos ausentes da tarde
pelas festas que o sonho me oferece.

BIBLIOTECA

Repartida e justaposta entre as flores
da sala o fogo do aquecimento central
e a gravata que frequentemente usa.
Nunca vi na vida uma gravata tão feminina!

Entre catálogos e dicionários
sofás e almofadas de pousar ideias feitas
parecia porcelana mais selectiva
mais bibliográfica final feliz de livro.

Clássica parecia mais culta
mais frágil junto ao precipício da paixão
de rios internacionais feitos de cortiça
e montanhas de papel pardo e papelão.

Olhares de todos as metáforas trocadas
por uma única tentação surpresa
a ser sua caneta usada todos os dias
na página riscada das mensagens.

Envolver fria a tarde em mistério
a argumentação em muita sedução racional
com o meu país de lobos e lobas a monte
pelo teu país de fronteiras por iludir.

ARBORETUM

Éva F. – último poema na despedida
de um amor verdadeiro.


Depois de lavar sem pressas um a um
os pés refeitos de mais um dia
com um pouco de água erótica
calço-te as meias de vidro que te trouxe
até ao início guloso das coxas.

Recomeço meu destino de escrever
ofício esta profissão sem futuro
beijo a beijo até não mais sentir
os nossos lábios a tua língua de serpente
húmida redentora como o pecado original.

Um faisão quase perdiz sem coutada
imagina-se caçador de alegria fugaz
da beleza na erva quase impressionista.
Queria assustar-nos assustar-te mas acabou
por adormecer feliz a sonhar com o nosso prazer

Szarvas, 21.09.1983.

RIO DESVIADO

O vocábulo foi-se estendendo suavemente
pelas terras da quinta dos aciprestes
derradeiro e metafísico dizem
pelas cegonhas privadas da boca
suavemente que a vida anoitece
no seu caminhar inquieto de girassol.

Sentia-se fatigado pelas horas de espera
no banquete dos deuses de barro e do ócio
nos punhos de renda espadas de latão
pelas cadeiras do caruncho oficial
da cinza cinzenta intransponível
leitor atento do livro enigma da semana.

Continuava para surpresa de todos
a olhar a praça vizinha suavemente
o rio desviado do desalento a promessa do vinho
as profecias de liberdades vigiadas
entre autocarros e camionetas de aluguer
cabines telefónicas e caixas de correio.

Suavemente partia para junto das colmeias
nas asas imensas do sonho
e com fome de madrugadas amenas
que o coração também anoitece
nas paredes anónimas do quarto vazio
no solar abandonado dos sentidos.

Budapeste, 20.12.1983.

TEXTOS DA NOITE

Budapeste, 1983 e 1984.
"L’imaginaire est ce qui tend á devenir reél."
André Breton

TABERNA MATINAL

Percorre todos os pensamentos
com os cuidados de velha raposa sabida
pois nem as imagens do fogo são santos
até mesmo no templo do vinho multiplicado
que atraía os crentes mais que as tabernas
e o padre quis provar as uvas beatas
ai a carne devota da mulher do sacristão
e a pata sobreviveu coitadinha como milagre
ao lapso inquisição do azeite esturrado.

Tentaram pela última vez este inverno
segundo o correspondente estrangeiro
da televisão pública sem carro exterior
dentro do estômago do tontinho internado
que confundia a minha irmã enfermeira
com o técnico electricista do hospital.
Protestava por não mostrarem em directo
a viagem abelha sobre o Atlântico Norte.
Orgulho e alegria de todo o povo insecto.

Nas rádios não era notícia o normal da vida
que o medalha de ouro da maratona olímpica
não acusou doping e que os generais
não tinham com um golpe de estado
mandado a democracia para o congelador.
Os matadouros e as fábricas funcionavam
assim como os cafés os transportes colectivos
os quiosques dos jornais a mercearia da rua
e os jogos dos juvenis no domingo de manhã.

Desde a cantina até à baixa a protestar
com cantos e cartazes em defesa do pão
dos trabalhadores a trabalharem para os filhos.
Apenas as universidades alguns liceus
continuavam fechados e os alunos nas bermas
à boleia para as esquinas do futuro.

PAÍS QUE ME VAI ADOPTANDO

No auge da festa elevaram os cálices
à altura do céu no coração do norte.
Aí já o povo feliz da nação saiu à rua de novo
que isto de ser campeão europeu no vinho
ou no futebol não está ao alcançe de todos.

Eu com a bíblia desportiva descasco as palavras
como quem tira as escamas do safio dos sentidos
e com as tripas alimenta os gatos pretos
relembra o pianista a copinhos de licor
nas noites longas do bar pequeno do fumo .

Lanço um olhar de milho mirrado sobre
este país que sem pressas me vai adoptando
onde se diz que porco esfomeado
com bolotas sonha e um poeta desconhecido
com fama se deita e glória se levanta.

Na despedida que anuncia o vale formiga
da saudade colectiva no último apeadeiro
encontro finalmente na pedra da coragem
e na madeira da filosofia o texto em verso.

– O povo benzido nunca mais será cozido
no caldeirão a ferver do comilão joão ratão!
O povo cozido nunca mais será benzido
com o comilão joão ratão a ferver no caldeirão.